O programa de trainee da Magazine Luiza, voltado para pessoas como eu, foi criado em razão de a companhia varejista ter enxergado que em uma sociedade estruturalmente racista e desigual como a nossa é impossível competir de igual para igual
Texto: Nataly Simões | Imagem: Pexels/Christina Morillo
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Nas redes sociais quase todos os dias algum assunto viraliza e divide opiniões. O assunto da vez é a decisão da gigante varejista Magazine Luiza de iniciar um processo de seleção de trainee exclusivo para pessoas negras. Segundo a empresa, o objetivo do programa é “trazer mais diversidade racial para os cargos de liderança da companhia, recrutando universitários e recém-formados de todo Brasil, no início da vida profissional”.
Não é de ontem que a “Magalu” é elogiada na internet por suas ações, como a de um caminho dentro do aplicativo da loja para as mulheres denunciarem violência doméstica. O programa de trainee exclusivo para negros é mais uma das ações da empresa que se espelham numa realidade que não deveria ser aceita por ninguém.
De acordo com o presidente da companhia, Frederico Trajano, embora 53% dos funcionários da empresa sejam negros, apenas 16% dos líderes são dessa raça/cor. Ao longo de 15 anos, a “Magalu” formou cerca de 250 trainees. Só 10 deles eram negros. “Essa dificuldade de acesso tem sido um problema para uma companhia que acredita que a diversidade aumenta a competitividade, e queremos resolvê-lo”, disse o CEO, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
A participação de pessoas negras em cargos de liderança da empresa varejista ainda é maior que o total de pessoas pretas ou pardas contratadas em 2019 como líderes em todas as empresas com sede em São Paulo. No maior estado do país, somente 3,68% dos profissionais em cargos de liderança contratados no ano passado eram negros. As mulheres negras não chegam nem a 2% dos líderes.
Eu gosto de números porque eles nos auxiliam na compreensão da complexidade que é o racismo estrutural e um de seus braços – o institucional – que impede pessoas negras de crescerem profissionalmente, mesmo com formação superior, conforme nos explica a presidente e fundadora da EmpreAfro, Patrícia Santos.
“Está implícito no dia a dia de boicote, nas atividades de desenvolvimento desses profissionais dentro da empresa, na hora das promoções, quando há seleção para cargos de liderança em que líderes brancos escolhem outras pessoas brancas”, afirmou a executiva, em entrevista concedida ao Alma Preta no final de julho.
O boicote citado por Patrícia não choca nenhuma pessoa negra, especialmente nós que passamos pelo ensino superior e ainda na busca por oportunidades de estágio nos deparamos com um mercado de trabalho que de cara nos mostra não ter sido planejado para nos incluir. Nas áreas da comunicação e do jornalismo, eu enquanto universitária negra e cotista, perdi as contas da quantidade de entrevistas que eu fiz e não fui selecionada.
Nas primeiras etapas, em que geralmente se avalia o conhecimento do candidato e a qualidade do texto, eu sempre era aprovada. Mas depois de muita espera, chegava o e-mail: “seu perfil não é compatível com o que buscamos no momento”. Nas vezes em que era possível passar pelos corredores da empresa, era impossível não observar que a maioria dos profissionais ali eram brancos – às vezes todos.
Nos bastidores, com outros candidatos, eu ouvia relatos de jovens quem tinha na bagagem, a fluência no espanhol, no alemão – além do inglês, um carro na garagem e uma distância mínima do local de trabalho, o que é o perfil perfeito para toda empresa. Como se compete de igual para igual assim? Nós, pessoas negras, dificilmente conseguimos uma vaga de estágio. Já imaginou ocupar um cargo de liderança? Muitos de nós sequer sonhamos com isso.
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O programa de trainee da “Magalu” voltado para pessoas como eu foi criado em razão de a companhia ter enxergado que em uma sociedade estruturalmente racista e desigual como a nossa é impossível competir de igual para igual. É por isso que a descrição do processo seletivo traz que conhecimento de inglês e experiência profissional anterior não são pré-requisitos. Ainda assim, essas informações somadas a um salário de R$ 6,6 mil, com benefícios e bônus de contratação são inaceitáveis para a branquitude.
A juíza do Trabalho, Ana Luiza Fisher Teixeira, classificou a decisão da companhia varejista como “inadmissível”. Para a juíza, que é uma das coordenadoras do Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet), do Ministério da Economia, e que integrou a comissão de redação da reforma trabalhista do governo do ex-presidente Michel Temer, um programa de trainee focado em equiparar o número de líderes negros ao de líderes brancos não passa de “discriminação em razão da cor de pele”. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a mensagem publicada em rede social na manhã do sábado (19) foi apagada por volta das 16h do mesmo dia.
O incômodo da branquitude ao se deparar com a possibilidade de ver pessoas negras fora de cargos subalternos e das estatísticas de assassinato também chegou à Câmara dos Deputados. O vice-líder do governo na Câmara dos Deputados, Carlos Jorgy, afirmou no Twitter que entrou com uma representação no Ministério Público contra a “Magalu” para que seja apurado crime de racismo. A companhia prontamente respondeu que o programa de trainee possui legalidade e que ações afirmativas e de inclusão do mercado profissional fazem parte de uma nota técnica de 2018 do Ministério Público do Trabalho.
A “Magalu” evidentemente assumiu um compromisso que gera um incômodo comum quando se trata de combate ao racismo. Peço licença à Luanna Teófilo, para parafraseá-la aqui: Lutar contra o racismo não é algo cômodo e divertido. Se você está achando legal e gostoso ser antirracista é porque você não é. Criolo também diz: Uns preferem morrer ao ver o preto vencer.
O Brasil precisa que muitas outras empresas também criem esse incômodo, como a Bayer, química e farmacêutica, também fez ao anunciar na mesma semana um programa de trainee voltado a profissionais negros, com salário de R$ 6.900 e benefícios.