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Os desafios da representatividade racial e gênero no contexto de violência política e eleitoral no Brasil

Número de parlamentares autodeclarados negros cresce, mas fraudes, desinformação e violência política e eleitoral ameaçam a representatividade de raça e gênero

Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Foto: Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

12 de dezembro de 2022

As eleições de 2022 foram marcadas por uma onda de candidaturas de mulheres, negros e negras, quilombolas, indígenas e pessoas LGBTQIA+ por todo país. Impulsionados pelo agravamento das condições de vida da população – crescente empobrecimento, fome, baixo investimento em políticas públicas, crises sanitária, ambiental e política – esses seguimentos priorizaram, em grande medida, candidatutras aos legislativos estaduais.

Entre os muitos objetivos dos pleitos, destacam-se os movimentos para barrar retrocessos nos direitos sociais já conquistados, garantir representatividade racial e de gênero, além de orçamento para promoção de políticas de proteção social.

Diferente de outras eleições, esse ano as lideranças construíram redes e plataformas de formação e gestão das campanhas para trocar experiências políticas, vinculando-se às pautas dos movimentos negros, de mulheres, LGBTQIA+ e luta pela terra. Essa estratégia ampliou os canais de diálogo com as instituições de pesquisa e direitos humanos, gerou dados, e fortaleceu os setores de comunicação e proteção jurídica dos comitês populares.

Mesmo com a diversificação das opções de candidaturas no campo progressista, o resultado eleitoral não tornou as casas legislativas estaduais imediatamente mais diversas.

Mudanças nas regras eleitorais, que passaram a vincular a distribuição do fundo partidário e tempo de TV ao incentivo de candidaturas negras, além de cotas para candidaturas de mulheres, foram tímidas em seus resultados quanto ao potencial de transformação da representatividade política.

Para Marcelle Decothe, que é gestora de programas do Instituto Marielle Franco, “[…] a guerrilha digital de fake news e a desinformação se destacaram neste período eleitoral. Majoritariamente candidaturas com agendas de defesa de direitos humanos e de populações vulnerabilizadas foram alvos de discursos distorcidos produzidos pela extrema direita[…]”.

Representatividade sob ataque: poucas mudanças e algumas surpresas

O Brasil registrou 28 mil candidaturas até o final de agosto de 2022. Estima-se que, deste total, 16.507 foram para vagas em Assembleias Legislativas, tendo sido eleitos(as), no dia 2 de outubro, 1.059 deputados e deputadas estaduais..

Ainda que uma olhada rápida nas imagens das candidaturas eleitas nos faça crer que a fotografia do poder continua pouco alterada, com base nos dados de autodeclaração racial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mapeamento da Folha de S. Paulo, o número de representações negras na política aumentou. Segundo o levantamento, 376 candidaturas pardas (315) e pretas (61) foram eleitas para as casas legislativas estaduais, em 2022.  Em 2018, foram 305 e em 2014, ano em que o TSE iniciou o processo de autodeclaração, foram  281 candidaturas negras eleitas.

Mas essa ampliação foi acompanhada de outro crescimento preocupante: das denúncias de fraude na autodeclaração racial, que ligam um alerta para a fiscalização do funcionamento das ações afirmativas nas eleições.

Entre as três candidaturas mais votadas no país que se autodeclararam negras, duas despertam dúvidas pelas recentes mudanças na declaração racial. São eles: Milton Leite Filho (União Brasil/SP) que recebeu 198.429 votos e se autodeclarou branco nas eleições de 2014, e o pastor Junior Tércio (PP/PE) que recebeu 183.429 voto e se autodeclarou branco nas eleições de 2020. A Bancada Feminista (Psol/SP), formada por  cinco mulheres negras, foi a primeira colocada com 259.771 votos. 

Ainda segundo o levantamento, as regiões Norte e Nordeste contarão, em 2023, com casas legislativas compostas por metade ou mais de parlamentares negros e negras.

No Pará, essa representação é conflitante. Lá, a Assembleia Legislativa (ALEPA) é composta por 42 deputados e deputadas e só em 2022 elegeu a primeira mulher negra deputada na história.

“A Alepa, infelizmente está ainda mais conservadora, ainda mais branca e mais elitista do que nas últimas legislaturas. As campanhas milionárias foram vistas a olhos nus! Em um Estado que tem a sua população em mais de 75% autodeclarada negra […] elegemos apenas sete mulheres para ocupar esse assento e entre elas, estou como a única autodeclarada negra e a primeira preta da história!”, denuncia Lívia Duarte (PSOL/PA), única candidata negra eleita deputada, em uma composição de nove mulheres e 21 negros autodeclarados.

Na Bahia, estado com mais de 50% de deputados estaduais autodeclarados negros para 2023, o problema é semelhante ao Pará. A única mulher negra eleita, Olívia Santana (PCdoB), foi a primeira deputada com esses marcadores de gênero e raça na Assembleia Legislativa (ALBA), quando ganhou a eleição em 2018.

“[…] é lamentável que outras mulheres pretas não tenham sido eleitas. A Bahia é um estado com a maioria negra e feminina, e isso não consegue se traduzir na Assembleia Legislativa, que é, ou deveria ser, a casa do povo e, portanto, espelhar a diversidade do que nós somos.”, frisou Olívia Santana, que esse ano recebeu o dobro de votos e também foi a mais votada do campo da progressista.

Os limites da representação racial em nível estadual são evidentes na baixa presença de mulheres negras e ausência dos povos quilombolas e indígenas, seguimentos que historicamente lutaram para combater o racismo na sociedade.

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), 23 quilombolas ligados à entidade foram candidatos(as) a deputado(a) estadual em 14 unidades de federação.. Mesmo sendo parte de um processo conjunto de incentivo às candidaturas, por meio da plataforma Quilombo nos Parlamentos, nenhum(a) quilombola foi eleito(a).

As principais barreiras apresentadas por lideranças e candidaturas quilombolas foram a falta de incentivo partidário, financiamento de campanha e intensificação da violência política e eleitoral. 

“A gente está no primeiro degrau […] se pegar o perfil dos quilombolas que saíram candidatos, nós não temos histórico de dinastia política, de grandes recursos para  investir em uma campanha […] nossos concorrentes, às vezes, já vêm de famílias políticas, têm recursos e recebem grandes doações, além dos fundos partidários para concorrer.” explica Lucilene Kalunga, que recebeu mais de 10 mil votos para deputada estadual em Goiás, pelo PSB, e ficou na suplência.

Em todo o país, 184 indígenas se candidataram para algum cargo político, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Cruzando esses dados com a autodeclaração no TSE, apenas dois candidatos foram eleitos deputados estaduais.

Mesmo que numericamente isso esteja aquém da importância desses grupos, as reivindicações apresentadas pelos indígenas eleitos e eleitas – e pelos(as) que não tiveram êxito eleitoral –, como  a regularização fundiária, titulação e preservação de seus territórios, a mitigação dos impactos socioambientais provocados pelos megaempreendimentos, dentre outras, serão assumidas coletivamente por mulheres negras no Poder Legislativo em diversos estados.

“A luta pela preservação e garantia de direitos dos povos quilombolas, ribeirinhos e indígenas, certamente será um desafio constante. Estamos em Estado que ocupa o topo da lista de desmatadores da Amazonia Legal, com quase metade de toda destruição: 553 km2 (49%). Seis dos 10 territórios indígenas mais desmatados, em 2021, estão em solo paraense. A insegurança alimentar no campo, grave e a moderada, estão presentes em 54,6% dos lares de agricultores familiares […] isso é gravíssimo.”, declara a deputada eleita Lívia Duarte, quando perguntada sobre os desafios e as pautas que serão levantas por seu mandato, a partir de 2023.

Das poucas surpresas nos legislativos estaduais, vale destacar também a ampliação da bancada das mulheres negras na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, com Veronica Lima (mulheres lésbicas PT), Dani Balbi (mulheres transsexuais, PcdoB) e Marina dos Santos (sem terra, PT), dentre outras, que se juntam a Renata Souza (Psol), reeleita, com a terceira maior votação dentre todas as candidaturas ao legislativo fluminense.

As sementes, como são conhecidas as lideranças de mulheres negras na política, brotaram do legado deixado por Marielle Franco (Psol), deputada estadual pelo Rio de Janeiro, assassinada em 14 de março de 2018, vítima de violência política cujo caso ainda não foi elucidado. 

Outro destaque são as candidaturas LGBTQIAP+. Segundo o levantamento do programa Voto com orgulho, da Aliança Nacional LGBTI+, 14 candidaturas deste segmento foram eleitas para a atuação no Legislativo em mais de 10 estados.. Um destaque é Fabio Felix (Psol), deputado mais votado da história do Distrito Federal.

Violência política como barreira à ocupação da política

Entre todas das candidaturas eleitas e lideranças ouvidas para esta matéria, foi unânime a opinião de que a violência política e/ou eleitoral é uma das principais barreiras para o acesso aos espaços institucionais, sendo um fenômeno que serve para efetivar objetivos específicos, voltado ao impedimento da participação política de outrem, no caso do Brasil, especialmente mulheres, negros, LGBTQIAP+, indígenas e outros grupos minorizados.

Segundo o monitoramento “Violência Política e Eleitoral no Brasil”, realizado pela organização Terra de Direitos, junto com a Justiça Global, entre 2020 e 2022, foram identificados 542 casos de violência política e eleitoral, fazendo 497 vítimas. Vale indicar que o monitoramento é baseado no aparecimento de notícias sobre o tema nas plataformas de buscas e redes sociais digitais.

Só no primeiro turno de 2022 foram identificados 121 casos de violência política e eleitoral. No contexto dessas eleições chama atenção as 14 mortes categorizadas como violência disseminada. A principal característica dessa violência é o não-envolvimento de atores político-institucionais, mas o clima eleitoral violento influenciando diretamente nas mortes. A região Sudeste se destaca pela maior incidência das violências e em que pese as mulheres, negros e LGBTs serem minorias nos espaços de representação, proporcionalmente são os seguimentos que mais sofrem violência política.

“A expressão “violência política” não é utilizada por toda a imprensa. Vemos um crescimento do uso do termo nas últimas eleições, mas muitos veículos e órgãos do sistema de justiça ainda não reconhecem os casos como de violência política. Uma maior quantidade de notícias que trazem o contexto da ocorrência da violência, a posição política da vítima e do agressor e dados sobre a violência política resultam, entre outros fatores, da incidência que vem sendo feita por diversas organizações da sociedade civil sobre o tema nos últimos anos.”, explica Gisele Barbieri, da coordenação de incidência política da Terra de Direitos.

Através da série histórica 2016-2022, o monitoramento aponta para a frequência de casos e uma ampliação do aparecimento das denúncias. Até 2018, o registro era de um caso a cada oito dias. Já em 2022, passou para um caso a cada 27 horas.

O crescimento da frequência de casos convoca um olhar diacrônico para a prática estruturante da violação dos direitos políticos contra alguns seguimentos na cultura política brasileira.  Como lembra Olívia Santana, “a negação do direito ao voto à população negra, às mulheres no passado; a escravidão e a apropriação do poder por homens brancos e ricos foi uma das maiores violências políticas”.

A própria Olívia Santana foi vítima de violência eleitoral em 2022, ao ser impedida, por policiais militares, de entrar com uma bandeira no seu colégio eleitoral. Ela denunciou o caso na corregedoria da Política Militar do estado e aguarda e acompanha o desfecho da denúncia.

No mesmo sentido, Renato Freitas (PT), que é vereador de Curitiba e foi eleito deputado estadual do Paraná, denunciou inúmeras violências políticas sofridas por ele ao longo do seu ativismo e mandato parlamentar municipal.

Uma das violências mais graves sofridas por Renato foi a tentativa de cassação do seu mandato e suspensão temporária dos direitos políticos, fruto de acusações falsas de quebra do decoro parlamentar em decorrência de ato antirracista, mobilizado pelo vereador, na porta de uma igreja.

Depois de inúmeras representações judiciais, às vésperas das eleições do primeiro turno, de 2022, o Superior Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão que impedia o vereador de se candidatar para a Assembleia Legislativa. Em resposta às tentativas de violência política contra Renato Freitas, a população do Paraná o elegeu deputado com  57. 880 votos.

“Cresci em meio a severas privações, em área de ocupação, num barraco sem TV, sem pai, sem herança. E nessa fraqueza/vulnerabilidade encontrei minha força[…] todos os cálculos eleitorais do partido, dos advogados e dos representantes políticos diziam que eu tinha que me retratar, dizer que foi manifestação de uma imaturidade política, e não de uma denúncia legítima em favor da vida. Mesmo assim insisti, confiei na verdade dos sentimentos que moveram minhas ações. E a verdade, como o sol que mesmo encoberto pelas nuvens existe, veio a público, depois da tempestade de fake news”, desabafa Renato.

A violência política de gênero e raça só ganhou visibilidade pela mobilização de mulheres, negros e indígenas na América Latina, através da incidência política e formulação de acordos adotados regionalmente como o Consenso de Quito 2007, Consenso de Brasília 2010, a Norma Lei Modelo Interamericana sobre Violência Política contra as Mulheres (CIM/OEA, 2017).

Para Marcelle Decothe, combater a violência política e eleitoral requer “um trabalho articulado entre sistema politico (partidos, TSE, casas legislativas), sistema judiciário, executivo e sociedade brasileira, incidência no debate público, na criação de canais de denúncia,  condenação de culpados e respeito à legislação aprovada. Quando entendermos que não há democracia plena quando a violência política é regra do jogo no nosso país e colocarmos seu combate na centralidade da ação política podemos dizer que avançaremos na redução desse fenômeno”.

Mais recentemente, o Brasil passou a contar com a Lei n. 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir e combater a violência política contra as mulheres, criminalizando essa prática.

De acordo com a referida lei, é crime “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”.

A eleição de 2022 foi a primeira após sanção da Lei n. 14.192/2021. Ao mesmo tempo em que o ano eleitoral foi marcado pela frequência de violências, a lei intensificou os processos de desnaturalização da violência política e eleitoral com ampliação das denuncias e debates durantes as campanhas.

Os exemplos de Olívia Santana Lucilene Kalunga, Renato Freitas e Lívia Duarte demonstram que homens e mulheres negras, indígenas e LGBTQIAP+ precisam ser protegidos permanentemente em sua integridade física e assegurados em seus direitos políticos, o que exige da sociedade pensar múltiplas estratégias de prevenção e acolhimento que complemente e legitime o arcabouço legal já instituído.

*Este texto integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

Tâmara Terso é Jornalista e Pesquisadora amefricana. Associada ao Coletivo Intervozes.

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