O anúncio do bilionário estadunidense Mark Zuckerberg sobre mudanças na política de moderação de conteúdos da Meta tem gerado uma série de repercussões em todo o mundo. Nestas poucas linhas, quero discutir possíveis implicações das palavras do dono do Instagram, Facebook e WhatsApp para as populações negras.
Começo por uma das afirmações de Zuckerberg: “…vamos simplificar nossas políticas de conteúdo e eliminar várias restrições sobre temas como imigração e gênero que estão fora de sintonia com o discurso predominante”.
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O que isto tem a ver com pessoas negras? O professor Luiz Valério Trindade demonstra, a partir da sua pesquisa de doutorado realizada na Universidade de Southampton, que as principais vítimas dos discursos de ódio nas redes sociais são as mulheres negras. O material de análise do pesquisador incluiu 109 páginas e 16 mil perfis de usuários do Facebook, justamente uma das plataformas de propriedade da Meta.
Outra questão importante do trabalho de Trindade é que não são quaisquer mulheres negras os alvos prioritários dos discursos de ódio, mas sobretudo mulheres negras em processos de ascensão socioeconômica. Quase que uma espécie de recado permanente de que os lugares que elas ocupam ou pleiteiam ocupar não lhes pertencem.
Ou seja, se mesmo com as políticas de moderação de conteúdo, já foi possível identificar as mulheres negras como maiores vítimas dos discursos de ódio no Facebook, o que esperar após o dono desta plataforma dizer que a moderação serviu para “silenciar opiniões, e excluir pessoas com ideias diferentes” e que, por isso, quer “garantir que as pessoas possam compartilhar suas crenças e experiências”?
No anúncio da terça-feira (7), Zuckerberg também foi explícito ao dizer que trabalhará com o governo Donald Trump. Não esqueçamos que Trump teve uma mulher negra como adversária na última eleição, Kamala Harris. E, mais do que isso, fez constantes ataques, durante a campanha presidencial, à afirmação racial de Kamala.
Mas podemos também voltar um pouquinho no tempo. Em 1989, um anúncio de página inteira, em quatro jornais de Nova York, pedia pena de morte para cinco adolescentes, sendo quatro negros e um de origem latina. O autor dos anúncios? Ele mesmo, Donald Trump. Vale lembrar que os adolescentes foram condenados e passaram entre seis e 13 anos presos POR UM CRIME QUE NÃO COMETERAM. Tanto que em 2014 receberam uma indenização do governo dos Estados Unidos. Mas Trump ignorou isso e, durante um debate com Kamala Harris, voltou a dizer que os adolescentes haviam matado uma pessoa e confessado o crime.
Então, ao enfatizar que irá “trabalhar com o presidente Trump” e que os Estados Unidos “têm as proteções constitucionais mais fortes do mundo para a liberdade de expressão”, Zuckerberg não deixa dúvidas de que haverá maior permissividade e benevolência, inclusive, com quem qualifica como assassino jovens que não tenham cometido nenhum crime. Isto não exemplifica a declaração de Zuckerberg de que vai “diminuir drasticamente a quantidade de censura” nas plataformas da Meta?
Uma possibilidade de aprofundamento desta análise – no sentido, inclusive, de evidenciar que não se trata “apenas” de Zuckerberg, mas de um problema mais amplo – é observarmos o que nos alertam os estudos que relacionam tecnologias digitais, colonialismo e racismo.
Zuckerberg é uma das mais emblemáticas materializações do colonialismo digital. A sua fantasia de “bom moço”, que usa sempre uma camisa básica e sem estampa (algo pouco comum para o imaginário social sobre um bilionário), que reivindica valores aparentemente democráticos, busca ocultar a essência da Meta e das plataformas digitais do Vale do Silício de um modo geral: acumulação e concentração de riqueza construída à base da exploração de territórios e corpos racializados, especialmente de países da África e América Latina.
Usando as palavras de Deivison Faustino e Walter Lippold, Zuckerberg – ao falar em “restaurar a liberdade de expressão” e “dar voz às pessoas” – expressa o “fardo do nerd branco”. Aqui, aspas para os autores: “no cenário do colonialismo digital, o suposto ‘fardo do homem branco’ se converte em fardo do nerd branco a partir da manipulação neoliberal da caridade tecnológica como forma de atualizar controles geopolíticos, ideológicos ou empresariais em territórios historicamente privados do desenvolvimento tecnológico”.
Este cenário, agravado pela declaração de guerra feita pelo dono da Meta, em que anuncia Trump como seu aliado, exige a ampliação do debate sobre a regulação do ambiente digital, mas abre uma oportunidade para a formulação de ideias e saídas coletivas assentadas num igualmente necessário projeto de soberania digital popular, em que não fiquemos reféns de plataformas proprietárias monopolistas.
E, nesta direção, há um conjunto de pesquisadores(as) e militantes negros e negras – bem como iniciativas de subversão tecnológica lideradas por territórios e grupos racializados – que têm pensado e construído caminhos que articulam soberania digital e justiça racial. Conhecer, divulgar e fortalecer essas experiências e propostas é um primeiro (e fundamental!) passo.