Operações como a Escudo, em vigor na cidade de Guarujá, por ordem do governador de São Paulo Tarcisio Freitas e o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que resultou até o momento em 16 pessoas mortas pela Polícia Militar, não são novidades para os moradores da região. Há dez anos o município do litoral paulista recebeu ação semelhante da força do Estado, que também teve como desfecho homicídio cometido por policiais militares. Em 2023 e 2013, o modus operandis foram os mesmos, teve igual motivação e, pelo menos, um mesmo personagem esteve envolvido em mortes nas duas vezes.
Dez anos atrás, Renato Moreira Júnior era um cabo das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), o mais prestigiado grupamento da Polícia Militar paulista. Junto com companheiros de farda Theo Santos de Souza, Marcos Paulo Neri Miranda e Cleber Alessandro Rodrigues, foi acusado de participação na morte de Gualtiero de Oliveira, de 35 anos, em 7 de outubro de 2013, no Sítio Conceiçãozinha, na mesma região onde 16 pessoas foram mortas entre os dias 28 e 30 de junho deste ano. Ele chegou a ficar 30 dias preso a mando da Corregedoria da PM.
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Uma década depois, o agora 3º sargento Renato Moreira retornou ao local dos crimes do passado. Seu nome volta a ser citado em mais um assassinato após uma ação policial na Baixada Santista. A equipe da qual ele fazia parte, novamente junto a mais três policiais, foi responsável por, pelo menos, uma das 16 mortes ocorridas durante a Operação Escudo. No Boletim de Ocorrência, a vítima aparece como “não identificada”.
Assim como em 2023, quando ação policial no Guarujá foi motivada após a morte do soldado Patrick Reis, baleado enquanto fazia rondas na região, em 2013 o assassinato de Gualtiero se deu por razão semelhante. A operação de dez anos atrás também foi motivada após a morte de um sargento da PM na região, e as suspeitas de que o responsável, com o vulgo de “Sisi”, estava em uma comunidade conhecida como Pouca Farinha.
Nas duas ações, os alvos da polícia foram os mesmos: homens com algum antecedente criminal e que tivessem tatuagens. Gualtiero havia saído da prisão um mês antes de ser morto e possuía desenhos na pele. Partindo do princípio de histórico de infrações da lei, o sargento Renato Moreira também já cumpriu pena e ainda pode ir para os bancos dos réus pelo homicídio de Gualtiero.
Mesmo discurso, mesmas ações
A versão atual dada pelo governo Tarcísio de Freitas, ou há dez anos na gestão de Geraldo Alckmin, é que as operações perpetradas pela Rota no Guarujá visam combater o tráfico de drogas na região. Tanto em 2013 como agora em 2023, a justificativa para as mortes é a mesma. A polícia é recebida a tiros por pessoas que portavam armas e drogas e por isso teve que reagir.
Testemunhas do passado e do presente rebatem a versão oficial. No início de agosto deste ano, moradores do Sítio Conceiçãozinha contaram para parlamentares da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo e para Ouvidoria das Polícias, que a PM abordou um homem em outra comunidade e o levou até o bairro para executá-lo. No crime que vitimou Gualtério de Oliveira a história é bem parecida.
Em depoimentos dados à Polícia Civil, moradores contaram que Gualterio foi abordado pelos policiais militares em outra localidade e levado para o Sítio Conceiçãozinha, onde foi executado. O trajeto foi confirmado pelo sistema de GPS instalado na viatura. O local do homicídio era utilizado pela colônia de pescadores, conforme relato das testemunhas, e não era um ponto de venda de drogas, como foi afirmado pelos PMs.
No inquérito de 2013, a Polícia Civil afirma que o grupo de policiais tentou alterar o local do crime, da mesma forma que tentou apagar vestígios de que Gualtério teria andado dentro da viatura. O GPS mostrou que, após o horário da morte, o veículo teria feito uma parada. Para os investigadores, a ação seria para limpar o veículo. Na versão dos policiais militares, o motor do carro fazia um barulho estranho e por isso pararam para verificar o que houve.
Em umas das mortes das ações da Polícia em 2023, moradores relataram que a PM invadiu a casa de um homem, tirou o bebê que estava em seus braços, arrastou ele para o lado de fora e o executou a queima roupa. A descrição deste crime também se assemelha à morte de Gualtiero.
A perícia mostrou que o disparo que matou Gualtiero foi dado a menos de um metro de distância e o Ministério Público reforçou o fato na denúncia feita contra Renato e Theo. “É certo que, conforme relatado na inicial, os acusados transportaram a vítima, já detida, até o local dos fatos, onde os réus Renato e Theo efetuaram disparos e o mataram. (…) Desta feita, não há dúvidas de que ambos os atiradores tinham a intenção matar a vítima, e assim o fizeram, sendo ambos responsáveis pela sua morte”, escreveu na denúncia o promotor de justiça Renato dos Santos Gama.
Punição, elogios e arquivamento
Menos de um ano depois da morte de Gualtério, e já tendo cumprido 30 dias de detenção pelo fato no presídio Romão Gomes, destinado a PMs que infringem a lei, Renato Moreira recebeu elogios da corporação por sua atuação como policial, como consta no seu histórico profissional anexado aos autos do processo do qual é acusado de homicídio.
“Renato Moreira Júnior vem se destacando no patrulhamento tático da Rota. Demonstra dia a dia a sua dedicação, seu elevado senso de responsabilidade e lealdade à milícia bandeirante. Registra em seu assentamento individual diversos elogios em virtude de ocorrências policiais bem sucedidas”, diz um trecho do documento inserido no dia 22 de agosto de 2014, 10 meses após a morte de Gualtério.
Por outro lado, em 2017, o coronel Mauro Cezar dos Santos Ricciarelli, subcomandante da PM na ocasião, afirmou no boletim do Conselho de Disciplina da Corregedoria da PM de São Paulo que a morte ocorrida no Guarujá quatro anos antes atentava contra a própria polícia e que os acusados haviam cometidos faltas graves.
“Presentes os indícios de autoria e materialidade, verifica-se que os acusados praticaram condutas graves, atentatórias à Instituição, ao Estado, aos Direitos Humanos fundamentais e de natureza desonrosa, que violaram valores fundamentais, determinantes da moral policial militar e deveres éticos emanados desses valores, que vulneram a disciplina policial militar, passíveis de serem analisadas”, atestou o subcomandante.
Porém, em 20 de junho de 2018, o Conselho de Disciplina da PM decidiu arquivar o caso, alegando não haver provas robustas para acusar Renato e seus companheiros e citaram o excludente de ilicitude para encerrar o inquérito administrativo. “Em razão da insuficiência de provas até o presente momento e os indícios de estarem a conduta dos acusados(…) sob o manto do excludente de ilicitude, entendo serem improcedentes as acusações que pesam em seus ombros”, diz o documento que encerrou as investigações dos superiores sobre os subordinados.
Fora dos processos internos da corporação, Renato e seus parceiros continuam sendo processados. Passada uma década, ainda não há data para que sejam julgados efetivamente pela morte Gualtério Oliveira em 2013. Em 24 de julho deste ano, alguns poucos dias antes do sargento Renato Moreira se envolver em mais uma morte na cidade de Guarujá, o juiz Thomaz Correa Farqui marcou para o dia 20 fevereiro de 2024 uma audiência para instrução, interrogatório, debates e julgamento de forma virtual. Ainda não há certeza que os acusados passarão por um júri popular e não há previsão para que isso ocorra.
Procurada pela Alma Preta Jornalismo, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) não se posicionou até a publicação deste texto. Caso o órgão vinculado ao governo do estado se posicione, a reportagem será atualizada.