Grande parte dos negros brasileiros cresceu em meio a uma geração de práticas racistas diárias que funcionavam como normas bem-vindas na sociedade, atuando como mecanismos de defesa a direitos e acessos de uma determinada etnia. Esses episódios de preconceitos acionam gatilhos que nos levam direto para a infância.
Nesta viagem forçada ao passado, feridas são reabertas acompanhas de uma turbulência de sentimentos e revisitamos traumas relacionados a nossa aparência e características negras, pois é nesse período da vida que agressões raciais em tom de brincadeiras conectavam traços negros com situações e objetos que realocam as nossas qualidades e perfis em situação de “descartável” ou de algo visto como “mal cuidado”, que necessitaria de produtos e tratamento para melhorar a condição.
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Engana-se quem acredita que esse racismo recreativo não possui uma má intenção por trás. Dentro da psicologia e também nos debates de sociólogos que estudam o tema, esses traumas adentram profundamente o quadro psicológico do ser humano ainda em formação – já que é nessa fase que ele compreende como funciona a sociedade e os valores de “certo” e “errado”.
A fim de evitar comentários e motivos de piadas, muitos de nós crescemos sem conhecer nossas características naturais, como o cabelo, e optamos pela negação de outras (cor da pele e atributos mais negróides). Essa estratégia de sobrevivência de negar a si causa rupturas com a identidade negra que favorece a tática de dominação e opressão indicados por Wilson Barbosa Nascimento, no livro “Cultura Negra e Dominação” (2002).
Mesmo no auge dos meus 25 anos, ainda enxergo o peso desses episódios no meu cotidiano. Tenho certeza que do sul ao norte do país toda criança negra enfrentou piadas racistas de colegas e professores nas salas de aula, ações que transformaram o desejo de aprendizado e de destaque no ensino na vontade de passar despercebido ou de assumir um local que o defendia dos direcionamentos do racismo.
Eu, um homem negro retinto, entendi que precisava raspar o meu cabelo com frequência, pois ele chamava muita atenção por onde passava. Também desenvolvi a estratégia de não mostrar muito o sorriso em público porque meus dentes separados – Diastema, uma característica mais comum em pessoas pretas – atraía comentários e situações indesejadas.
O choro, desespero e tremura corporal quando somos vítimas dessa prática racista revelam que as feridas e traumas ainda estão ali, e como funciona de forma desleal a cartilha “não foi a minha intenção ofender” utilizada por quem inflige essas dores nos corpos negros.
Todos esses acontecimentos contribuíram com a minha negação de imagem. Lembro como se fosse ontem quando uma companheira elogiou as minhas características e eu discordei dela, ironizando que apenas me achava atraente pois estava relacionando-se comigo, com a frase: “pessoas apaixonadas distorcem o que veem”.
Como sociedade, precisamos rever a classificação desse racismo recreativo como entretenimento ou brincadeiras de um ciclo social, pois a ideia de categorizá-los dessa maneira reforça a dificuldade de tirar da invisibilidade as pautas raciais e também aumenta o engajamento e audiências nas redes sociais das pessoas que compartilham esses ideais racistas por lá.
Ariel Freitas é jornalista, escritor, ativista e músico.
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