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Porque me amar me fez amar o Tulio

12 de junho de 2018

O Alma Preta separou depoimentos relacionados às diversas formas de demonstração e sensação de afetividade da população negra. Neste texto, Stephanie Ribeiro fala sobre as dificuldades que mulheres negras enfrentam em relacionamentos

Texto / Stephanie Ribeiro
Imagem / São Paulo Fotografia

Tem uma frase da Bell Hooks, em seu livro “Vivendo de Amor”, na qual ela diz:

Quando eu era criança, algumas mulheres negras me amaram de forma “incondicional”. Assim aprendi que o amor não precisa ser conquistado. Elas me ensinaram que eu merecia ser amada; seu carinho nutriu meu crescimento espiritual.

Fico pensando sobre a minha trajetória enquanto mulher negra até aqui e em como ficou claro o lugar que ocupo socialmente. Não há dúvidas de que mesmo aos trancos e barrancos de uma vida traçada na ausência paterna, eu fui criada cheia de amor. Inclusive, ao sair de Araraquara-SP, eu não tinha vivido outra realidade sem ser esse do amor. Meus avós, mãe e tias me amaram incondicionalmente, me possibilitando viver o que é um “conto de fadas” para uma menina negra, em um mundo onde já novas, somos ceifadas do direito de sonhar.

Óbvio que minha realidade só ficou clara para mim como não sendo normal quando abri a porta e encarei o mundo. Estar na universidade foi essa passagem para mim: já havia passado por uma série de manifestações racistas até ali, mas ainda podia voltar para casa e ter uma redoma protetora de afeto e liberdade. Na universidade, eu mudei de cidade, de casa, de grupos de amigos e me vi sozinha. Foi ali onde entendi que as pessoas não queriam e nem estavam dispostas a amar mulheres negras.

Daquele momento em diante, comecei a rever tudo que já tinha se passado comigo e como eu havia perdido os sinais sobre a realidade, até ela ser me colocada na mesa de forma tão brusca e violenta. Não há nada mais devastador do que perceber que, pela sua cor, o seu lugar no mundo é o de quem sofre violência, seja da estrutura, seja de indivíduos que reproduzem e mantêm essa estrutura.

Amar não é sobre escrever recados em cartões em formato de coração. O amor que me foi ensinado, é aquele em que sou respeitada dentro da liberdade de ser como eu achava que deveria ser. Existe algo muito mágico na forma como minha mãe me amou ao longo da minha vida, que me fez chegar até aqui. Ela me deu tantas possibilidades, apoiou de tantas formas, que para mim foi estranho encarar um mundo que dizia que a “boa mulher negra” era aquela quieta, invisível, que fica nos fundos dando suporte, pois ela é a coadjuvante na sua própria história.

Mas eu fui criada para ser protagonista, para ser o próprio sol. Quando percebi que se eu falasse, discordasse, brigasse, tivesse minha opinião e fosse o “sol”, as pessoas não iriam gostar de mim, eu preferi que não gostassem de mim, do que ser o que eu não poderia ser. E foi doloroso. Algumas pessoas dizem que isso é imaturidade: eu acho que a imaturidade me libertou, pois foi nesse momento em que comecei a ser o que sou hoje.

Eu não tenho medo de não ser amada, tenho medo do silêncio que me pedem para eu ter direito ao amor. Foi nesse momento que Tulio entrou na minha vida.

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Túlio Custódio e Stephanie Ribeiro (Foto: São Paulo Fotografia)

Já disse em vários momentos que não vivi e não vivo um conto de fadas – nenhum relacionamento pode ser fantasiado dentro dessa lógica, tampouco o meu. Eu mesma já escutei várias vezes, e já li centenas de outras, que meu parceiro eu somos um “exemplo” ou que “nosso relacionamento é ideal”. Algumas pessoas chegam até usar o machismo para me subestimar dentro da nossa relação, chegando a dizer que eu tenho “sorte”. Para mim, tudo isso só faz sentido, pois mesmo em um país de maioria negra, parecemos mais exceção do que regra.

Sendo assim, de alguma forma, fomos alçados a exemplos dentro de algo muito íntimo, que é nossa relação. Eu amo muito Tulio e realmente amo muito nós dois juntos. Eu me vejo nele e ele se vê em mim. Não posso negar que isso se passa por raça, afinal, namorar alguém negro me faz me olhar de outras formas. É como se eu não pudesse fugir de mim mesma, pois ele me lembra isso todo dia.

Contudo, Tulio não queria namorar comigo. Tulio era um garoto negro de classe média em São Paulo, que estudou em escola particular a vida toda, fez USP, trabalhou e trabalha em empresas de maioria branca, é fluente em outras línguas e vivia a vida da classe média paulistana “comum”. Ele não queria namorar comigo! Porque para ele e para própria estrutura social, soava mais interessante esse homem estar com uma pessoa não negra. Simples e direto. Tulio era o homem negro que a branquitude admitia ter do lado, para soar empática e compreensiva. E não se relacionar com uma mulher negra também fazia parte desse jogo de aceitação dele em alguns espaços.

Eu sei que ele não queria namorar comigo, porque em algum momento, ele me disse isso: “minha próxima namorada provavelmente será branca.” O que se passou na cabeça dele para estar comigo, sair comigo, e ao mesmo tempo, me dizer que ele namoraria uma mulher branca, sinalizando que eu não serviria? Por que Tulio queria e precisava me magoar? Essas perguntas foram as mesmas que fiz para ele.

Hoje, acho que ele está se dedicando a achar as respostas, mas acho importante falar sobre esse momento, sobre como ele fez com que eu namore com ele e tenhamos um relacionamento estável e saudável. Pois até ali, eu também nunca tinha tido a coragem para dizer que algo acontecia e o que estava me magoando. Eu sempre guardava tudo e fica esperando aquele rompimento para encher a caixa de mensagens da pessoa com uma lista de momentos que me senti mal com suas atitudes. Eu fui eu mesma ali, pois estava disposta a abrir mão do que não me servia, se isso fosse me fazer mal.

Naquele momento eu respondi, disse que ele estava me magoando para tentar me fazer inferior. Respondi da mesma forma que respondo todas as coisas que acho absurdas em outros contextos. Respondi porque como mulher negra, eu fui ensinada a responder a violência para me defender e não havia motivo para não fazer aquilo ali. Aquele homem precisava ver a dor que ele causou ali olhando para mim, precisava ver nos meus olhos como ele tinha me ferido e como isso também era sobre ele. Sobre ele querer me tratar como alguém distante, quando para mim e para ele mesmo, estava óbvio que éramos próximos mesmo nas nossas subjetividades.

Isso é sobre amor, mas também é sobre raça. E ele sabia disso, mas não queria ser lembrado disso. E eu deveria fazer isso naquele momento. Disse que ele sequer me surpreendia fazendo o que homens geralmente fazem com mulheres negras: nos fazem acreditar que não somos boas o bastante e, muitas vezes, sem nem ao menos usar palavras.

Voltei para casa devastada e consciente que tinha feito o certo. Eu tenho certeza de que quando palavras e atos são feitos por homens negros, eu me sinto mais agredida ainda. De alguma forma, é como se eu me sentisse traída, dentro das nossas lutas. Eu sempre me vi agente ativa da luta antirracista. Então, como posso ser descartada em minutos por aqueles que caminham ao meu lado pela tal emancipação?

Mesmo assim, hoje namoro Tulio. Acho nosso relacionamento feliz e saudável. Acho que cada um de nós desafia o outro a procurar o melhor de si mesmo. Eu namoro o Tulio porque, diferente de todos com quem eu já tinha me relacionado até ali, ele me pediu desculpas. E não foram desculpas imediatas: foram desculpas em que era nítido que ele estava mal por ter me feito mal.

Eu nunca tinha visto um homem se sentir mal e procurar mudar por me fazer mal – mudar não é postar coisas no facebook. É ler o que leio, debater entre os seus, procurar terapia, rever suas escolhas e questões íntimas. Tulio fez isso por nós, pois em algum momento em que a gente sequer namorava, ele não soube entender porque ele, um homem negro, fez de mim o alvo para reafirmar seu poder de gênero. Eu acho que isso é amar sem querer meu silêncio: é identificar suas falhas e trabalhar nelas para nosso bem estar coletivo. Por isso resolvi ficar.

Então, quando me pedem para maneirar, pois tem muita gente que sabe que sou crítica a algumas condutas e falas dele, ou me dizem que sou superprivilegiada por ter um cara, acho que as pessoas esquecem que quando você é negra, você tem que sinalizar para seu parceiro o que é a vivência de uma mulher negra, mesmo quando ele é um homem negro. E que após isso, você ainda tem que decidir se fica ou se sai. Na eterna disputa de narrativas eu fiquei e vou ficar até quando isso for bom para mim e para nós.

Afinal, na minha concepção, relacionamento não é sobre achar alguém perfeito. Na nossa estrutura, o privilégio é achar alguém disposto a te escutar. Tenho isso. E que bom, porque não mereço menos do que isso.

 

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