Depois de um ano do assassinato da ex-vereadora, família mantém a rotina e a cautela diante do desdobramento das investigações sobre quem mandou matar Marielle; Irmã exige a descoberta de mandante
Texto / Pedro Borges
Foto / Solon Neto
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Estávamos há, pelo menos, duas horas na casa da família de Marielle Franco, no Rio de Janeiro (RJ). O clima do diálogo era carregado. De um lado, Marinete, mãe; Antonio, pai; Luyara, filha; e Anielle, irmã, falavam sobre a morte de uma pessoa querida.
Do outro, os repórteres demonstravam o cansaço em receber tantas informações pesadas. Mas era chegada a hora. Mesmo que o tema fosse delicado, não era possível deixar de perguntar: “Vocês foram ameaçados? Se sentem ameçados?”
Silêncio e um olhar de todos para Anielle, como forma de incentivo para falar. “A nossa vida não mudou. A gente continua no mesmo lugar”, disse.
As ameaças, contudo, aconteceram. Uma delas de maneira mais direta, durante o segundo turno da eleição presidencial de 2018 disputada entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL).
“Eu sofri alguns ataques na internet e um ataque presencial com a minha filha no colo, inclusive. Eu saindo do trabalho, vindo para casa, o cara me cuspiu e me xingou. Ele me xingou, ‘ah, feminista de merda, irmã daquela bandida, o ‘mito’ [em referência a Bolsonaro] vai acabar com isso’”, se recorda, com nítida expressão de desdém e raiva.
A família, porém, relata que coisas “estranhas” aconteceram, como carros parados em frente à residência e veículos seguindo os familiares na rua.
O medo também gira em torno do fato da família ficar em evidência e a todo momento ser associada à ex-vereadora, rotineiramente odiada em segmentos conservadores da sociedade por ser referência na luta dos direitos humanos no país. “Assusta um pouco porque a gente tem sido alvo. Toda hora é ‘a família da Marielle’. Ah, ‘a irmã da Marielle’”, revela Anielle.
A família, contudo, tem tomado uma série de precauções. Em diálogo prévio com a equipe de reportagem do Alma Preta, por exemplo, evitaram de enviar o endereço da casa ou mesmo do Instituto Marielle Franco. Os cuidados continuam a ser tomados de maneira dobrada enquanto as investigações sobre o assassinato da ex-vereadora não são solucionados.
Em meio a essas ameaças diretas – e veladas – e ao momento de violência no Rio de Janeiro, a família sente dificuldade em construir parcerias e mesmo relações de confiança.
“A gente conta nos dedos as pessoas com que podemos confiar. A gente se sente no meio, sabe? Porque bem ou mal, você é da família da Marielle. Até onde estamos seguros? A gente não sabe ainda”, conta Anielle Franco.
As investigações
A prisão, em 12 de março, do policial Ronnie Lessa, acusado de atirar em Marielle Franco, e o ex-militar Élcio Vieira de Queiroz, preso sob o indício de ter dirigido o carro utilizado para a execução do crime serviram de acalento para a família, que ainda espera descobrir quem mandou matar a ex-vereadora.
“Não é comemorar, tem que chegar no mandante. A gente sabe que foi um crime de ódio, mas foi político também. Realmente não dá para ficar durante tanto tempo sem nem ter pista. Eles tinham que falar com alguém”, disse.
As investigações seguem com o objetivo de descobrir a mando de quem os dois agentes de segurança executaram a ex-vereadora.
“As promotoras do caso, tudo o que elas falaram que ia acontecer, aconteceu. Elas estão dando a palavra delas, ajudando a família. Elas deram a notícia às 5h da manhã e falaram que estão conosco”, afirmou Anielle.
A segurança de Marielle
Antonio Francisco da Silva, pai de Marielle, acredita que a filha só foi assassinada porque fazia política de uma maneira única.
“A política que a Marielle fazia era de enfrentamento, era de ir lá no local das covardias, das execuções. Ia, falava, dava voz àquelas pessoas. Por isso, e dessa forma, por esse motivo, ela foi assassinada”, disse.
Anielle completa o pai e acredita que a vítima de assassinato só poderia ter sido sua irmã. “Primeiro porque ela era uma das únicas que andava desprotegida, segundo porque ela sabia entrar e sair com todo mundo. Dialogava com todo mundo. Falava com todos os partidos. Entrava e saia daquela casa do segurança até a faxineira. Ela era diferente”, relata.
Apesar desses fatores, que a colocavam em destaque, Marinete Silva, sua mãe, acredita que a possibilidade de ser assassinada não se passava pela cabeça da filha, que vivia um momento de muita segurança no parlamento.
“Não tinha nenhum tipo de ameaça para se provar. Com tudo o que ela acreditava, nunca iria imaginar, nem ela mesmo”, disse.
A advogada sabe, porém, que essa não é uma realidade exclusiva da filha. O Rio de Janeiro que viveu sob uma intervenção militar de caráter federal durante parte de 2019 e presencia um tensionamento na política de guerra às drogas, que atinge sobretudo os grupos negro e periférico.
De acordo com dados apurados pelo UOL, entre janeiro de 2016 e março de 2017, pelo menos 1.227 pessoas foram assassinadas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro. De todo esse contingente, 581 foram identificados como pardos, 368 como pretos, dois grupos que compõem o contingente negro, 141 brancos e outros 137 não tiveram o quesito cor detalhado. Em números proporcionais, para cada 10 pessoas executadas pelos agentes de segurança fluminense, 9 eram negros.
“Não é fácil passar pelo o que eu estou passando e ter de passar pelo o que essas mães estão passando hoje, vendo essa matança e esse Estado genocida, que não se compromete com o outro”, conta Marinete.
Proteção
Depois do assassinato de Marielle, Anielle recebeu um convite para ser protegida e entrar no programa de proteção da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Naquele momento, não aceitou o convite, porque teria toda a rotina alterada. Não poderia deixar de trabalhar e frequentar os espaços e ambientes que costuma ir.
A família, contudo, ventila essa possibilidade, dependendo do desdobramento das investigações do assassinato de Marielle e do recebimento ou não de novas ameaças.
Para além dos familiares, Marcelo Freixo, deputado federal (PSOL-RJ), e Monica Benício, viúva de Marielle, também entraram em evidência e passaram a conviver com mais ameaças.
Marcelo Freixo tem proteção da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro desde 2008, quando passou a denunciar as milícias no estado e recebeu ameaças de morte. O pedido recebeu o apoio da Anistia Internacional. Mônica Benício tem proteção desde agosto de 2018, quando passou a fazer parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
O Ministério dos Direitos Humanos tem hoje cerca de 577 defensores de direitos no país sob a proteção do estado devido ao risco de vida em função da ação política que desenvolvem. Só em 2018, o gasto estipulado foi de R$ 11,7 milhões para a execução das ações e medidas de proteção, prevenção e resolução de conflitos.