Quando falamos de Brasil, tendemos a falar: aqui é uma terra de ninguém. Mas a verdade é que há 520 anos os donos e donas dessas terras, os indígenas, seguem lutando para mantê-la viva e saudável. Lutar pela terra não é lutar por uma propriedade privada, como muitas vezes acontece em outras partes do mundo, ou lutar por alguma fronteira, algum bem. A luta por terra é a tentativa de garantir a continuidade da humanidade. E se matarmos nossos povos originários, a humanidade morre.
As florestas são nossos lugares vivos de memória. Ouso dizer que a floresta é o nosso primeiro HD externo do mundo, capaz de guardar os mistérios, os segredos, proteger nossos passados e futuros, prover conhecimento e cuidado. É na floresta que os afetos se fazem e refazem e foi nela que os nossos antepassados, dos quais temos orgulho, viveram anos e anos.
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Ao fazer uma trilha desconhecida, você precisa de um mais velho. Uma pessoa que saiba as plantas locais, os caminhos, as geografias. Uma pessoa que te permita andar de forma independente, mas sempre estará ali para te ajudar, tirar dúvidas. Seria ignorância nossa achar que as nossas tataravós negras africanas saberiam sozinhas adentrar a mata brasileira que as nossas tataravós indígenas plantaram, semente a semente.
Os quilombos, a maior forma de luta da população negra no Brasil, eram comunitários e escondidos. Para entender como os territórios adentrados funcionavam, negros e indígenas passaram a se comunicar, a redesenhar suas tradições, cosmologias e afetos. Entendendo que só seria possível manter a vida se a resistência fosse feita em coletivo. Os quilombos seguem presentes.
O nosso conhecimento ancestral veio de uma troca. De uma percepção de que o inimigo sempre será o mesmo: o branco. De que o final enquanto o branco viver será o mesmo: a morte. De que os orixás que atravessaram para sobreviver aqui precisariam de outras plantas, banhos, cantos e saberes. O axé se transformou, assim como nosso corpo, nossos traços e nossas formas de ver o mundo.
A teima de civilização nos fez chegar nesse buraco sem fundo. Nesse ponto em que é impossível retornar. O PL 490/2007, que impõe o marco temporal nas terras indígenas, permite o desmatamento pelos interesses de garimpeiros e não prevê aumento das terras já demarcadas, está em trâmite para ser aprovado e colocado em vigor. Dias atrás, povos indígenas de diferentes territórios ocuparam Brasília – território quilombola – para impedir a continuidade deste projeto de lei.
Os caminhos do PL 490/2007
Para quem não está atento, o PL 490/2007, de criação do deputado federal Homero Pereira (PR/MT), propõe a alteração do estatuto indígena de 1973, para que as demarcações de terras sejam feitas por lei. Hoje a demarcação é feita pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que mesmo sendo uma instituição bem problemática, que não respeita os povos indígenas, foi uma conquista da luta por terras e por reconhecimento institucional. A FUNAI é responsável por fazer toda a prática burocrática da demarcação. A cargo do presidente da República, fica a validação e homologação das terras.
Colo aqui um trecho da justificativa do PL, em que o deputado Humberto diz que as terras indígenas estão localizadas em lugares inadequados para a população, mostrando como o pensando civilizatório e a necessidade branca pela urbanização, pela fragmentação do corpo e continuidade do capitalismo, é institucional: “Isto que os atos demarcatórios implicam em sobreposições de áreas indígenas às áreas de proteção ambiental, estratégicas para a segurança nacional, como, por exemplo, as localizadas na faixa de fronteiras, de propriedades privadas destinadas à produção agropecuária e outras atividades produtivas importantes para a viabilidade econômica de Estados e Municípios, aquelas ocupadas por obras de infra-estrutura, como estradas, redes de energia elétrica e telefônica, de prospecção mineral e recursos hídricos, áreas de aglomeração urbana e núcleos habitacionais, onde se localizam, também, os prédios destinados à administração local, à educação, à saúde, à moradia, etc.”
A continuidade do texto que justifica a existência do projeto de lei traz pontos como a harmonização dos três poderes, tirando das mãos da FUNAI a autonomia da parte burocrática das demarcações de terras. Um ponto fundamental é a insistência de de Homero ao dizer que quem deve decidir com quem ficam as terras da união são os representantes do povo, isto é: o Congresso Nacional, uma vez que essas terras afetam a engrenagem estatal.
“O cenário para estes debates é o Congresso Nacional. Daí, a importância do exame e debate de todas estas questões, no âmbito do Congresso Nacional, onde os mais diversos interesses públicos e privados, coletivos e individuais poderão ser amplamente discutidos e analisados, para, ao final, serem aprovados na forma da lei.”
Esse projeto de lei não anda sozinho. Há outras 13 leis que têm por objetivo alterar o Estatuto do Índio, e violar inteiramente os direitos indígenas, provando assim a sua institucionalidade. Recomendo a leitura da nota técnica da APIB (Articulação dos Povos Indígenas no Brasil) para compreender melhor o que a tramitação desta lei significa juridicamente para os povos indígenas.
Céu caindo – perda do passado, do presente e do futuro
Ao perdermos a floresta, perdemos as nossas referências e as nossas memórias. Em continuidade a pergunta do título, penso que a afirmação “O que não é floresta, é prisão política”, nome de uma exposição de artistas brasileiros realizada em 15 de novembro de 2019, na Ocupação 9 de Julho, centro de São Paulo, é mais do que verdadeira.
Vivendo na urbanidade, no mundo processado, na fome, na miséria mental, carnal e espiritual, a gente esquece que é essa a nossa prisão. A adequação da caminhada para um suposto topo, ascensão que não prevê a continuidade dos nossos povos e das nossas formas originárias de viver. O branco que inventou a rua, o lado do outro, a troca por espelho, o diferente, anormal, não-humano, agora luta para tirar a nossa forma de vida e de continuidade, usurpar os rituais, costumes e culturas, colocar séries e séries de validações naquilo que há anos vem sendo construído em coletivo.
Para construir Palmares de novo, é necessário que continuemos mantendo nossas aldeias, assim como lutamos pelas comunidades quilombolas. A floresta é a entidade fundamental que atravessa a nossa ancestralidade. É a floresta viva que proporciona a continuidade das nossas cosmovisões.
O futuro será comunitário, sustentável e na mata. Que comecemos hoje.
Isabela Alves é artista visual, comunicadora e pesquisadora das cosmologias indígenas e negras no Brasil. Atua na área de Comunicação Institucional da Énois Laboratório de Jornalismo, como coordenadora de comunidades, e é co-idealizadora do Laboratório A Perfeita Queda dos Búzios, com Jéssica Ferreira.
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