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Uma carta para aquele que se diz meu pai

12 de agosto de 2018

Isabella Barboza escreveu para o Alma Preta sobre ausência paterna, um dos temas mais sensíveis à masculinidade. Isabella Barboza é jornalista em formação, atualmente é assistente editorial do portal Justificando, produtora por paixão e ser política por opção.

Texto / Isabella Barboza
Imagem / Divulgação

Oi pai, tudo bem? Esta é uma carta que nunca vou enviar, afinal, pai, eu nem sei onde você mora e nem se quer saber de tudo que tenho para falar. Na verdade não ligo muito para o que você tem para falar e imagino que com você seja a mesma coisa. Sempre foi meio assim nossa relação, né? Todos dizem que sempre aprendi tudo com minha mãe e pela escola, mas não é verdade. Aprendi diversas coisas com você, pai, mesmo você estando tão longe, muito do que sou é por que você me fez assim, por mais que negue e não queira.

Desde pequena você me ensinou que eu deveria contar apenas comigo mesma ou com outra mulher preta. A esperança de te ver nas minhas festas de colégio, as diversas vezes que fiquei largada esperando você me buscar na porta da escola, a frustração a cada aniversário meu que você esquecia, a dor de ver você tratar a minha meia-irmã de pele clara com um carinho que nunca tratou à mim, tudo isso me fez perceber que eu poderia apenas contar comigo e com minha mãe. É, pai, você me ensinou a não esperar nada dos outros, nem daquele que supostamente nos amam. Me ensinou que amor é algo que exige muito, que machuca e não vale a pena.

Você me ensinou a desconfiar, pai. A cada mentira, a cada discussão que você uma hora dizia que amava minha mãe e na outra que ela era louca, a cada vez que você tratava uma das suas ditas amigas com muita intimidade, a cada história de traição que fui descobrindo, das mazelas que minha mãe segurou sozinha, todas essas coisas me fizeram acreditar que devo desconfiar de tudo e todos, principalmente de quem diz que me ama. Esses são os piores, não consigo não ter uma pulga atrás da orelha cada vez que alguém diz que me ama. E isso é graças à você pai, homem que sempre honrou a família tradicional, me fez herdar a desconfiança de Bentinho, mesmo eu sendo Capitu.

Você me ensinou a não ter auto estima, pai. Você me mostrou que mesmo sendo uma mulher foda, independente financeiramente, poderosa e bem resolvida, a preferência é branca, nova e mais ingênua. Você mostrou com todas as letras como ser uma mulher poderosa trás consequências, mostrou como os homens, ainda mais brancos, não aceitam uma mulher negra ser mais bem sucedida que ele. Me mostrou a frustração de toda sua branquitude, ao não aceitar o melaninoso sucesso da minha mãe. Parabéns pai, você me ensinou como uma mulher negra é tratada pelo mundo dominado por homens brancos, você me ensinou que o machismo atravessa portas e portas, mas que a minha carne é a mais barata sempre. Onde já se viu se casar com uma mulher que ganha mais que você? Um mulher e negra ainda, onde já se viu…

Você me ensinou a procurar aprovação em tudo que faço, pai, principalmente a masculina e mais velha. Eu não tive você ali para ver eu, botão de flor, virar o buquê que sou hoje. Você não sabe quem eu sou, pai e nem teve a curiosidade de me conhecer. Sempre vou procurando por cantos sombrios alguma figura que me lembre você e que possa falar que tá tudo bem. Era isso que eu sempre quis: um abraço apertado e um “vai ficar tudo bem”. Não gritarias, não ausências e muito menos substituições. O que eu sempre quis foi um colo quente para eu chorar as penas duras, as dores do mundo que eu carregava nas costas todos os dias.

É pai, você me ensinou muitas coisas que até hoje eu custo para desaprender. Sentimentos que eu nunca vou poder te falar porque você não liga. Você tem sua nova e clara família, tudo que sua mãe sempre quis, alguém para embranquecer teu sangue índio. Queria ter algo a mais para te falar, pai, mas este texto já me doí tanto que eu não vou continuar. E neste dia dos pais o que vim te agradecer mesmo é por ter escolhido minha mãe. Essa Maria de todas nós, filhas e filhos, que não temos um pai presente muito além da tela do celular.

Me pergunto todos os dias se eu fosse clara, branca, se você teria feito o que fez. Se teria traído como fez, se teria tratado minha mãe como tratou. E se eu fosse branca? E seu mainha fosse branca? Você teria saído de casa 14 anos atrás e nunca mais falado comigo direito? Você teria esse descaso que tem? Será que se eu fosse… bom, eu mesma nao querendo saber pai, pois felizmente cresci e sobre machismo e racismo sou eu que tem muito para ensinar.

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