Texto: Dennis de Oliveira / Ilustração: Moska Santana
Um tema muito repisado nos últimos tempos na luta contra o racismo é a autoestima de negras e negros. Em boa parte, este tema vem sempre à tona para demonstrar a importância do estudo, disseminação e reflexão sobre a cultura africana, afro-brasileira e a história da África. Evidentemente, contada a partir dos seus protagonistas e não aquela apropriada e recontada por quem sempre oprimiu.
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Sem dúvida que estas conquistas – ainda que não plenamente implantadas – são importantes. Mas as mudanças na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação por meio da lei 10639/03 e 11645/08 vão muito além.
Por serem alterações na LDB, elas se aplicam a todo o sistema educacional brasileiro. Independente da escola ter muitos, poucos ou nenhum estudante negra ou negro. Trata-se de uma legislação que visa contribuir na mudança das relações étnicorraciais. E isto significa intervir não só na “autoestima” de negras e negros, como também no comportamento de brancos.
Em uma entrevista concedida a um documentário sobre a “Década do Afrodescendente”, Danilo Benedicto, ativista da Rede Quilombação e estudante de economia da Unifesp, disse taxativamente: “autoestima não paga conta”.
A afirmação pode ser dura, mas tem seu fundo de razão. Não que a autoestima não seja importante. Sem dúvida que a postura de reivindicação ou de assujeitamento a uma condição de subalternidade tem muito a ver com a autoestima. Mas ela, por si só, é insuficiente para resolver o problema do enorme fosso social entre brancos e negros existente no Brasil.
Isto porque o risco de se centrar a discussão na autoestima é responsabilizar o próprio negro e negra pela sua condição. Discurso este comumente feito pelos brancos: “vocês (negros) mesmo que não se valorizam e são racistas”. E aí vem o eterno exemplo do Pelé e outras celebridades negras.
O racismo é uma forma de relação social de opressão, criada por quem está no topo e está no poder. Como ideologia, ela é disseminada e penetra em todos os segmentos sociais, inclusive na própria população negra. Da mesma forma que a ideologia burguesa está presente também na classe proletária. O poder de um grupo minoritário se mantém assim.
E o que é importante nesta reflexão é o porquê disto. O racismo existe porque mantém privilégios sociais, mantém estruturas de poder. O branco que pratica o racismo o faz não por má educação apenas (embora ela possa também existir) ou por uma maldade inata ao seu ser (embora isto possa também acontecer), mas porque mantém um lugar de privilégio para ele.
O racismo garante que uma pessoa branca não tenha preocupações de sua aparência ser vital na seleção de uma vaga de trabalho. Ou de ter que provar que é inocente e uma pessoa honesta na hora que é abordada pela polícia. Ou ter que conviver com cenas como uma pessoa atravessar a rua ou segurar a carteira quando chega próximo.
Em um sentido mais amplo, este privilégio racial garante, por exemplo, que se mantenham intactas estruturas repressivas típicas de regimes autoritários em plena democracia no Brasil. Exemplo: práticas policiais que invadem domicílios sem mandados de busca nas periferias; execuções extrajudiciais; torturas nas delegacias; detenções sem amparo judicial e/ou legal. Esta mesma estrutura repressiva que impõe um estado de sítio nas periferias é mobilizada para conter ações dos movimentos sociais, como passeatas, greves, protestos.
Este mesmo privilégio racial propicia à burguesia brasileira condição favorável para manter um regime de superexploração do trabalho com o sub-emprego e os salários mais baixos impostos aos trabalhadores negras e negros.
E a brutal exploração da trabalhadora doméstica reduz a pressão da população em geral por políticas públicas como mais creches, lavanderias coletivas e restaurantes populares que permitam a conciliação do trabalho com as demandas domésticas.
Em outras palavras, estamos falando de poder – e não apenas o poder expresso nas estruturas governamentais. Mas o poder social exercido pelas classes dominantes. Os privilégios raciais legitimam esta ordem social de concentração de renda, cidadania restrita e violência como prática política central.
Não se trata apenas de como o negro e a negra se veem. Mas como eles estão inseridos no sistema capitalista brasileiro. Até porque o capitalismo é tão dinâmico que a cada dia cria mecanismos de apropriação de certas demandas culturais desde que elas não contradizem sua lógica sistêmica. O pessoal da Casa Grande até deixa a turma da senzala frequentar certas coisas – desde fazer uma feijoada, tocar um samba ou jogar uma capoeira. Mas o que não se discute é a propriedade da Casa Grande. Dividir o espaço da manifestação cultural, até pode, mas a propriedade não. E para pagar as contas, é preciso de dinheiro.