A política de drogas, que contempla desde o sistema penal até a assistência social, tem gerado debates intensos na sociedade mundial. Não faltam exemplos de conflitos históricos relacionados ao tema, como é o caso das guerras do Ópio na China, no século XIX, da lei seca nos EUA, entre 1920 e 1933, e dos recentes processos legislativos e judiciais relacionados à maconha em países da América e Europa.
Os caminhos trilhados até aqui parecem dicotomizar a discussão: de um lado, a proibição e o combate, previstos no direito criminal e aplicados pela polícia e pela justiça; do outro, a descriminalização e legalização, que busca equacionar a questão das drogas trazendo-a para o escopo das políticas públicas de saúde, educação e assistência social.
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Na recente eleição, finalizada com a vitória de Lula para a Presidência do Brasil a partir de 2023, o assunto voltou à tona. Enquanto Bolsonaro, candidato da extrema direita, se posicionou a favor do extermínio do tráfico de drogas e da redução da maioridade penal, Lula tem se esquivado, afirmando que “essa é uma questão que ou o Congresso Nacional trata, ou a Suprema Corte cuida”.
Em meio à corrida eleitoral, o Conselho Federal de Medicina (CFM) chegou a editar uma normativa que restringia o uso de remédios à base de canabidiol a alguns quadros de epilepsia infanto-juvenil, porém voltou atrás dez dias depois, devido ao recebimento de duras críticas por especialistas e pacientes que dependem dos medicamentos. Com a suspensão da resolução, fica novamente a cargo de cada médico recomendar o tratamento.
Apesar de ainda criminalizar a maconha, o Brasil, por meio do Ministério da Saúde, autorizou em 2015 o uso do canabidiol (CBD), um dos princípios ativos da erva, para fins terapêuticos, sendo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o órgão estatal regulador da sua distribuição. No entanto, a normatização do comércio farmacêutico do CBD, que é restrito e controlado por poucas empresas, por si só, não é suficiente. E por isso, ativistas e pacientes de todo o país enfrentam grandes batalhas no Congresso Nacional a fim de conseguir a autorização, no caso medicinal, para o autocultivo.
Na outra “ponta” da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal (STF) vinha adotando uma série de decisões no sentido oposto às políticas tradicionais proibicionistas, como: admissão de progressão de regimes (fechado para aberto) e inconstitucionalidade na proibição de liberdade provisória a réus processados por tráfico de drogas, permissão de eventos como a “marcha da maconha”, além dos processos, em andamento, sobre a legalidade do porte para o uso recreativo e a compra de sementes de cannabis.
Parece perceptível que o esforço do Estado, através do aparelhamento policial e das forças de segurança, não tem sido efetivo no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Os dados de violência e a sensação de insegurança da população só aumentam nas cidades brasileiras, sobretudo nas capitais, exigindo uma reflexão mais profunda sobre a relação entre violência urbana e política de drogas.
Breve histórico da “guerra às drogas” no Brasil e no mundo
Até 2006, a política de drogas brasileira era regulada pela Lei 6.368/1976, a “Lei de Tóxicos”. Considerada ultra-proibicionista, a norma criada no período da ditadura militar (1964 até 1985), previa a possibilidade de internação compulsória, bem como penas de seis meses a dois anos de detenção para usuários e três a 15 anos para traficantes.
A base legal adotada pelo governo militar foi absolutamente influenciada pelo modelo americano de “guerra às drogas”, popularizado pelo então presidente Richard Nixon, em 1971, para quem a proibição diminuiria o consumo e a dependência.
Entretanto, apesar desta longa jornada de combate ao narcotráfico, os números de consumo de drogas nos Estados Unidos atingiram níveis alarmantes – sendo atualmente o 2º país em uso de maconha e 1º de cocaína no mundo, alcançando os maiores índices de sua história em relação à heroína e metanfetamina nos últimos anos.
Pior ainda é o cenário de violência nos países periféricos. No caso da América Latina, após uma grande onda de conflitos na Colômbia, os mexicanos viram as disputas entre cartéis e forças de segurança provocarem mais de 100 mil mortos e outros 20 mil desaparecidos, apenas na última década. Segundo dados do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (Unodc), encontram-se no país 16 das 50 cidades mais perigosas do mundo. Já o Brasil lidera o ranking mundial em números absolutos de assassinatos, com 47 mil mortes apenas no ano de 2021.
Ao contrário das práticas proibicionistas, alguns países têm optado por outros modelos de política de drogas. A pauta ganhou apoio de organizações sociais e personalidades políticas importantes, como os ex-presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, do México, Ernesto Zedillo, da Colômbia, César Gaviria, e do Uruguai, José Pepe Mujica. No caso da maconha, as normas avançaram no uso medicinal, porém a criação de marcos legais para o cultivo e consumo recreativo ainda é uma barreira moral e jurídica em quase todos os países da região.
No caso brasileiro, desde o início da vigência da nova lei de drogas em 2006, até 2016, a população carcerária subiu 81%, sendo que um a cada três presos respondia por tráfico de drogas. No caso das mulheres a taxa é ainda maior: dois terços. Apenas no estado de São Paulo, o número de presos por tráfico de drogas cresceu 508% em 12 anos. Os dados do “Atlas da Violência” apontam para uma correlação entre o encarceramento em massa e a elevação nos índices de homicídio. Em 2016, foram 62.517 assassinatos, sendo que mais da metade teve como vítima os jovens, bem como 40% a população negra.
O aumento da violência e das prisões relacionadas ao narcotráfico é parcialmente explicado pela própria revisão da lei brasileira, que pretendeu endurecer as penas a traficantes e aplicar punições mais leves a usuários. No entanto, há uma confusão jurídica nessas categorias, onde pela Lei nº 11.343/2006, para diferenciar usuário e traficante, o juiz levará em conta a quantidade apreendida, o local, condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, além da existência ou não de antecedentes. Essa mesma interpretação deve ser feita pelo policial, quando aborda e prende, e pelo promotor, quando denuncia.
O artigo 28 da Lei nº 11.343 diz respeito ao porte de drogas para consumo próprio, que apesar de ser crime, tem penas brandas, como advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa. Já o artigo 33 diz sobre o tráfico de drogas, que prevê como pena a reclusão, de cinco a 15 anos. Estabelece-se a mesma punição a quem compra e vende sementes ou faz o cultivo de plantas de maconha. Cabe, assim, às autoridades policiais e judiciais a subjetividade de julgar as pessoas no ato consumado. Na prática, o que bem sabemos: pobre na favela é traficante e o rico no condomínio é usuário.
Se a “guerra às drogas” não reduziu os danos sociais e o consumo, foi absolutamente responsável pelo aumento da violência, sobretudo nas periferias das grandes cidades, além do encarceramento da população. Em todo o mundo surgem novas propostas de como lidar com a questão sob uma perspectiva humanitária, tendo o Estado a responsabilidade de garantir a integridade do uso, inclusive com programas de prevenção e alerta sobre os riscos à saúde. A pergnta que persiste, portanto, é: até quando o Estado brasileiro fugirá do real problema das drogas enquanto é o principal autor do genocídio do povo preto e periférico?
* Este artigo integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
Iago Vernek Fernandes é professor da rede pública, membro do Conselho Diretor do Intervozes e ativista pela legalização da maconha.
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