Artigo publicado originalmente no site Open Democracy.
A declaração dominante nas redes sociais e feeds de notícia é de “Estou com a Ucrânia”, apoio fundamental a um país que inegavelmente o necessita neste momento. Mas essa postura não é tão preta no branco quanto os liberais ocidentais vem mostrando. Não se trata de um simples exercício de escolher lados entre os “mocinhos” e os “vilãos”.
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Não para os africanos, pelo menos. De fato, alguns até veem a guerra do presidente Vladimir Putin na Ucrânia como a resistência de um homem diante da hegemonia ocidental.
A experiência do resto do mundo com a OTAN, a Europa e os EUA não são tão positivas – e podemos nos dar ao luxo de expressar raiva e ceticismo diante da hipocrisia e pedir cautela diante das soluções ocidentais.
Eu estou com o povo ucraniano (que é totalmente merecedor de simpatia e não é sinônimo de Estado ucraniano), mas como o crescente clamor nas mídias sociais e reportagens da imprensa mostram, mesmo agora devemos falar sobre o racismo. O tratamento racista que africanos estão enfrentando ao fugir da Ucrânia mostra que a supremacia branca não tira folga, nem mesmo em tempo de guerra. Assim como a vigilância de um africano na compreensão e interpretação das narrativas ocidentais de dominação.
Guerra é guerra. Pergunte-nos – nós sabemos. Significa morte, doença, deslocamento, violência sexual. Mas algumas vítimas não têm olhos azuis e cabelos loiros o suficiente para merecer tanta simpatia quanto os ucranianos estão recebendo da mídia e dos governos. Como pensadores do Sul Global têm apontado há muito tempo, as guerras tornam as pessoas negras, pardas, portadoras de deficiências e de gênero divergentes em particular ainda mais vulneráveis do que o habitual – e as fronteiras europeias não são acolhedoras nem seguras para elas. Então, aqui estamos novamente.
Mas nossas histórias nacionais também tornam difícil para nós ver a Rússia como o “vilão” e a busca da Ucrânia por um modo de vida ocidental – incluindo a adesão à União Europeia e à OTAN – como um desejo inocente que torna aqueles que a apoiam “mocinhos”.
Nenhum país africano foi colonizado pela antiga URSS. Países socialistas, incluindo Cuba e a URSS, apoiaram nossos movimentos de independência
Todos os países africanos (exceto a Etiópia e a Libéria) foram colonizados, nossos territórios cortados e divididos como fatias de bolo entre as potências europeias na Conferência de Berlim de 1884-1885 e em anos posteriores. O resultado? Algumas das subjugações mais sangrentas da história humana. Nenhum país africano foi colonizado por membros da antiga URSS.
Em vez disso, governos socialistas, incluindo Cuba e a União Soviética, apoiaram nossos movimentos de independência diante das tentativas brutais de países “civilizados” de nos impedir de conquistar nossa liberdade. Agora assistimos, um tanto entorpecidos, como essas mesmas potências ocidentais se posicionam como defensoras da liberdade do povo ucraniano.
Enquanto os membros da OTAN gastam milhões em apoio militar à Ucrânia e aumentam sua presença na Europa Oriental para combater a agressão russa, precisamos ouvir os africanos na Líbia, Somália e Quênia. Eles podem mostrar o rastro da violência ocidental e as limitações das intervenções militares dos EUA e seus aliados europeus.
A lógica simplista das sanções
Assim como os russos comuns, os africanos comuns também sofreram as punições coletivas das sanções impostas pela poderosa mão dos governos ocidentais — muitas vezes sem apoio popular na África, exceto talvez no caso da África do Sul do apartheid, quando medidas foram tomadas a pedido de sul-africanos negros. Mesmo assim, as sanções foram levantadas muito antes do que os africanos negros julgavam apropriado, levando Nelson Mandela a acusar a Europa Ocidental de racismo e de desejar se realinhar com o poder branco em qualquer lugar.
Agora assistimos, um tanto entorpecidos, como essas mesmas potências ocidentais se posicionam como defensoras da liberdade do povo ucraniano
No entanto, vemos medidas ainda mais incapacitantes sendo celebradas na mídia como a reação apropriada à decisão de um autocrata. A lógica de “detonar a economia russa para forçar manifestações anti-Putin em Moscou” é simplista demais para ser aplicada a povos que vivem sob regimes opressivos.
Eu vivo sob o presidente Yoweri Museveni. Se a economia de Uganda fosse prejudicada por sanções, eu ainda não teria voz em sua permanência no poder. Afinal, não tenho voz agora.
Este não é um argumento para privar a população ucraniana do tão necessário apoio. É um apelo para reconhecer essas contradições porque elas são importantes. Reconhecê-las é aceitar que o crescente descontentamento com a ordem liberal ocidental é informado e válido, não uma reação instintiva.
É informado por nossas experiências vividas sob o racismo, imperialismo, colonialismo, apartheid, neocolonialismo e as chamadas “soluções” militares ocidentais – como a “guerra ao terror” – que invariavelmente exacerbam os conflitos e levam a mais mortes.
Ameaça nuclear: não apenas a Rússia
Os africanos estão tão assustados quanto todos os outros com o que está acontecendo na Ucrânia. Armas nucleares estão sendo usadas como peões em um jogo de xadrez militar e político que pode acabar com a humanidade. No entanto, também devemos desiludir o Ocidente de sua crença de que essa ameaça nuclear deve ser atribuída a um homem louco.
Afinal, os membros da OTAN (no âmbito do programa de compartilhamento nuclear) representam mais da metade dos países loucos o suficiente para fabricar, possuir e ter acesso a essas armas. Nenhum país africano possui armas nucleares hoje (a África do Sul desistiu das suas em 1989 e a Líbia interrompeu seu programa de armas nucleares em 2003).
As Nações Unidas continuam sendo nossa opção mais viável para garantir a prestação de contas entre os países. Mas mesmo na ONU, os países do Norte Global – que representam a maior ameaça de violência em massa, tanto militar quanto econômica – são os que detêm quase todo o poder.
Qualquer dia é um bom dia para denunciar a hegemonia. Hoje, enquanto o “mundo livre” das “nações civilizadas” enfrenta “tempos sem precedentes”, como a mídia diria, aqueles que pagaram caro pela inquestionável “justiça do Ocidente” clamam: precisamos nos posicionar contra a hegemonia ocidental também.