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Por que falar sobre raça e classificações no Brasil é tão complicado?

17 de novembro de 2018

Catharina Rocha, formada em comunicação social – jornalismo pela Universidade Paulista (Unip) e autora do projeto “Tons do Brasil” sobre identificação racial e colorismo, escreveu para o Alma Preta sobre as dificuldades de abordar a temática racial no país

Texto / Catarina Rocha
Imagem / Tarsila do Amaral

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“Aqui somos mestiços mulatos, cafuzos, pardos, mamelucos, sararás, crilouros, guaranisseis e judárabes […] somos o que somos, somos inclassificáveis”.

É o que diz um trecho da música “Inclassificáveis”, de 1996, interpretada por Arnaldo Antunes. Mais de 20 anos depois, a letra ainda faz todo o sentido para milhares de brasileiros que não conseguem dizer com exatidão uma característica simples: sua classificação de raça.

Em censos, questionários e formulários que analisam e relatam sobre a identidade racial do brasileiro, cinco são as categorias apresentadas: branco, preto, pardo, amarelo ou indígena.

Essas cinco categorias, usadas para classificar as relações étnico-raciais existentes, revelam um traço importante do país, a sua diversidade.

É muito possível que você conheça um ou dois casos de pessoas que se autodeclaram com uma categoria, porém são vistas por determinada parte da sociedade de outra forma. Isso é muito comum entre os chamados “mestiços”, pessoas que são frutos, diretos ou indiretos, de relacionamentos inter-raciais (que se consistem na reprodução entre duas raças ou mais).

A produtora de eventos Ione dos Santos Nadu, de 36 anos, sabe muito bem como é a situação: autodeclarada como uma mulher negra, seus cabelos crespos, o nariz mais largo e os traços claramente africanos deveriam ser o maior indicador de sua origem predominante. Mas nem sempre foi assim. Ione tem um tom de pele mais claro, quase bege, e essa peculiaridade levantou muitos conflitos em sua vida. “Eu era branca demais para ser preta e preta demais para ser branca”

Essa incerteza de pertencimento é muito mais comum do que se imagina e existem milhões de Ione’s espalhadas pelo Brasil.

“Não sabia quem eu era, até que um dia me disseram: ‘ninguém nunca te avisou que você é negra? ’ e eu percebi que eu só tinha a pele mais clara, mas meu cabelo, minha boca e meu nariz eram de uma mulher negra. Afinal, tinha uma família predominantemente baiana e mineira, grande parte deles sendo negros e indígenas”, comenta, acrescentando: “me reconhecer como negra me fez me aceitar como eu era. Não era mais parda, ou com um ‘pé na senzala’, eu era uma mulher negra”.

O caso de Ione exemplifica como essa definição por tom de pele pode ser ambígua, mas deixa a dúvida: como diferenciar a questão do DNA da raça? Se a miscigenação brasileira tem como base indígenas, negros e brancos, todos aqueles que possuem em sua árvore genealógica pessoas negras, automaticamente são negros? Bisnetos e netos de índios, também já são considerados como tal?

Vamos por partes

“Somos 99,9% semelhantes e esse 0,1% de diferença tem a ver com a adaptação dos humanos a diversos tipos de ambiente do planeta”, explica o professor e historiador Carlos Eduardo Dias Machado.

De acordo com o professor, a construção da ideia de raça foi implantada por “povos brancos de antigamente e isso, para benefício próprio”. Segundo ele, “precisamos evoluir muito no que concerne respeitar uns aos outros quando falamos sobre essa questão de ‘qual é a sua etnia? ’”.

Marcha da Consciência Negra Solon Neto

Marcha da Consciência Negra de 2017 (Foto: Solon Neto)

O Estatuto da Igualdade Racial define como “população negra o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam auto definição análoga”.

Carlos Eduardo Dias Machado observa que o Brasil é um país de grande miscigenação, e é exatamente por isso, que a discussão sobre raças é complexa.

Mas afinal, o que é raça?

Com surgimento no século XVI, o termo raça, basicamente, foi usado para relacionar traços físicos dos humanos. Mas há muito mais complexidade por trás desse termo: sua origem exata é obscura. O Instituto Geledés afirma em um artigo que para alguns estudiosos ela vem da palavra latina “radix”, que significa raiz ou tronco; porém outros acreditam que ela tem origem na palavra italiana “razza”, que significa linhagem ou criação.

A biologia e a antropologia física criaram a ideia de raças humanas, que diz que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, assim como no mundo animal. Essa divisão estaria associada ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e intelectuais entre os seres humanos.

Desde então, vários trabalhos derivados da ideia de raças diferentes entre a espécie humana foram concebidos, de modo que, enquanto alguns autores distinguiram quatro ou cinco raças, outros chegaram a especificar mais de 20.

Mas se existe confusão na definição da palavra “raça”, por que ainda existem censos populacionais baseados nesses conceitos e por que ainda discutimos questões raciais em pleno século XXI?

Apesar de a maioria de cientistas negá-lo, o termo “raça” não desapareceu totalmente do discurso científico e, principalmente, ainda não desapareceu de todos os discursos que insistem em explicar a vida social.

A discriminação racial existe e é uma realidade no Brasil e no mundo. Tal discriminação tem base na questão da diversidade e, dentro dela, as escalas de cor e tonalidade da pele possuem grande relevância. Logo, para mensurar os problemas causados na sociedade pela discriminação racial, os censos são de grande importância na análise desses fenômenos sociais.

De acordo com o cientista político e atual pesquisador do IBGE, Leonardo Athias, em sua mais recente pesquisa “Investigação étnico-racial no Brasil: entre classificação e identificação”, de 2018, “a identificação étnico-racial é uma interação social e socialmente construída, está carregada de subjetividade, pois é uma maneira de se perceber e perceber os outros. Trata-se, finalmente, de um fenômeno que é influenciado por diversos fatores, uns ligados à história individual, outros ao contexto da classificação”.

Como falamos no início da matéria, atualmente, são cinco as categorias que fundações como o IBGE utilizam para seus censos populacionais e não deve ser novidade para ninguém que essas nomenclaturas não são o suficiente para classificar todos os tons de pele existentes no Brasil.

Então, uma forma correta para que esse tipo de pesquisa pudesse ocorrer, seria expandir as possibilidades de classificação dos brasileiros.

Certo? Talvez não

Existem três modos de classificação racial: o modo oficial (usado pelo IBGE), o popular (que se trata de uma grande quantidade de termos que descrevem raças e cores) e o binário (que é um sistema de classificação com apenas dois termos – negro e branco).

Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio de 1976 do IBGE, não foram dadas opções de classificação de cor quando perguntaram aos participantes sobre sua raça, usando então o modo popular. Das 136 opções dadas na época, nenhuma parecia cientificamente concreta.

Ainda segundo o professor Carlos Eduardo, a questão das diversas tonalidades de pele não interfere em nada na etnia de cada um, principalmente em relação aos negros, que formam o grupo que mais gera conflitos de critérios quando falamos sobre auto declaração racial. “A humanidade evoluiu no continente africano há aproximadamente 315 mil anos. Os povos africanos não são todos de uma só cor e no senso comum brasileiro existe o ideal de que o negro é aquela pessoa de último tom de pele”, explica.

Há, de fato, uma diversidade de cores, que vão desde o negro mais “escuro”, ou seja, mais “retinto” vindo da região da linha do Equador, Sudão do Sul, Nigéria e entre outros, até ao povo mais claro, como, por exemplo, os Khoisan ou Khoi-San. Carlos Eduardo os classifica como “o povo mais antigo do planeta terra”, que deu origem aos asiáticos e indígenas, pois possuem traços asiáticos, como olhos puxados e rosto mais “amassado”. É um povo inicialmente considerado negro e não é porque possuía a tonalidade mais clara, que deixou de ser considerado como tal.

Marcha da Consciência Negra Solon Neto 2

Marcha da Consciência Negra de 2017 (Foto: Solon Neto)

É importante ressaltar que a ideia da existência de uma “raça negra” é mitológica, pois os negros não são da mesma raça ou grupo étnico e se diferem entre si de várias formas. Em relação à tonalidade, pode-se observar que existe o tom de pele mais “avermelhado”, o mais marrom, o mais puxado para o bege e etc. Quando a miscigenação entra nesta equação, o resultado mostra que é praticamente impossível falar em “negros” simplesmente como se fossem classificados por apenas algumas características exclusivas.

Socialmente falando, todos nós temos a necessidade de fazer parte de um grupo, de fazer parte de algo. É aí que a identificação racial se faz presente. Mas quando falamos sobre uma classificação em específico, a negra, fica quase que impossível pensar nessa questão sem atrelá-la ao racismo.

Negros são, afinal, a parcela populacional que mais sofre preconceito racial e estão constantemente sendo deixados à margem da sociedade. Para a classificação racial negra, há muito mais do que o senso estético. E não é para qualquer um, não.

No Brasil, “se assumir negro” é algo extremamente difícil. O filósofo e rapper Clodoaldo Arruda é taxativo ao analisar a questão: “o ‘preto’ no país é pobre, é feio, é o alvo que a polícia quer… Tratar isso como se fosse algo opcional, é algo errado”.

Ele ainda acrescenta que “a consciência negra não veio da necessidade estética” e o negro, seja ele de pele escura ou clara, se assume ou se descobre como tal, para tentar entender aspectos como “porquê um homem negro sofre o risco de ser morto a tiros 4 vezes maior, do quê o risco sofrido pelo homem branco”.

Em relação à tonalidade, Clodoaldo afirma: “não existe uma matiz de cor para definir quem é e quem não é – quem é sabe. Ponto. O que existe no Brasil é um esforço em não se reconhecer isso e essa questão está diretamente ligada ao racismo estrutural”.

Para ele, o negro que não se “reconhece”, que não possui sua consciência, não está alheio. “A negritude está dentro de cada pessoa de cor, por mais enterrada que essa expressão possa estar dentro delas, a questão toda é só descobrir como isso ascende dentro de você”.

Voltando para o caso de Ione, ela diz que o dia em que “se reconheceu como negra”, de fato, fez toda a diferença: “Eu não buscava mais estereótipos de pessoas que não pareciam comigo na mídia e na televisão; parei de alisar o meu cabelo e isso aumentou consideravelmente a minha autoestima e o modo como eu me enxergava. Comecei a militar, a mudar o mundo ao meu redor e a combater situações de racismo com as quais eu lidava todos os dias. Eu, Ione, me tornei outra pessoa”, declara.

Ela reconhece que, nesse momento, o fato de ter a pele mais clara deixou de ser uma “questão” para ela e passou a ser uma “questão” para o mundo. “Você não é tão negra assim”, passou a ser a frase que ela mais ouvia ao se autodeclarar.

Quando alguém se classifica como preto, automaticamente, se presume que aquela pessoa é da raça negra. Mas, quando falamos sobre os mestiços ou pardos, a coisa muda um pouco de figura. Para elas, a definição de raça pode ser muito complexa, pois são pessoas que em muitos casos podem ser vistas como brancas ou negras, dependendo do contexto.

E o pardo, afinal, é negro ou não é?

Antes de tudo, é importante frisar alguns pontos importantes.

Desde o primeiro censo realizado no Brasil, no ano de 1872, o termo ‘pardo’ vinha sendo utilizado para classificar pessoas de ascendência mestiça entre índios, brancos e pretos. No ano de 1890, o termo foi substituído por ‘mestiço’ e só voltou a ser utilizado no censo de 1940 e permanece até os dias atuais. A classificação dos pardos como negros consta no Estatuto da Igualdade Racial (EIR) para sua aplicação, mas não obriga o órgão a abandonar a distinção entre pardos e pretos em suas pesquisas.

De acordo com o professor e presidente da comissão de verificação da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Juarez Tadeu de Paula Xavier, também existem níveis diferentes de organização social que vão de acordo com a tonalidade da pele de cada pessoa e deve-se pensar nessa questão através de uma forma política, muito antes da forma social.

Segundo ele, o combate às questões raciais pode ser trabalhado a partir de duas perspectivas. A primeira, a da minoria, separaria pessoas consideradas “pretas” das “pardas”.

Imaginando esse cenário, em tese, o Brasil então possuiria, de acordo com o último censo do IBGE, um percentual populacional de 8% de pessoas pretas (negras), enquanto que os pardos (mestiços) representariam 46% do total da população brasileira.

Seguindo essa lógica, imagine que as políticas públicas pontuais relacionadas ao racismo e a inclusão social do negro no Brasil sejam voltadas apenas para esse percentual da população. Esses 8% seriam a parcela populacional amparada pelas políticas pontuais, como as cotas raciais e as ações relacionadas ao ativismo do movimento negro.

Vamos guardar essa informação por um segundo. Por enquanto, vamos imaginar que sim, negros e pardos são formas de classificação distintas e devem ser pensadas assim.

Como raça e preconceito são conceitos que andam lado a lado, voltemos para a questão do negro no país e às questões raciais, que Juarez fez questão de trazer à tona.

O racismo no Brasil é proibido pela lei, porém segue velado no espaço público e se abriga com força nos domicílios. Essa percepção pode ser sentida através dos ataques na internet, que partem de quem se sente protegido pelo anonimato e pelos mapas com a distribuição de raças, que mostram que brancos e negros possuem estatísticas diferentes.

Em relação ao preconceito racial no Brasil, Juarez pontua que o desafio dessa questão é dividido em três partes: “a primeira é o preconceito, que é uma visão pré-concebida do negro no Brasil; a segunda é a discriminação que trata-se da segregação física e espacial do negro, e a terceira é o racismo, que implica no alto índice de imobilidade da população negra”.

Para ele, esse combo resulta nos problemas atuais que vão contra o enfrentamento da segregação de raça: “O racismo é genocida, epistemicida, etnocida. É basicamente a destruição do outro”, diz Juarez, que também afirma acreditar que “trabalhar com uma perspectiva de minoria não é o meio mais eficaz para se tentar combater esses problemas sociais, que são, afinal, estruturais na sociedade”.

Isso nos leva a segunda perspectiva citada pelo especialista: a perspectiva de maioria.

Certo. Agora vamos imaginar o cenário em que “pardos” e “negros” sejam classificados na mesma escala social e populacional. De acordo com a opinião de Juarez, convenientemente, os pardos seriam trazidos para a questão racial, como uma estratégia de percepção e de potencialização dos problemas raciais, para que se tome o desafio do racismo no Brasil, como um desafio de maior valia.

Juarez acentua o ponto de vista: “maioria é maioria. Parece-me que, historicamente, é necessário lidar com uma grande maioria para mobilizar essas questões estruturais e superar de forma eficaz todas elas”.

Na teoria, pardo não é negro. Pardo é mestiço.

Mas é possível acreditar que os mestiços só são considerados como negros para potencializarem a relevância das questões raciais? E, nesse sentido, não devem ser englobados a termos como o da ‘consciência negra’ ou não devem ser enxergados como negros ou até mesmo não sofrem do mesmo tipo de discriminação racial que o negro?

Veja, são duas formas de se enxergar essa temática…

O Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, fundado em 2001, na cidade de Manaus, no Amazonas, tem sido crítico de políticas raciais e étnicas. Em seu site, eles classificam as medidas como as cotas raciais “mestiço fóbicas” e de “desmestiçagem”, e referem-se a elas como de natureza contrária à etnia mestiça e danosas à nacionalidade brasileira.

Para eles, pensar na política pública de maioria é “ignorar a defesa da etnia mestiça brasileira e seu povo, a valorização do processo de mestiçagem entre os diversos grupos étnicos, a promoção e defesa da identidade mestiça e o reconhecimento dos mestiços como herdeiros culturais e territoriais dos povos dos quais descendam”.

O órgão, inclusive, instaurou a “1ª Conferência Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Amazonas” contra o chamado “não-reconhecimento da identidade mestiça pelo governo federal brasileiro”.

Para Juarez, embora a opinião contrária seja natural e incentivada, e que claramente, pessoas “pardas” possuem óticas sociais divergentes das pessoas “pretas”, os “pardos” estão muito mais próximos da vivência “preta” do que da vivência “branca”.

“Hoje, quando dizemos que a maior parte das mulheres violentadas no Brasil é de mulheres negras, isso acontece porque juntamos as categorias pardas e pretas” afirma, observando que isso faz sentido porque as mulheres pardas estão mais próximas às mulheres negras, principalmente dos pontos de vista econômico, social, político, cultural e psicológico.

Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo, defende em seus livros “Identidades culturais na Pós-Modernidade” e “Da diáspora: identidades e mediações culturais” que as pessoas são aquilo que elas querem ter como projeto político.

Ou seja, essa questão do “se identificar como uma pessoa negra” envolve muito mais do que uma simples identificação em um censo. O reconhecimento do negro no Brasil está ligado diretamente ao senso de sobrevivência, de consciência e de resistência.

Catharina Rocha, formada em comunicação social – jornalismo pela Universidade Paulista (Unip) e autora do projeto “Tons do Brasil” sobre identificação racial e colorismo.

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