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Nas panelas do Pânico, cozinha o humor racista

Após uso de blackface em quadro, protestos e indignação de brasileiros e africanos, programa é denunciado pela OAB à SEPPIR

17 de agosto de 2015

Texto: Solon Neto

Com trilha sonora de tambores tribais surge em cena um ator branco com o corpo pintado de preto, um “blackface”. Ele balança os braços, mistura ingredientes com desprezo, e bebe água da torneira como um ser primitivo. De repente, dialoga com o sobrenatural, em alusão às religiões de matriz africana. Sua forma de agir exalta gestos tão ininteligíveis quanto sua fala, que se resume a um encadeamento de grunhidos sem sentido. Uma série inacreditável de estereótipos e desrespeito em rede nacional.

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É preciso ter estômago para assistir ao personagem “Africano”, do Pânico na Band. Parte do “Pânico’s Chef”, sátira do sucesso de audiência “MasterChef”, o racismo na perfomance do ator Eduardo Sterblitch é intragável. Além do mais, racismo é crime inafiançável e imprescritível.

A televisão parece não ter limites, mesmo com pesado aporte de investimentos públicos feitos nela. Dados de 2012 mostram que a Rede Bandeirantes é o quarto canal de televisão em recebimento de verba federal de publicidade, dinheiro de impostos. Ela faz parte de um seleto grupo que concentra 70% dessas verbas. Assim como outros canais de televisão, usufrui de uma concessão pública para transmissão de seu sinal, utilizando do espaço público para exibir sua programação.

>Alma Preta tentou contato com a produção do programa, e apesar das perguntas recebeu como resposta a mesma nota enviada à Imprensa na semana passada. Na nota, o programa “pede desculpas ao público que se ofendeu com o personagem” e se justifica dizendo que o “Africano” faz parte de um quadro em que “há caracterizações de mexicanos, chineses, árabes, entre outros”. A reportagem questionou a assessoria de imprensa sobre a naturalização de xenofobia e racismo nessa resposta, porém não houve retorno. Alguns sites divulgaram junto com a nota a informação de que o personagem sairá do ar.

OAB denuncia racismo do programa à SEPPIR

No dia 10 de Agosto, o advogado representante da OAB e presidente da Comissão Nacional da Verdade Sobre a Escravidão Negra, Humberto Adami, enviou à Ouvidoria da Igualdade Racial da SEPPIR,Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, denúncia de racismo sobre o personagem. No documento, ele pontua que “esse tipo de afronta racial atinge toda uma etnia” e critica o uso do “black face”, pois contribui para “perpetuar os efeitos e resquícios da escravidão negra”.

Humberto informa que a denúncia não tipifica crime, porém constata que houve “uma humilhação, um dano, um menosprezo, uma forma de baixar a auto estima de toda uma população, e não de apenas um indivíduo. […] tendo sido contra uma coletividade, eu entendo que, se ficar caracterizado o crime, o crime é de racismo e não de injúria racial”.

O advogado, que também foi Ouvidor da SEPPIR por três anos, acredita que a reação contrária do público ao quadro montado pelo Pânico foi muito positiva, assim como o recuo imediato da emissora. Humberto acredita que a mobilização imediata mostra uma mudança de postura da população: “Até pouco tempo atrás isso passaria despercebido, como passou despercebido por uma grande maioria da mídia brasileira. Precisou um jornal do Senegal reclamar para que os grandes jornais brasileiros pudessem acordar e enxergar que não é natural esse tipo de deboche, esse tipo de programa. O próprio programa já tinha saído aqui duas vezes, e não se tem registro de que a grande imprensa brasileira tenha feito essa anotação de racismo nesse caso. Somente quando viram os africanos reclamando no Senegal e as reclamações na internet é que a mídia passa dar uma atenção. É preciso ter um olhar mais atento e mais imediato para esse tipo de questão que não pode ser naturalizado, não pode se achar que isso é uma coisa normal”.

O atual Ouvidor da SEPPIR, Carlos Alberto de Souza, pediu explicações à Rede Bandeirantes, além de encaminhar a denúncia ao Ministério Público Federal e Estadual, Ministério da Justiça e Ministério das Comunicações. O Ouvidor informou ao Alma Preta que a emissora ainda não enviou resposta, e as denúncias estão tramitando nos Ministérios.

Sobre a denúncia, ele declara: “Esperamos que eles possam tomar a providência da lei, que é o mais correto” e também “que as instituições possam adotar providências de não permitir que programas como esse venha disseminar o ódio e disseminar a discriminação e o preconceito”.

“Eu só consegui assistir aos primeiros doze segundos. É um absurdo”

Sandy Lara dos Anjos organizou no dia nove de agosto um evento no facebook em repúdio ao personagem. Em poucos dias milhares de pessoas aderiram à sua iniciativa, e multiplicaram-se as manifestações. Sandy tem 22 anos, é negra, trabalha como professora e vive na baixada fluminense, no Rio de Janeiro. Seus pais são militantes negros, e desde criança incentivam a filha a lutar pela causa. Ela soube do caso através de uma amiga e conta que mal conseguiu assistir ao vídeo: “Eu só consegui assistir aos primeiros doze segundos. É um absurdo”.

A militante diz ter recebido mensagens com tentativas de intimidação após criar o evento, o que é visto por ela como consequência do racismo da sociedade brasileira: “O que eu vejo e sinto é que estamos inseridos numa sociedade tão racista, que atos que nitidamente querem fazer chacota com uma raça, em público e sem pudores, são considerados coisas normais. E quem reclama é tido como louco e vitimista, tentam intimidar.”

Ela recorda que não é a primeira vez que há uso do “blackface” no próprio Pânico, que já cometeu o erro ao representar o lutador Anderson Silva. A televisão brasileira tem um histórico no assunto. O caso mais emblemático talvez seja o da novela “A Cabana do Pai Tomás”, exibida em 1969, na qual o ator Sérgio Cardoso fazia uso da técnica racista. À época o movimento negro protestou e o personagem saiu do ar.

“Não é o primeiro caso de Blackface no programa pânico, e longe de ser na TV. A mídia, que é constituída por pessoas que consideram isso normal, dá para a sociedade o conteúdo que ela acha legal rir. Quase todo programa de humor tem uma negra que é empregada doméstica e fala tudo errado, ou um cara negro que representa um safado, vagabundo que trai a esposa pra todo mundo rir. Todos julgam engraçado coisas que perpetuam estereótipos sobre pessoas negras.”

Recentemente, o programa “Zorra Total”, da Rede Globo, principal televisão beneficiária de verbas públicas de publicidade no Brasil, também foi acusado de racismo pelo uso de Black Face. A personagem “Adelaide”, interpretada pelo ator Rodrigo Sant’anna, é o exemplo típico do tipo de escárnio descrito por Sandy como corriqueiro na televisão brasileira. Em 2012, a personagem foi denunciada por racismo pela Ouvidoria da Igualdade Racial, orgão da SEPPIR, e passou a ser investigada pelo crime.

“A tendência é que esses casos venham cada vez mais à tona, porque cada vez mais estamos menos tolerantes com os racistas”. Sandy acredita que o quadro possa mudar conforme haja maior visibilidade para o povo negro brasileiro, que para ela deve “sair do cantinho”, apesar de não considerar isso uma tarefa fácil. Porém, ela enxerga que o episódio do “Africano” demonstra a necessidade de união, visto que os protestos geraram repercussão negativa para o programa.“Quanto mais negras e negros conscientizados mais diferença fazemos. O problema é que o racismo é tão cruel que faz com que pessoas negras julguem isso como normal e caiam no mito de que já não há mais racismo no Brasil.  Quanto mais negras e negros empoderados, mais avançamos pra cima dos racistas.”

“Brasil, um país racista?” Para africanos, a resposta é sim

O “Africano” repercutiu internacionalmente. Diversos veículos de comunicação mostraram incredulidade diante do uso do “blackface” e da forma como o programa “Pânico na Band” representou negros e africanos. Quem também deu espaço para a discussão foi o “Washington Post”, dos Estados Unidos, país marcado pelos conflitos raciais. Sandy Lara conta ter sido procurada pelo “News Day”, do “Zimbábue” e pelo “Lusaka Voice”, de Zâmbia. Já o site Senegalês “Seneweb” divulgou um vídeo com quadro com a pergunta “Brasil, um país racista?”. Os dados sobre violência no Brasil não deixam dúvida, assim como casos recentes de ataques a haitianos negros no Brasil também dão indícios da comportamento brasileiro no assunto.

Baw Artur, jovem angolano e estudante universitário, vive há cinco anos no Brasil, e afirma que percebeu o racismo no país desde sua passagem pela imigração. Ele diz ser testado todos os dias devido à sua cor e origem. Algo novo em sua vida, já que diz não ter vivenciado isso antes em Angola. Baw também recebeu com grave incômodo a notícia da existência do personagem do Pânico: “Além de ser um ato racista é uma forma como esses racistas e desumanos ferem a nossa integridade. É uma total falta de respeito e desconsideração pelos africanos que foram arrancados dos seus lares há muito tempo atrás e trazidos em péssimas condições para dar vida a esse lugar que todos os brasileiros chamam de pátria amada”.

Já Ozias La Blessed, nascida em Benin, também cursando universidade no Brasil, se sentiu indignada com o personagem: “Ao me deparar com esse vídeo, eu surtei. É como se eu fosse pegar os criminosos no flagra. Aí está a prova de que a mídia está transmitindo uma imagem da África que nós africanos não merecemos”. A estudante exige retratação por parte do programa, além da retirada do vídeo do ar. “Esse video da Band deve ser censurado. Para nós africanos perdoarmos isso, deveria ter outros números do pânico apresentando a verdadeira África. A África rica naturalmente, culturalmente e economicamente.”

Ozias conta que ao chegar aqui não tinha dimensão da herança cultural que a África deixou aos brasileiros, mas se sente decepcionada com a conotação ruim imprimida à essa herança: “Sempre soube que o Brasil tinha uma forte herança africana pelo fato de que tem descendentes brasileiros no meu país. Mas não sabia que ela era tão forte. Pensava que ela tivesse esquecida. Mas ao vir aqui, percebi que tem e bastante. Mas mais uma vez me decepcionei quando eu soube que essa herança é ligada ao mal, a tudo que é negativo.” Ela também se sentiu surpresa com a ignorância que muitos brasileiros demonstram sobre o continente africano mesmo tendo tanto da África em sua cultura. Ela, no entanto, acredita que há muita culpa da mídia nesse aspecto, e estranha as perguntas que já ouviu sobre sua casa:

“Desde que eu cheguei no Brasil, me deparei com a ignorância do pessoal sobre as realidades africanas. Eu já ouvi perguntas do tipo: você veio estudar aqui por que não tem faculdade no seu país? Lá você tem casa? Tem muita guerra e miséria no seu país?”. Ozias diz acreditar que o Brasil tem um racismo velado, presente em pequenas atitudes. Apesar de ser negra, ela afirma que aqui se enxerga principalmente como estrangeira em um país que não é seu: “um dia, voltarei pra casa, e lá , não verei mais o africano sendo humilhado”.

Por sua vez, Baw confirma a visão ao contar que ser africano no Brasil é ser visto como sobrevivente de guerra e de fome, e diz sentir duplo preconceito, um por ser negro e outro por ser africano. Baw atribui esses problemas à mídia brasileira, excessivamente voltada para a Europa e Estados Unidos, e que trata a África com estereotipação: “A mídia brasileira é voltada para o ocidente. Ela  não passa nada de África, a mídia brasileira é retrógrada e defasada. Quando se fala de África, a mídia brasileira apresenta fome, guerra e animais selvagens, e não enxerga ou mostra a sua própria herança, que contribuiu para esse Brasil e para o mundo. Enquanto isso não acontece, nós africanos e descendentes de África continuaremos a nos orgulhar da nossa mãe África”.

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