Ariel Freitas escreve sobre a importância da representatividade nos quadrinhos
As histórias em quadrinhos possuem um lugar especial na formação de uma criança e adolescente, pois, na maioria das vezes, são os primeiros contatos com a realidade através da arte. Bem escritas e desenhadas, elas auxiliam na construção da identidade, da autoestima e dos valores — além de oferecer diversão. Mas o que acontece quando a arte imita a vida e não tem representação de pessoas negras no seu universo?
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É de conhecimento geral que, infelizmente, pessoas negras não ocupam cargos relevantes na sociedade. Os motivos são vários, entre eles, o racismo estrutural. No Brasil, esse desequilíbrio é ainda mais visível. Na falta de identificação na fase de descoberta, o jovem negro busca a adaptação ao que é visto como natural, escondendo suas preferências, características e inibindo seus sonhos e metas. Tomando o lugar que arquitetaram como seu: o de não protagonista.
Em 2014, um aluno da 5° série da Escola Municipal Professora Irene da Silva Oliveira, no Rio de Janeiro, resolveu pintar todos os personagens da Turma da Mônica com a cor que se identificava: marrom. Cleidison buscava protagonistas que possuíssem o seu tom.
Jeremias — Pele: mexendo na ferida aberta
Na contramão do que é apresentado no universo de quadrinhos, a dupla formada por Rafael Calça (roteirista/escritor) e Jefferson Costa (ilustrador) lançaram, em abril, a linha Graphic MSP, Jeremias — Pele. Uma edição que não tem medo de abordar o racismo de forma direta e indireta (velado).
Para quem não conhece, Jeremias é um dos personagens mais antigos da Turma da Mônica, criado pelo cartunista Mauricio de Sousa. Em conjunto com Franjinha, Titi e Manezinho formam a “Turma do Bermudão”, conhecida por suas gírias e, obviamente, bermudões.
A convite do jornalista Sidney Gusman, editor do selo, Rafael e Jefferson aceitaram o desafio de explorar conteúdos importantes em um universo que não está acostumado a isso. “O tema aqui era o mais importante, a oportunidade de tratarmos desse assunto que toca na ferida aberta”, explica o ilustrador Jefferson Costa. O enredo da graphic novel são experiências pessoais de ambos, mas tornam-se situações que qualquer pessoa negra passou ou ao menos de forma similar, como acrescenta o escritor Rafael Calça.
Na escola, o personagem é o aluno mais esperto da classe, entretanto nem com as notas mais altas consegue escapar dos estereótipos que sua cor carrega. Em uma das cenas, Jeremias está em uma atividade de profissões e a professora arbitrariamente define qual cargo cada aluno deve interpretar. Alguns alunos foram escolhidos para ocupação de médicos, engenheiros, mas, por sua vez, o único negro deveria ser pedreiro, pois outro cargo seria muito incomum.
Diferente do que é representado sobre as famílias negras nos universos dos quadrinhos, o seu núcleo familiar possui uma estrutura estável, onde os seus pais tentam protegê-lo do caos do mundo exterior. Quando percebem que falharam em proteger Jeremias, confrontam o seu próprio passado onde não possuíam uma representatividade para se espelharem.
Na quarta capa da revista, Emicida assina um texto sobre a ausência da representatividade na infância.
A grande atriz Elisa Lucinda um dia me disse:
“Nós precisamos parar de chegar atrasados na vida das pessoas. Achei estranho em um primeiro momento. Afinal, cheguei quando consegui chegar. Mas o que ela queria dizer era que precisávamos ser escudos e não bandaids. É no atraso e na ausência de nossa voz que os piores pesadelos se solidificam. Um monstro que se alimenta de ignorância pode ficar gigante. Entre esse monstro e quem amamos, é o importante lugar de nossas boas palavras e atitudes.
Há alguns anos, fui comprar caixas organizadoras com minha filha, para guardar os brinquedos dela. Havia uma infinidade de opções e cores, princesas loiras e uma única, quase escondida, com uma princesa escura como nós. Escolhi aquela e levei até a pequena, pois havíamos combinado ser uma caixa com uma princesa.
Ela pediu para ser outra. Argumentei que aquela princesa era linda, ela insistiu e eu insisti novamente na princesa negra. Ela chorou dizendo que queria uma caixa de princesa e não “aquela”. Eu havia chegado atrasado.
A ausência de referências positivas nos rouba o direito de imaginar, estabelece um teto para nossos sonhos. Minhas lágrimas correram pelo rosto ao ler Jeremias — Pele. Eu a vivi inteira tantas vezes… A palavra que tenho para todos os envolvidos é obrigado.
Obrigado a um dos meus grande ídolos, Mauricio de Sousa, por possibilitar a reinvenção de seus personagens por Rafael Calça e Jefferson Costa, trilhando um caminho tão sensível e crucial para desenvolver a nossos sonhos o direito de serem livres.
Com muita felicidade, Jeremias está chegando na hora certa. Sem mais atrasos.”
Emicida — Pai da Estela e da Teresa (e, quando sobra um tempinho, rapper).
A representatividade importa. Um roteirista, autor ou cartunista que não insere em sua arte um personagem negro, que não atue de coadjuvante ou de alívio cômico, compactua com essa desigualdade social. Os negros merecem papéis que fogem do convencional, pois quem sabe assim, os jovens possam alçar voos em horizontes que ofertam cargos de alto escalão.