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Por que não deveríamos usar o “Negro da Casa”

20 de junho de 2018

Túlio Custódio, sociólogo e curador de conhecimento, faz uma reflexão sobre o termo “Negro da Casa”, desvendando o que está por trás da expressão e apontando as possíveis consequências em utilizá-la. A expressão, popular a partir de Malcolm-X, tem sido utilizada de forma problemática, segundo ele.

Texto / Túlio Augusto Custódio, publicado originalmente no Medium
Imagens / Reprodução

Há algum tempo vem me incomodando, em diversas discussões entre pessoas negras (militantes ou não), o uso do termo “Negro da casa”. Esse termo é oriundo do termo em inglês “House slave”, e é utilizado em especial — essa parece ser a referência maior — no clássico discurso de Malcolm X, “Message to Grassroots”. Mais incomodado ainda fiquei quando recentemente o termo “transbordou” a comunidade negra, e começou a ser utilizado por pessoas brancas de esquerda (em boa parte, esquerda festiva), para desqualificar pessoas negras no cenário político, como a figura de Fernando Holiday.

É evidente que pessoas como Holiday causam certa gastura a pessoas — como eu — que defendem pautas de direitos humanos a negros. Sabemos que a realidade do racismo e supremacia branca impõe a aniquilação de nossas vidas, tanto na esfera física quanto na cultural e subjetiva (o processo de genocídio, como nos ensinou Abdias do Nascimento), e, por isso, tais pautas estão sumariamente conectadas a manutenção de nossas vidas. Não obstante, o uso da expressão “negro da casa” (especialmente por pessoas brancas.. white fellas: não façam mais isso!) obscurece uma crítica mais consistente do que significa a atuação danosa e violenta de personagens da história como o Holiday. A meu ver, e comentei isso recentemente no podcast A Fita, o problema é que Holiday representa um token dentro de uma estratégia política de certos setores da direita neoliberal, para aniquilar pautas vinculadas a círculos progressistas, como as chamadas “pautas identitárias”.

O problema do Holiday, nesse sentido, não é que ele “queira agradar o Senhor” ou seja um traidor da causa. A questão reside no modo como ele absorve a discussão das questões raciais, de classe e lgbt para uma dimensão individual da experiência, e não constrói uma posição antagônica de caminhos e perspectivas. O que ele faz é aniquilar tais discussões. Quando ele se utiliza de sua pertença de ser negro, periférico e gay, e a partir daí passa a atacar os movimentos ao dizer que suas propostas são “vitimistas”, ele não está propondo uma nova reflexão sobre os termos, e sim os anulando. Anulando a reflexão, anulando a agência e experiência desses indivíduos, anulando os caminhos pautados por cada um desses movimentos para transformação da sociedade e preservação de suas vidas. Porém, não é sobre ele que quero tratar aqui, e sim sobre a ideia de “negro da casa”.

Como mencionei acima, a ideia de “negro da casa” advém primordialmente de Malcolm X, quando se localiza as referências citadas e utilizadas em boa parte dos movimentos negros — e das pessoas que entram em contato essas pautas. Não busquei se há uma tradução do discurso “Message to Grassroots” (acredito que tenha), mas invariavelmente o que é determinante é que as pessoas começaram a mobilizar esse termo, que está politicamente situado no debate dos direitos civis norte-americano dos anos 1960, como forma de demarcar indivíduos negros avessos às perspectivas de suas pautas de luta anti racismo, ou simplesmente consonantes aos interesses do que se entende como “interesse de brancos”. Acredito que a crítica é fundamental no universo do debate político; porém me parece haver algumas limitações para ela pautada no uso dessa expressão. Para explicitar isso, acho que vale a pena retomar o texto original do discurso proferido por Malcolm X em 1963, e entender em que medida aquela ideia estava ali aplicada.

Precisamos, inicialmente, situar Malcolm X e o contexto no qual ele falou aquilo. Ele era membro da Nação do Islã (Nation of Islam), grupo de orientação islâmica conduzido por Elijah Muhammad, que representava dentro do cenário político dos movimentos negros norte-americanos dos anos 1960 o que chamamos de “nacionalismo negro”. O nacionalismo negro é marcado por uma perspectiva mais crítica e ortodoxa dos efeitos do racismo na vida dos negros, de modo que suas táticas e estratégias estavam voltadas para um potencial revolucionário da insurgência negra. A grosso modo, isso implica na crença de que não haveria processo de integração que desse conta da supressão do racismo. Logo, a necessidade de uma revolução negra se colocava como fundamental. E esse é um dos primeiros pontos que podemos apreender do texto de Malcolm X, nesse discurso: ele está demarcando politicamente sua perspectiva contra uma perspectiva que ele considerava assimilacionista e integracionista — na época representada por Martin Luther King e a estratégia na não-violência (desobediência civil).

Malcolm X estabelece, portanto, em seu discurso uma clivagem entre o ideal revolucionário e a da contra revolução, como ele infere representar a não-violência. Ele mobiliza uma noção de revolução que parte de um cenário sangrento de transformação (ou pelo menos, o que talvez seria mais correto afirmar, de um processo com disposição a possibilidade de conflito sangrento) e não do consenso com o opressor. Ele comenta inclusive como que a branquitude fizera diversas revoluções na história, incluindo a revolução francesa, revolução americana e a revolução russa (risos aos universalistas…). Todas, sem exceção, ocorreram com derramamento de sangue. E, o que parecia ser a contra corrente disso, Malcolm X critica a ideia de que havia lideranças negras que pregavam a revolução “dando a face esquerda a tapa”. Isso, para Malcolm X, seria um tremendo contrassenso, e tais pessoas deveriam erradicar o uso da palavra revolução acerca do que estavam fazendo.

É, portanto, nesse contexto que Malcolm X introduz a metáfora que se torna famosa na militância política. Ele propõe, como uma sucessão de continuidades de comportamentos históricos a partir da realidade opressora da escravidão, que havia dois tipos de escravos: o escravo da casa e o escravo do campo.

O escravo da casa (ou “negro da casa”) era a representação da assimilação e integração: este acreditava que era beneficiado pelo sistema, pois comia melhor, se vestia melhor e vivia debaixo do teto da casa grande. Portanto, como estipula Malcolm X, ele defendia o Senhor e sua família. O ponto central da narrativa de Malcolm X é que esse escravo trataria do Senhor como Nós, ou seja, havia uma projeção de pertença e identidade em relação ao opressor.

Por outro lado, havia o escravo do campo. Esta figura era a que mais sofria com a escravidão: trabalhava incansavelmente, sofria castigos físicos, comia mal e vivia mal. Este escravo, diferente do da casa, esperava sair dessa condição, e assim, não concebia uma identificação e pertença ao senhor da casa. Para o escravo do campo era sempre Eles, era sempre O sistema, o mesmo responsável por sua situação degradante. Nesse sentido, Malcolm X se auto filia à tradição comportamental deste tipo de escravo, ao afirmar que era este tipo de escravo que representava as massas e que detinha o potencial revolucionário, o potencial de derramar sangue pela sua sobrevivência.

Apesar da metáfora ser forte, no contexto de vocabulário político, ela possui alguns problemas e limitações para ser utilizada na atualidade. O que Malcolm X fez com essa ideia é estender a divisão do trabalho do regime escravocrata a uma perspectiva moral de ação e resistência ao regime, conectada com a distância de função e relação com o senhor. Ou seja, ele criou uma relação ideológica entre quem está distante e atua de maneira mais “disposable” (facilmente substituível) X quem atua mais próximo ao senhor e cumpriria tarefas mais qualificadas (ou seja, menos substituíveis). Há, portanto, uma mistura na construção dessa analogia entre função e consciência, mesmo que a força da crítica resida mais sobre a consciência do que a função.

Sabemos pela documentação historiográfica, no entanto, que isso não era necessariamente a realidade. Para ficarmos com um exemplo, lembramos as mulheres negras que trabalhavam na casa. Estas estavam sujeitas ao estupro e violência sistêmica não apenas do senhor, mas também de sua família, como da esposa (há diversos relatos das mulheres brancas, esposas do senhor, que maltratavam e castigavam essas mulheres negras por “ciúmes”) e dos filhos (entre vários exemplos podemos citar a iniciação sexual dos meninos com as escravas). Não sei se muitos sabem mas essa visão de novela da “senzala longíqua” (em alguns contextos a representação mais parece uma “favela dentro do terreno da fazenda”) não procede necessariamente, mesmo sabendo que as condições de permanência dos escravos eram extremamente terríveis. Existem plantas de antigas fazendas que mostram que havia uma área conectada à casa grande, na qual as mulheres negras ficavam — e sim, essa área era a uma senzala também.

Eu, pessoalmente, me lembro de visitar em 2012 o Museu Senzala Negro Liberto na cidade de Redenção (Ceará), e ver na cozinha um espaço utilizado (uma espécie de fenda e janela para o subsolo), que era utilizada pelos senhores para escolherem as mulheres negras que iriam estuprar (temos que utilizar o termo efetivo da ação) à noite. O espaço da senzala, por exemplo, era um outro anexo do porão, com altura de no máximo 1,8m (eu andava curvado, e tenho 1,83m), extremamente úmido, escuro e com pouco circulação de ar — acho que foi um dos lugares mais aterrorizantes que estive. Lembro ainda do espaço de castigo, que era algo que tinha centímetros de espaço, no qual escravo ficava amarrado e fechado, como um armário, mas feito de muro, e havia na parede marcas de “arranhadura” ainda presentes — mais de 100 anos depois (veja: tão perto, e tão longe, mas nem tanto assim…). As condições eram terríveis, portanto, em grande parte para todos os escravos.

Ademais, apesar da expressão “negro da casa” funcionar como uma metáfora do que seria assimilação e integração X separação e não-identificação em um sistema de poder, temos que ter em mente que Malcolm X estava demarcando uma posição política em relação a uma estratégia que considerava antagônica a sua. Ou seja, é um uso localizado e contextual, forte e memorável — como todo discurso de Malcolm era feito para ser — , mas que não necessariamente representa oposições (as mesmas) efetivas no cenário da luta anti racismo na atualidade, em termos de época, lugar e contexto.

Malcolm-X e Martin Luther King Jr, em 1964. (Reprodução / Getty Images)

Uma das consequências, aliás, da falta de contextualização dessa perspectiva é a criação de uma falsa clivagem entre negros conciliadores (representados por Martin Luther King) X negros radicais (representados por Malcolm X). Nada mais falso ou esvaziador do legado dessas lideranças. Para tanto — dado que não há muito espaço para discorrer sobre isso aqui — , pode-se acessar os escritos do final da vida de Malcolm X (após sua peregrinação a Meca), bem como os discursos do final de vida de Martin Luther King (destaque para discurso contra Guerra do Vietnam) para perceber que havia uma linha mais tênue entre estratégias e perspectivas de como operar a luta por direitos civis dos negros norte-americanos na época [uma recomendação interessante, além dos textos transcritos dessas lideranças, é o livro de Cornel West, Black Prophetic Fire, no qual ele trata sobre a tradição de lideranças proféticas nas comunidades negras. Ali, entre outros apontamentos, ele desfaz essa falsa oposição, esse “Fla-Flu do ativismo negro”, acerca desses líderes].

Outra limitação imposta pelo uso do termo na atualidade é possibilidade de entendermos e ampliarmos nossa relação com estratégias negras de ascensão e luta contra racismo diante de uma realidade do capitalismo contemporâneo. O transbordamento da perspectiva comportamental baseada na divisão do trabalho do regime escravocrata, como operada no discurso de Malcolm X fundamentado na relação metafórica de função e consciência, para o capitalismo é falha. De certa maneira, o capitalismo na sua forma neoliberal é um sistema que compreende uma racionalidade política. Isso implica em uma internalização das estruturas normativas do sistema que vão muito além da divisão do trabalho, e perpassa a conduta dos indivíduos em todo sistema, não sendo atrelada tão somente à função.

É claro que materialmente temos a manutenção da divisão histórica de negros como legado da escravidão, em postos precarizados e não qualificados de trabalho em sua grande maioria. Não obstante, mesmo os negros inseridos (geralmente os que aparecem no debate sendo chamados de “negros da casa”) também não detêm poder estrutural de integração e pertença com as elites — mesmo que isso ocorra em discurso. A racionalidade neoliberal depõe uma realidade de internalização da normativa do capital em todos os indivíduos, e isso inclui as massas também, na forma da moralização da liberdade e da lógica de competitividade entre os indivíduos — cada vez mais cada um por si.

Em suma, o que significaria dizer é que a grande massa das pessoas seriam “o tal negro da casa”, porque a forma como capitalismo adentrou em nossas vidas está em um lugar do agir, pensar e ser que está muito além do lugar de proximidade e função que temos dentro do sistema. Isso não é comparar simetricamente a escravidão à dinâmica de um trabalhador precarizado na atualidade. O que significa é que, tanto o trabalhador mais precarizado quanto um Holiday-da-vida, ambos podem possuir as mesmas perspectivas normativas sobre o que consideram importante, de como conduzem suas vidas e de como estabelecem estratégias de sobrevivência e existência. Ou seja, na perspectiva de assimilação e integração — chave da construção crítica da ideia de “negro da casa” marcado no discurso de Malcolm X — , ampla maioria está integrada porque se trata de uma racionalidade, de uma normatividade que adentra todas as esferas da vida e experiência desse sistema.

Outra questão que entendo como limitadora, além da descontextualização do momento histórico e a percepção sobre a forma de dominação promovida pelo capitalismo atual, é a reprodução de uma noção de autenticidade racial. Essa ideia me vem a partir da análise que Cornel West desenvolveu em Race Matters acerca do raciocínio de base racial X raciocínio de base moral (temos uma edição brasileira, lançada pela Companhia das Letras, chamada de Questão de Raça, infelizmente esgotada… Então: Por favor Cia. das Letras, relance esse livro!! ❤ ).

Ao analisar as implicações do capitalismo e racismo histórico, enquanto poder e moralidade, para as experiências vividas das comunidades negras, West desenvolveu o conceito de Niilismo Negro, que é a noção de degradação e depressão subjetiva que negros vivem, a partir de uma vida vivida sem sentido, sem esperança e sem amor. Para a superação dessa realidade degradada, é mister a mudança de paradigma das lideranças negras em relação a como tratar do racismo.

Nesse sentido, West opõe a ideia de um raciocínio que estaria estabelecido tão-somente na questão da raça, que embasaria uma noção de autenticidade racial. Tal visão seria responsável por limitar a reflexão em termos de quem é ou não é mais negro. A discussão, portanto, perde o horizonte da situação moral implicada naquelas vidas destroçadas pela supremacia branca, situação catalisada pelo capitalismo e suas normatividades de desigualdade.

Dessa maneira, apenas a partir de uma perspectiva moral seria possível transcender essa noção de autenticidade, e estabelecer uma visão que não fechasse os olhos para determinadas opressões veiculadas dentro da comunidade (como de gênero, sexualidade e classe). Também seria possível desenvolver o que ele denominou de maturidade racial, baseada entre outras coisas sobre o pressuposto de vidas que deviam ser preservadas e defendidas.

O que ocorre, situando a discussão, é que a aplicação contemporânea de “negro da casa”está vinculada a uma lógica de autenticidade racial, erigida em uma normatividade combativa da luta contra o racismo, mas que pouco diz e informa sobre a realidade ampla da existência negra contemporânea. O negro ou negra que não combate ativamente as estruturas de racismo a qual está subjugado e nos termos que seriam informados por essa luta, não seria, portanto, um negro ou negra legítimo em sua pertença. Quando olhamos para a forma como racismo desenvolveu estruturalmente o colorismo, a ascensão contida e individual de negros na sociedade, percebemos o quão limitadora é tal abordagem. Ainda mais, como bem refletiu Stephanie Ribeiro brilhantemente em seus textos sobre “Paradigma do Negro Único” (aqui e aqui), diante de uma realidade em que o sistema designa poucos espaços para nós.

Para piorar, essa mesma lógica de autenticidade é utilizada pela esquerda branca (que parece esquecer quem é na fila do pão da história) como forma de aprofundar seu racismo de maneira “insípida”, afinal estaria usando um termo utilizado pelos próprios negros. Nem preciso ir além para dizer o quanto isso é equivocado, violento e racista, não?

“A cabana do Tio Tom”: obra que marca uma perspectiva racista sobre docilidade e servidão dos negros (Reprodução / Medium)

Ok, mas diante disso, como poderíamos suprimir o uso desse termo? E pelo o quê? Bom, na minha visão, ainda em processo de desenvolver melhor esta ideia, poderíamos se apropriar da enorme tradição literária negra para pensar nesses arquétipos. Personagens como Dr. Bledsoe, em Homem Invisível de Ralph Ellison, por exemplo, que conectam um comportamento visto como danoso e de auto-ódio, mas sempre na perspectiva de um personagem e não em um posto de divisão de trabalho societal associado a um comportamento. Um personagem, portanto, que joga negativamente contra outros personagens negros, como um espelho daquele comportamento na sociedade pode ser um pouco mais apropriado, enquanto crítica, do que utilizarmos uma posição que não corresponde a total realidade histórica qual nossos ascendentes estiveram submetidos. Podemos ainda recorrer ao personagem “Pai Tomás”, oriundo do romance “Uncle Tom’’ Cabin” , que marca pejorativamente a noção do negro como dócil, subserviente, interessado na integração. Ambas são construções ficcionais de tipos comportamentais que poderiam ser transbordadas para debate e ambiente políticos, afim de demarcação de posições.

No entanto, a limitação da autenticidade se coloca ainda. Afinal, ao categorizar o comportamento de um indivíduo que age, conforme o sistema espera, estamos afastando mais ainda a possibilidade de estabelecer a consciência no mesmo, bem como de desconstruir padrões comportamentais impostos estruturalmente pela opressão, assimilados nesses indivíduos. É nesse sentido que a perspectiva moral se coloca como mais interessante: uma crítica política dura mas pela agregação, pela solidariedade e constituição de laços. Afinal, lembrando o diagnóstico do niilismo negro, precisamos refazer nossos sentidos da história, nossos laços e nosso amor. Amor próprio.

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