Dina Alves é um dos principais nomes no Brasil na pesquisa sobre o encarceramento em massa de mulheres negras. O texto aqui publicado é um resumo do seu artigo que pode ser lido na íntegra aqui.
Texto / Dina Alves
Imagem / Junião Junior/Ponte Jornalismo
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O artigo “Rés negras, juízes brancos” analisa a interseccionalidade das categorias de gênero, raça e classe na produção da punição na justiça criminal paulista e é fruto de uma pesquisa etnográfica realizada no interior da Penitenciária Feminina de Sant’Ana (PFS), na cidade de São Paulo, entre os meses de agosto a dezembro de 2014, quando estava no Mestrado em Ciências Sociais/Antropologia pela PUC.
Na ocasião optei por realizar entrevistas com mulheres negras, condenadas por tráfico de drogas e analisar suas trajetórias de vida, seus trágicos encontros com a polícia no momento da prisão, a perda da guarda dos filhos, o abandono pelos companheiros e demais familiares, seus encontros com a justiça criminal em audiências, as torturas sofridas no momento da prisão ao cumprimento da pena, a negação aos benefícios penais sem motivação judicial e a transmissão intergeracional da pena aos seus familiares.
Além disso, fiz pesquisas aos processos criminais destas mulheres, no fórum criminal da Barra Funda, na Vara de Execução Penal, a fim de analisar as práticas processuais e estratégias discursivas utilizadas por juízes, promotores, defensores e demais operadores do direito, na distribuição da justiça penal contra elas. O artigo está contextualizado com a experiência das mulheres negras no interior do sistema e o boom prisional brasileiro e paulista da última década, baseada em dados estatísticos do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), ou seja, o contexto no qual as histórias relatadas se encontram.
A pesquisa etnográfica nasceu de algumas motivações. Primeiro, minha inquietação pessoal surgida ainda na graduação do curso de Direito e a minha atuação como estagiária da Promotoria da infância e Juventude na cidade de Guarujá. Naquele momento questionava sobre o peso dos atributos de raça, gênero, classe, sexualidade na produção da vulnerabilidade social dos adolescentes na Fundação Casa.
A segunda motivação foi a característica dominante do sistema prisional brasileiro entre 2000 e 2012. Minha atuação como ativista do abolicionismo penal me permitiu situar a explosão demográfica do encarceramento brasileiro no contexto maior do que ativistas em outras partes das Américas têm chamado de industrialização da punição.
A terceira e última motivação foi a lacuna nos estudos sobre gênero, raça, classe e sexualidade. Apesar das mulheres presas serem objeto de crescente interesse entre pesquisadores do sistema penitenciário nacional, as mulheres negras não aparecem em suas discussões, ainda que constituam o principal grupo de presas no país. Alguns trabalhos têm mostrado que as mulheres, de modo geral, possuem uma vulnerabilidade específica, marcada por sua condição de gênero em uma sociedade estruturada a partir de desigualdades entre homens e mulheres.
Ilustração (Moska Santana/Alma Preta)
Apesar dos estudos e das estatísticas apresentadas ajudarem a entender a dimensão de gênero nas prisões – uma vez que eles têm o mérito de desmasculinizar às narrativas sobre o universo prisional – estes estudos têm se revelado insuficientes no que diz respeito à especificidade da mulher negra. Assim, com este estudo, ofereço a possibilidades de descentralizar (ou complexar) os estudos sobre as prisões, que têm privilegiado a perspectiva de classe social em detrimento de uma abordagem mais ampla e condizente com a realidade racial brasileira.
O pioneirismo desta pesquisa sobre estes aspectos está na abordagem de, propositalmente, escancar a “colonialidade” da justiça brasileira/paulista, termo que tomo emprestado de Rita Segato. Sustento que, embora o Estado brasileiro tenha sempre ocupado lugar de destaque na produção das condições históricas desfavoráveis ao desenvolvimento social da mulher negra, a pesquisa mostrou que é na administração da justiça que se manifesta, de forma explícita, a intersecção dos eixos de vulnerabilidade – delineados por raça, classe e gênero – na produção de categorias de indivíduos puníveis.
O Brasil possui hoje uma população prisional de 726.712, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. No que diz respeito ao perfil etário dessa população, observa-se que a proporção de jovens é maior no sistema prisional que na população em geral. Ao passo que 56% da população prisional é composta por jovens, essa faixa etária compõe apenas 21,5% da população total do país. Deste total, 67% são negros (DEPEN, 2014). O número de pessoas privadas de liberdade em 2014 era 6,7 vezes maior do que em 1990.
No que diz respeito à questão de gênero, o Brasil conta com uma população prisional feminina de 44.721 mil presas, no ranking da quarta população mundial em aprisionamento feminino. No período de 2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculina, no mesmo período, foi de 220,20%, refletindo, assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres. A maioria absoluta da população prisional brasileira é negra em todos os estados da Federação.
Em termos proporcionais, contudo, observa-se que a sobrerrepresentação dos negros na população prisional é mais acentuada na região Sudeste com 72%. Nessa região, os negros representam apenas 42% da população total. São Paulo possui o maior número de presos no país, ocupa a quarta posição na taxa de encarceramento de jovens negros e a segunda maior taxa de adolescentes em medidas socioeducativas de internação e semiliberdade. Nos últimos onze anos (2006-2017), o estado registrou um boom em seu sistema prisional, com a construção de novos presídios, aliada a uma política de encarceramento em massa que resultou na prisão das atuais 240.061 pessoas presas.
Encarceramento de mulheres negras é um dos principais problemas do país (Foto: Reprodução)
As estatísticas oficiais, as narrativas de violência contra as mulheres entrevistadas e as sentenças judiciais demonstram como as instituições de justiça reproduzem a lógica colonial de punição aos corpos das mulheres negras. Exemplo disso foi a análise que fiz a diversas sentenças e as estratégias discursivas utilizadas por juízes que demonstrou uma “episteme racial” dos discursos científicos do século XIX , sobre teorias eugenistas. Ou seja, os jargões jurídicos “personalidade desajustada e perigosa”, “personalidade incompatível com o convívio social” para justificar as condenações das mulheres negras, demonstraram que, embora raça, como categoria biológica seja um tabu nos discursos punitivos, juízes adaptam, conscientes ou inconscientemente, os discursos racializados em pressupostos subjetivos para justificar punições e criminalizá-las.
Comumente mulheres negras com filhos são vistas por operadores do Direito como promíscuas, dependentes do bolsa-família, parideiras, moralmente corruptas e com “útero de fabricar marginais”, como declarou o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Os jargões utilizados no sistema de justiça penal são também estendidos aos seus familiares.
A punição das mulheres negras não se resume ao aprisionamento dos seus corpos, portanto. Vistas como incapazes de gerir suas famílias, ou como perigo ao desenvolvimento de crianças “boas”, não raras vezes os juízes optaram por revogar a guarda de seus filhos, oferecê-los para adoções ou aprisioná-los em instituições prisionais eufemisticamente chamados de centros de ressocialização.
Outro ponto importante analisado foi a evidência da simbiose entre prisão e racismo e as semelhanças impressionantes quando analisados o perfil das mulheres entrevistadas: negras, mães, sem antecedentes criminais, analfabetas ou com pouco estudo, provedoras do lar, acusadas e condenadas por tráfico de drogas ou crimes contra a propriedade privada, algumas exerciam posição coadjuvante no crime de tráfico de drogas, são oriundas de camadas sociais economicamente desfavorecidas e trágica transmissão intergeracional da pena aos seus familiares.
Para analisar toda a complexidade que envolve uma pesquisa de tamanha responsabilidade, tomei como ponto de partida a perspectiva feminista negra como uma estratégia teórica alternativa para localizar e interpretar a distribuição da punição no sistema de justiça penal. Feministas de várias áreas do conhecimento somaram-se a bibliografia deste trabalho, com suas importantes contribuições sobre feminismo negro brasileiro, abolicionismo penal, industrialização da punição e os estudos mais amplos sobre gênero e raça, são elas: Sueli Carneiro, Angela Davis, Patrícia Hill Collins, Kimberlé Crenchaw, Julia Sudbury, Lélia Gonzalez, Josildeth Consorte e Rita Segato, , as quais agradeço as intermináveis horas de leituras e interpretações de suas obras.
Por fim, lanço um último parágrafo para dizer do meu interesse teórico e epistemológico em articular classe, raça e gênero, para além de analisar as diferenças entre homens e mulheres. Meu interesse aqui foi aprofundar as reflexões para entender e considerar o universo prisional como uma ideologia de desumanização de corpos negros.
Assim quero contribuir de forma crucial no entendimento de que o Brasil, ao contrário do que se quer fazer crer, não é uma exceção no que diz respeito ao complexo industrial prisional global. Entender a vida das mulheres negras encarceradas requer de nós, pesquisadores, ativistas e demais interessados na discussão sobre feminismos, questionar os mitos sobre criminalidade e ordem produzidos pelos discursos estatais. Suas trajetórias de vida são centrais para a leitura do “lugar” e do “não lugar” na sociedade, e nos orientam a pensar na produção de corpos puníveis, não como um exercício retórico, mas como uma necessidade urgente para entendermos como a mulher negra veio a ocupar uma posição paradigmática no Brasil contemporâneo.
Boa Leitura e ótimas reflexões.
http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S2011-03242017000100097&script=sci_abstract&tlng=en
Dina Alves é candidata a PhD em ciências Sociais pela PUC. Advogada ativista. Coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública – IBCCRIM. Atriz ativista. Membra da rede internacional “Interseccionalidades”, entre Brasil/Colômbia/Bolívia, que investiga as violências raciais contra as mulheres Afroameríndias; Membra do coletivo ADELINAS (Coletivo Autônomo de Mulheres Negras de São Paulo). Atua desde a década de 90, na área dos Direitos Humanos, em defesa da população negra, especialmente mulheres negras, vítimas de violência do Estado. Autora do capítulo “Drugs and Drug Control in Brazil,” do livro “Pan-African Issues in Drugs and Drug Control: An International Perspective, July 2015, disponível em: https://books.google.com/books?hl=en&lr=&id=IUMUCgAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT190&ots=62oZuXlQ-q&sig=yDplCS1xcNLVlxUpe1h8gs7sPY4#v=onepage&q&f=false