O jornalista, documentarista e ativista do Craco Resiste, Daniel Mello, encreveu sobre como o sistema prisional está ligado à região que concentra usuários de drogas em São Paulo e à população em situação de rua
Texto / Daniel Mello | Imagem / Agência Brasil
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Dados da Prefeitura de São Paulo, revelados pela TV Globo, mostram que a Cracolândia da Luz, região central da cidade, encolheu 66% em um ano. Uma mentira institucional.
Não estamos falando de um lugar, mas de um grupo de pessoas. Ainda que imagens aéreas mostrem que em julho de 2018 havia, em média, 1,7 mil residentes no fluxo e esse número caiu para menos de 600 neste ano. Não é possível acreditar que as mais de mil pessoas que não estão mais naquela esquina simplesmente sumiram.
Elas foram, em sua grande maioria, dispersadas para outros pontos da capital pela violência rotineira das ações policiais. Na última quarta-feira, 24 de julho, por exemplo, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) distribuiu bombas de gás contra a multidão sem que houvesse nenhum tipo de agressão ou ameaça do outro lado.
Em maio, Adelia, uma usuária da área foi morta com um tiro na cabeça em um crime nunca explicado. A bala mortal não foi encontrada, assim como as imagens dos drones usados para patrulhar a região e produzir os dados – como os mencionados no início deste texto – ainda não apareceram.
A truculência da GCM e da Polícia Militar vai de encontro ao fechamento dos serviços no entorno da Cracolândia em uma tentativa declarada de fragmentar o fluxo. Essa operação para esconder essa população é justificada pelo coordenador de Saúde Mental do município, Arthur Guerra, como uma forma de facilitar as abordagens aos usuários. Convenientemente, também ficam mais difíceis de serem contados a olho nu dispersos por vários bairros da região central.
Cada vez mais gente dorme na calçada
A resistência da Cracolândia em desaparecer, apesar de todo o esforço e violência dos governos municipal e estadual, talvez esteja ligada à constatação de quem circula pela cidade de que a população em situação de rua vem crescendo nos últimos anos.
Sem um novo censo específico desde 2015, esse aumento aparece em outros dados, como o divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo em junho e que mostra que as abordagens dos serviços municipais tiveram alta de 88% em três anos, de 2015 para 2018.
Um dos fatores mais apontados para o perceptível crescimento do número de pessoas que dormem nas calçadas é a crise econômica que afeta o país nos últimos quatro anos. Porém, é fundamental lembrar da relação que existe entre pessoas que vivem nas ruas e a política de encarceramento no Brasil.
O levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica que a quantidade de pessoas presas vem aumentando e chegou a mais de 812 mil em 2019.
O sistema prisional quebra vínculos familiares e de afeto. As possibilidades de ingresso no mercado formal de trabalho são praticamente destruídas. A saúde, com o atendimento médico precário e a alta proliferação de doenças como HIV e tuberculose, também pode ser seriamente comprometida. Assim, não podemos ignorar que 40% da população em situação de rua de São Paulo, segundo o Censo Municipal de 2015, passou pela cadeia. Além disso, 12% passaram por internações na Fundação Casa.
A Cracolândia, que antes de ser meramente uma aglomeração de pessoas que usam drogas, é um lugar onde se refugiam aqueles que têm mais dificuldade de se incluir na sociedade, mostra percentuais mais dramáticos dessa realidade.
A pesquisa com os beneficiários do antigo programa De Braços Abertos, feita em 2016 pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas, mostrou que 66% dos atendidos pela iniciativa municipal já tinham passagem pela prisão e 25% pela Fundação Casa.
Racismo e injustiça
Racialmente, no entanto, os perfis das duas populações são mais semelhantes. O Censo de 2015 também aponta um índice de 30% de brancos, 3% de indígenas e 65% de negros na população de rua paulistana.
No levantamento com os atendidos pelo DBA na Cracolândia, 23% eram brancos, 68% negros e 3% indígenas. Números que refletem o sistema carcerário, com 64% de negros e 35% de brancos.
Vale lembrar que o estudo da Cracolândia foi feito apenas com uma amostra de quem frequenta a região. Muitas das pessoas ali temem o contato institucional porque têm ou acreditam ter problemas mal resolvidos como o Poder Judiciário, o que poderia mascarar a presença de um percentual maior de egressos das prisões.
Um exemplo emblemático disso é o caso do rapper Kawex, que em maio de 2019 passou uma semana preso por desacato à autoridade. Em 2014, Kawex foi preso acusado de cuspir no rosto de um policial. Em sua defesa, o rapper disse que, como não tinha os dentes da frente, a saliva respingou no rosto do agente durante a discussão. Ele foi condenado a pagar uma multa de um salário mínimo.
Como era morador de rua, não pôde entregar o valor. O juiz entendeu como uma desobediência e converteu a pena em prisão novamente. Após mobilização de ativistas, jornalistas e parlamentares, a injustiça foi desfeita e a multa paga com uma rápida arrecadação solidária.
O caso de Kawex é uma exceção no desfecho, mas um exemplo do cotidiano da vida nas ruas. Todos os dias na Cracolândia e em outras partes da cidade, os guardas municipais tomam pertences dessas pessoas: cobertores, colchões, guarda-chuvas e até documentos e remédios.
A reação pode ser facilmente enquadrada como desacato pelo agente público. Em cinco meses, de 31 maio a 31 agosto de 2018, foram registrados 417 casos de crimes de desobediência, desacato e resistência na cidade de São Paulo. Desses, muitos envolviam pessoas em situação de rua, inclusive dentro dos equipamentos públicos de acolhimento.
Fora os casos de usuários de drogas presos sob a acusação de serem traficantes. Enquanto vários levantamentos já mostraram que a grande maioria dos encarcerados por crimes com substâncias ilícitas é algemada por pequenas quantidades, a GCM torna a situação quase caricata na Cracolândia ao anunciar apreensões de montanhas de moedas e trouxinhas de maconha.
Por isso, não são albergues em péssimas condições ou internações forçadas que vão tirar as pessoas das ruas das grandes cidades. É preciso parar a máquina de moer gente que é o sistema prisional. Tem que se encarar que os esfarrapados que atrapalham os almoços em família nos restaurantes da Avenida Paulista são consequência direta das políticas de extermínio que ganham cada vez mais eco nesses tempos policialescos.