O Alma Preta conversou com duas pesquisadoras do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro. Para elas, os maiores prejudicados da medida serão negras e negros
Texto / Pedro Borges
Imagem / Ellan Lustosa
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O presidente Michel Temer decretou uma intervenção federal de caráter militar no Rio de Janeiro no dia 16 de Fevereiro, sexta-feira. O texto, publicado na edição extra do Diário Oficial, prevê uma interferência na segurança pública do estado.
De acordo com a medida, o general Braga Neto passará a comandar, em nome das Forças Armadas, a segurança pública do estado fluminense. O atual encarregado do Comando Militar do Leste teve papel de destaque durante as operações militares nos jogos Olímpicos e Paralímpicos na cidade.
A ação, primeira dessa natureza na história brasileira desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, gerou turbulência no meio jurídico.
Allyne Andrade, supervisora de educação do IBCCRIM e doutoranda em Direitos Humanos pela USP, diz que a Constituição Federal, em casos de intervenção, prevê a substituição de uma figura civil por outra em momentos de crise.
“Algo que me assusta é a natureza do interventor eleito, de ter sido posto um militar”.
Sheila Carvalho, representante do IBCCRIM no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, afirma que Michel Temer reinterpretou a legislação e propôs uma intervenção militar, algo “que não é possível, e que pelas normas não poderia prosperar, mas não é o que está acontecendo”.
Ela recorda que a intervenção militar não é algo novo na vida no Rio de Janeiro, assim como não é a militarização dos territórios periféricos.
“Acho que as UPPs são uma experiência de intervenção militar na região que deram frutos negativos e colocaram a população pobre, preta, periférica numa situação muito complicada”.
Atuação do exército no Rio de Janeiro se tornou frequente (Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil)
A representante do IBCCRIM tem razão, essa não é a primeira vez que o governo fluminense recebe apoio das Forças Armadas. Somente na última década, 12 pedidos de colaboração do exército na segurança pública do estado foram feitos.
As últimas medidas costumavam vir baseadas na Garantia da Lei e da Ordem (GLO), artigo previsto na Constituição Federal que concede a permissão para as forças armadas exercerem as funções que as policiais estaduais têm.
Apesar de na teoria a intervenção não ter o poder de suspender os direitos dos cidadãos cariocas, Sheila Carvalho diz que o cenário político, a manobra constitucional feita pelo presidente e o cotidiano violento a que a comunidade negra esta submetida pelo Estado geram incertezas.
“Em tese a pessoa não pode entrar na sua casa sem mandato, em tese você não pode balear uma pessoa que está andando na rua, em tese você não pode arrastar alguém para dar testemunha. Aquelas garantias que existem, sempre existiram, continuam, mas são fragilmente aplicáveis as comunidades marginalizadas. Então não dá para saber exatamente como vai ser com esse contexto de agora”.
A assinatura do decreto foi feita no mesmo dia em que Michel Temer deu uma declaração em rede nacional justificando a medida, que seria uma resposta ao crime organizado, que teria tomado “conta do Rio de Janeiro”.
“[O crime] é uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo. Por isso, acabamos de decretar neste momento a intervenção federal na área da segurança pública do Rio de Janeiro”, afirmou.
O discurso do presidente, fundado no combate à guerra às drogas, apontada por movimentos sociais como uma justificativa para a morte de afrodescendente nos territórios pobres, gera receio acerca dos efeitos dessa intervenção, de acordo com Allyne Andrade.
“A nossa principal preocupação são com os nossos homens negros. A gente já sabe que a polícia tem uma licença para matar”.
Repercussão
A proposta, como era de se esperar, movimentou o debate público no país. Os canais de comunicação passaram a noticiar o fato e a convidar especialistas em segurança pública para debater o tema.
O Alma Preta convidou duas integrantes do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Allyne Andrade, supervisora de educação do instituto e doutoranda em Direitos Humanos pela USP, e Sheila Carvalho, representante da entidade no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, para dialogar sobre o fato.
Ambas as pesquisadoras se preocupam com os aspectos legais e políticos da medida proposta pelo governo federal e com as consequências dela para a comunidade negra.
Allyne Andrade considera problemática a forma como os soldados do exército serão julgados caso exerçam algum abuso. Se cometerem algum excesso, os soldados serão avaliados em tribunais militares e não civis.
Em 16 de Outubro de 2017, o presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.491, que determina a averiguação na justiça militar de supostos crimes cometidos por militares contra civis. A medida se aplica para situações em que os oficiais estão cumprindo tarefas ordenadas pelo governo ou o Ministro da Defesa.
“A gente está dando poderes imensos para esse interventor militar e para as forças armadas que vão intervir no território”, afirma Allyne.
Movimentos sociais criticam as ações violentas do Estado nas periferias da cidade (Foto: Coletivo Papo Reto)
Outro fator que incomoda Sheila Carvalho é a não apresentação de quem são os “verdadeiros alvos dessa intervenção militar”, como ela descreve.
“O que me faz falta em todas as narrativas que eu estou escutando é mostrar como isso dialoga com a política de extermínio da juventude negra, a política de encarceramento em massa da população negra e periférica”.
Allyne Andrade também recorda que a população negra, em meio a intervenção militar, perde de todos os lados. Isso porque os territórios marginalizados são compostos e ocupados por afrodescendentes.
“É uma guerra em que a gente perde de dos todos os lados. Os soldados mais jovens, os policiais militares, os bombeiros são também jovens negros. São eles a ficar na linha de frente e expostos nessa lógica de guerra. E do outro lado temos os traficantes, os ditos inimigos do Estado, e no meio disso tudo tem uma população nesses territórios fragilizados que também é negra”.