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Pelo fim dos binarismos: violência de gênero e punitivismo

20 de junho de 2018

Para Suzane Jardim e Gabrielle Nascimento, pesquisadoras da criminologia crítica, condenar a cultura punitivista não equivale a defender a impunidade contra crimes violentos, e ressaltam que alguém pode ser vítima e vilã na mesma história

Texto / Suzane Jardim e Gabrielle Nascimento
Imagem / Reprodução/ YouTube

Para começar, acreditamos que seja importante dizer que a escolha por práticas antipunitivistas como forma de resolução de conflitos não têm – ou pelo menos não deveriam ter – origem em uma pretensa superioridade moral. Essa escolha tem fundamento na constatação de que a punição nunca foi a causa da diminuição de violência em nenhum lugar onde foi aplicada. Então, é assim: se você veio aqui achando que vamos contar uma história bonita sobre como uma vítima perdoou seu agressor e o abraçou emocionada enquanto era iluminada pela força da compaixão, veio no lugar errado. Isso aí é coisa do Augusto Cury. Antipunitivismo não tem a ver com perdão ou misericórdia. Inclusive, está liberado sentir raiva de pessoas que reproduzem as diversas formas de opressão – a gente, por exemplo, sente ódio e sairia no soco com várias. Dito isso, bora lá.

Para quem está perdido, vamos tentar sistematizar a treta: o rapper negro XXXTentacion, de 20 anos, foi executado a tiros na Flórida, EUA, à luz do dia. Ainda não se sabe quem o matou ou quais as motivações, mas existem razões para acreditar que o fato está ligado a brigas de gangues. XXXTentacion respondia também por 15 acusações criminais, entre elas a agressão de uma mulher grávida, sua ex-namorada. Segundo o relato que ela prestou à polícia, enquanto moravam juntos, XXXTentacion a ameaçava diariamente e a manteve em cárcere privado enquanto cometia uma série de violências físicas e sexuais pesadíssimas. Diante dessas acusações, sendo a internet o terreno oficial do 8 ou 80, os comentários sobre a morte do rapper se dividiram em dois extremos caricatos: os que “passaram pano para o agressor” e os que comemoraram a morte de “mais um jovem negro”.

No caso, levando em consideração as circunstâncias da morte, está evidente que XXXTentacion foi assassinado em decorrência do racismo estrutural e não pelo fato de ser um agressor. Como assim, racismo? A gente explica, sem problemas.

Dizemos que a culpa é do racismo estrutural, pois sabemos a quem são destinadas as carreiras nas gangues e nas facções. Sabemos como o racismo estimula um círculo de violência entre jovens negros, círculo este que torna a violência a única linguagem compreensível em bairros pobres e racializados – essa é uma das facetas mais bem-sucedida do genocídio negro – garantir que tenhamos jovens crescendo cercados por violências por todos os lados e deixar que a competição pelo pouco de prestígio que se pode conseguir nesses espaços de precariedade racial e de classe resulte em mais violência, em um ciclo interminável.

Nesse sentido, XXXTentacion é, sim, mais um jovem negro vítima de um projeto genocida e, de fato, é bizarro ver pessoas comemorando sua morte. Mas, se ele tivesse sido morto justamente por ser um agressor? Se fosse uma ação de vingança pelos crimes que ele cometeu? Aí estaria liberado comemorar a morte do cara? A gente sabe a quem se destina o “bandido bom é bandido morto”?

Livia Cruz Barbara Sweet Capa

Barbara Sweet e Lívia Cruz (Foto: Reprodução)

Volta e meia alguém fala/faz uma merda que reproduz estruturas de opressão, o que faz movimentos sociais antiopressão e setores progressistas da sociedade demandarem por punição severa ao agente da agressão. E isso não é exclusividade de um ou outro movimento. No caso do X, estamos falando do movimento feminista, mas não esquecemos quando, há alguns meses, Bárbara Sweet e Livia Cruz, duas rappers brancas, foram extremamente irresponsáveis em um vídeo completamente problemático, utilizando de uma série de estereótipos racistas para objetificar homens negros, como se os corpos negros já não fossem alvo de desumanização.

Nesse episódio vimos gente do movimento negro demandando a morte das duas, como se as mesmas tivessem, sozinhas, inventado o racismo e o genocídio.

O que mais nos deixa frustradas é saber que, como coletivo, temos a capacidade de fazer análises estruturais que apontem para o verdadeiro problema.

Pensemos em outro episódio: uma semana antes da discussão sobre o vídeo das rappers racistas, a música “Surubinha de Leve” foi problematizada, sobretudo por mulheres, por conter apologia ao estupro no trecho que dizia “Taca a bebida / Depois taca a pica / E abandona na rua”.

Na época, o fato foi utilizado por pessoas elitistas e desonestas para criminalizar o funk e tentar personificar o problema na figura do MC Diguinho, autor da música – como se não houvesse uma cultura que faz o estupro ser normalizado até por quem só escuta Beethoven. Todo mundo foi obrigado a dar dois passinhos para trás e se dar conta de que estávamos tratando de um problema estrutural e as produções que vieram dessa discussão foram bem ricas.

Ué, se somos capazes de entender o aspecto estrutural de certas violências, por que agora achamos que matar um agressor vai ajudar na luta antiopressão? Agressores não são monstros que podemos simplesmente eliminar para livrar nossa sociedade dos malvadões. São pessoas normais, geralmente até boa praça, que são socializadas de modo que as fazem entender que podem fazer o que fazem. A sociedade patriarcal retira das mulheres o direito ao próprio corpo e concede autorização aos homens para decidir por nós. Assim como a sociedade racista autoriza a morte de pessoas negras todos os dias como parte de um projeto político genocida que beneficia pessoas brancas.

E se entendemos que o problema é estrutural, por que diabos ainda tentamos amenizar condutas, como se as violências – de gênero, no caso – pudessem ser diminuídas ou fossem menos graves diante da identidade do agressor? O indivíduo reproduz o sistema e sabemos do caráter violento desse sistema.

Dessa forma, não é mais do que a nossa obrigação demonstrar empatia com as vítimas de violência doméstica mesmo quando o agressor é um homem negro e vítima do racismo estrutural. Afinal, antes de ser assassinado, ele viveu, se relacionou e foi sujeito ativo na propagação de mais violências também.

Às vezes soa como se parte dos movimentos acreditasse ser mais estratégico desresponsabilizar o agente, relativizar a violência sofrida e simplesmente cagar para a vítima do que pensar em novas formas de responsabilização individual e coletiva. O perigo está no fato de que do outro lado existe um sistema que funciona movido pela falsa narrativa de que irá trazer paz para as vítimas: o punitivismo.

O punitivismo se alimenta de nossas emoções e de nossas fraquezas, sabe da seriedade das dores das vítimas, compreende que essa dor dilacera ao mesmo tempo em que sabe que não será útil para tratar essa dor. O sistema penal foi criado, existe e funciona para garantir a hegemonia de uma determinada classe e fazer o controle social de outras, jamais para garantir a segurança de mulheres.

XXXTentation capa

Rapper XXXTentation (Imagem: Reprodução)

O sistema e seus agentes sabem disso, mas se mantêm fortes e na ativa, mesmo sem trazer melhorias nos índices de violência, exatamente por propor uma “alternativa invisível” e maniqueísta para a gente se sentir vingada. A prisão ou a morte de quem nos agride ou lesa nos dá certa certeza de que não teremos de cruzar com nossos agressores novamente e ter essa certeza é de fato importante no país que ocupa o quinto lugar no ranking dos países com mais feminicídios. A dor e o medo são reais, somos mulheres, mulheres negras – as mais frágeis diante da violência de gênero e as menos assistidas pelo sistema penal vigente. Quando somos as vítimas, claro, porque no banco dos réus, infelizmente, estamos representadas até demais.

Temos sentimentos, a violência dói e fere, muda nossas vidas e a vingança de saber que nossos agressores não existem mais pode confortar – mas não nos cura. Assim como não nos dá a garantia de segurança e não evita de modo algum que situações similares voltem a acontecer. Culpamos um agente ou outro, acreditamos que o crime foi “monstruosidade” e mantemos um maniqueísmo que só colabora para outros “monstros” aparecrem em um ciclo interminável.

Ser antipunitivista é pensar em responsabilizações que tragam melhorias estruturais e reparos para as vítimas fora dos binários “monstro x cidadão de bem” ou “vítima x vilão que precisa sofrer”. Somos seres complexos em relações complexas, sentimos dores e queremos segurança, sim – o ódio das mulheres aos agressores sexuais é justo, principalmente nessa sociedade que não traz respostas, mas sim culpabiliza as vítimas pela violência de gênero sofrida. Entretanto, as respostas atuais que surgem do ódio não têm nos ajudado ou nos protegido verdadeiramente.

É de extrema urgência que pensemos em formas de responsabilização que não produzam punição estigmatizante, fundada na vingança, mas que visem, sim, uma reparação dos danos sofridos, sobretudo para as vítima, mas também para a sociedade.

Quem morre se vai sem responder e ser responsabilizado, assim como a prisão propõe uma penitência e um isolamento da sociedade para que “se pense sobre o erro cometido” em uma reprodução de conceitos religiosos de culpa que já deveríamos ter superado. Para produzir resultados em longo prazo, cabe a nós continuarmos a politizar o debate onde o algoritmo do Facebook não chega. A gente quer que as opressões acabem, mas dá importância mínima para processos de conscientização da base que não resultem em like por lacração em cima do mano de Guaianazes que não teve a sorte que você, óh-ser-iluminado, teve de ter contato com as pautas antiopressão.

Daí que não vemos ganho político para nós, enquanto militantes, em empreender energia no exercício de atribuir culpa católica a alguém por uma opressão estrutural. Não temos de perdoar ninguém nem antes e nem depois da morte. Não nos cabe esse papel: deixemos isso para as teologias. Porém, também não vemos como pode ser produtivo canonizar indivíduos por serem também vítimas da opressão estrutural.

O mundo é contraditório e você não está no Vaticano.

 

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