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Yuli: racismo, religiosidade e solidão em Cuba

21 de dezembro de 2018

Lourival Aguiar, pesquisador sobre Cuba e Relações Raciais no Caribe e pai do Akins escreveu para o Alma Preta sobre o filme cubano Yuli, lançado neste ano

Texto / Lourival Aguiar
Imagem / Reprodução Carlos Acosta

Um dos melhores longas do ano, o filme Yuli conta a história do bailarino negro Carlos Acosta, apelidado de Yuli por seu pai (por fazer referência a um nobre guerreiro indígena). Acosta foi o primeiro bailarino negro cubano e se tornou um dos mais famosos bailarinos do mundo. Sua trajetória e talento inspirou uma geração de bailarinos em Cuba, que o levou a fundar a primeira companhia de ballet cubana.

Tendo feito parte de famosas companhias do ballet mundial (como o ballet Houston, o ballet de Turim e o Ballet Real de Londres), passou boa parte de sua vida fora do país e longe de sua família, compostas por sua mãe e irmãs e por seu pai, que é o principal ator coadjuvante do filme. A distância lhe concede uma sensação de não pertencer a lugar algum: era um cubano que vivia fora do país e que queria retornar quando todos queriam sair. Uma dualidade entre este lugar e não um lugar.

Outro aspecto transversal ao filme é a questão do racismo. A todo momento ele é lembrado, por sua professora, que faz história por ser o primeiro bailarino negro; é lembrado por seu pai que é descendente de escravizados e que não deve permitir que isso resuma a pessoa que ele é e que tudo o que fizesse seria um exemplo para todo o país, especialmente para os negros. A explicação de seu pai sobre o passado escravista ao qual seus avós haviam sido submetidos é um dos momentos altos do filme, dada a sua simplicidade e força.

Essa responsabilidade de carregar esse legado esteve o tempo todo sobre seus ombros. Sua visibilidade colocaria um holofote sobre o que era ser negro em Cuba.

Um detalhe muito importante é a relação de Yuli com a religiosidade, transmitida ao público através de seu pai, que está sempre orando aos Orixás e a todo momento lembra Yuli que ele é filho de Ogum, o Orixá Guerreiro. Mesmo não se colocando abertamente como alguém religioso, este aspecto de sua formação enquanto pessoa está sempre presente.

A solidão, sentimento este que compartilho com o personagem por estarmos centenas de quilômetros de nossas casas, é retratado como algo muito particular dessa experiência de viver entre dois mundos. Ele quer voltar para seu país, porém as coisas que precisa fazer enquanto profissional estão sempre fora. Não havia espaço em Cuba naquele momento para a grandeza de Carlos Acosta. Isso não significa que a saudade não o castigasse ou que o medo e a solidão não abalassem suas convicções, mas a base firme (e muitas vezes exageradamente rígida) que seu pai lhe deu permitiu que passasse por isso decidido a dar seu melhor.

Este filme mostra uma relação muito especial entre pai e filho, no qual podemos ver como os desejos de seu severo pai (que era de que ele fosse um bailarino e com isso saísse de Cuba e vivesse uma vida impossível para sua família) mostra muito como as vontades dos outros sobre nós também nos ativam e nos mobilizam. Além disso, coloca o alerta de que devemos saber quando termina a vontade dos outros sobre nós e quando as nossas vontades começam. Yuli contrária muitas vezes o que entende como suas vontades, dando espaço para que as vontades dos outros (especialmente de seu pai e sua professora) definissem por muito tempo sua identidade.

Sua relação com seu pai é um show a parte. Com interpretações incríveis dos atores que fazem o Pai (Santiago Alfonso) e as versões criança (Edson Manuel Olvera) e jovem (Kevyn Martinez) de Yuli. A química existente nessas relações nos transportam para o lugar de pai e filho em muitos momentos, vivendo as angy juntos com os personagens.

A ambientação do filme também deve ser notada. As paisagens de Cuba (especialmente as da infância e juventude de Yuli), Londres e Turim nos colocam de maneira muito forte nesses locais. A direção de Icíar Bollaín é marcada por um pulso firme, porém sensível, com transições entre passado e presente gostosas de sentir e uma narrativa fluida. Mais uma mulher a entrar para o Hall de grandes diretoras cubanos.

A pergunta que navega conosco durante o filme todo é: “Quem eu sou?” Que mostra a busca de Carlos Acosta por essa identidade e entendê-la em sua completude: como um bailarino, um homem negro, como cubano, filho de Ogum e filho do Pedro. Este é Yuli. Ou seja, mostra os fragmentos que o compõe enquanto pessoa.

Esse filme me emocionou por abordar todos estes temas de uma maneira leve e real, o que aproxima os dilemas dos personagens dos dilemas vividos na vida cotidiana. É emocionante ver a relação de Yuli e seu pai, que é uma mescla de amor incondicional e ódio passional, que os coloca sempre em rota de colisão. Confesso que algumas passagens me arrancaram lágrimas, por pensar em como projetamos nossos desejos sobre os nossos filhos (e como um pai esse pensamento era inescapável) e o quanto muitas vezes não nos permitimos ouví-los. Acredito que por mais “bem intencionados” que sejamos, são nossos filhos que devem responder a pergunta “Quem eu sou?” e nossos desejos sobre eles não devem ser o centro desse questionamento.

Por fim, Yuli é um filme incrível, que leva facilmente a emoção e dá vida a história apaixonante deste incrível artista cubano. Revivemos com ele suas aspirações, medos e dúvidas durante uma trajetória de muito sucesso. Uma excelente oportunidade de conhecer um pouco de sua vida e dos dilemas vividos em uma Cuba muito atual e verdadeira.

Ogunhê!

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