As vias e ferrovias que cortam os espaços urbanos são parte de uma configuração social que conecta diferentes pontos das cidades, organiza deslocamentos, mas também cria fronteiras. Em sociedades como a do Rio de Janeiro, os fluxos e acessos reproduzem as desigualdades socioespaciais, condicionando algumas classes sociais à vulnerabilidade, privadas de acesso aos equipamentos públicos de lazer e reféns de serviços de péssima qualidade no transporte público.
Quem é obrigado a se expor diariamente a longos deslocamentos enfrenta uma rotina de cansaço e, muitas vezes, de violência. Foi assim uma ação da Polícia Civil no Jacarezinho, que terminou com 28 mortos e usuários da estação de metrô de Triagem em pânico. Pessoas que nos vagões e fora deles se aglomeravam deitadas no chão ou nos cantos de paredes para tentar escapar dos disparos. Mas a matança, sem precedentes na história da Segurança Pública fluminense, não poupou a integridade dos trabalhadores Humberto Duarte, de 20 anos, e Raphael Silva, de 33 anos, feridos após disparos atravessarem os vidros da composição.
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Durante a operação, os trens para Belford Roxo foram suspensos, assim como ruas e avenidas próximas tiveram a circulação interrompida. Uma rotina tão comum e frenética quanto habitual e traumática. Dados do Instituto Fogo Cruzado revelam que no primeiro semestre de 2021 ocorreram pelo menos 29 tiroteios em um raio de até 100 metros deste ramal da Supervia. O relatório aponta, ainda, que os riscos vão muito além do ramal Belford Roxo: ao todo foram registrados 264 tiroteios no entorno de grandes corredores de transportes urbanos, como trens, BRT, rodovias, VLT e o trecho na superfície do metrô.
Outro ponto revelado pelo levantamento é que as políticas de segurança pública têm relação direta com os impactos da violência armada sobre a mobilidade na Região Metropolitana. Isto porque a atuação dos agentes de segurança aparece como principal motivo relacionado à ocorrência de tiros que afetam os corredores de transporte.
A segunda posição é ocupada pelas tentativas de roubo. No dia 3 de abril, um domingo de Páscoa, a técnica de enfermagem Jéssica Souza, moradora de Nova Iguaçu, viajava de trem para o trabalho, na Zona Norte do Rio. Como profissional da saúde, estava na linha de frente num esforço coletivo para salvar vidas em meio à pandemia. Até que um fatídico, mas não incomum, acontecimento encerrou sua própria trajetória de maneira prematura, aos 25 anos. Jéssica foi vítima de uma bala perdida, após um policial reagir a uma tentativa de assalto no trem. A história dela, lamentavelmente, não é uma exceção, mas uma trama que se repete sem cessar por um sistema que reproduz a escalada da violência na periferia dos grandes centros.
É assim há décadas no complexo de Favelas da Maré, situado entre as três principais vias expressas do Rio – Avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha -, por causa das intervenções constantes do Estado. Seja em suas vias ou propriamente em seu conjunto de favelas, políticas de demolições, renovação das passarelas 6 e 7 e o gasto de R$1,7 milhão por dia em uma ocupação com 2.500 militares em 2014 ditam as possibilidades de ir e vir dos moradores locais, mais do que a vontade dos mesmos.
O território da Maré, assim como outras regiões próximas às principais rotas do Grande Rio, são estratégicas para a mobilidade urbana, mas também vulneráveis à violência armada de grupos criminosos ou das operações de guerra que mobilizam, vez ou outra, helicópteros e blindados das polícias fluminenses. A vida cotidiana da Maré é intensa e o fluxo de pessoas é desmedido, trata-se de um território de alta densidade populacional. No entanto, a região só vira destaque no quesito mobilidade urbana quando há registro de tiros que afetam as grandes avenidas.
Enquanto os territórios de favelas e periferias forem pensados pela ótica da repreensão policial, incrementado pela omissão do Estado em formular e implementar políticas públicas, a extensão da violência armada será alargada produzindo mais e mais vítimas e situações de terror tornando um simples retorno para a casa numa rota perigosa.