Violência na Cracolândia é vista como mais uma face da política de guerra às drogas, entendida por ativistas e pesquisadores como a principal justificativa para a morte e o aprisionamento de negros e pobres.
Texto / Pedro Borges
Foto / Daniel Arroyo
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No dia 11 de Junho, por volta das 6h da manhã, a prefeitura e o governo do estado de São Paulo orquestraram nova ação na Cracolândia, na Praça Princesa Isabel, centro. Policiais militares e guardas civis metropolitanos participaram da operação, que resultou no incêndio do local, na apreensão de 2 kg de Crack, R$ 1.600, três celulares e na prisão de dois suspeitos por envolvimento com o tráfico de drogas. Para a retirada das barracas e lonas da praça, foram deslocados 24 caminhões e 162 pessoas para a limpeza.
A investida foi uma nova etapa da ação do dia 21 de Maio, considerada pelos órgãos de segurança como uma das maiores já realizadas na região, com cerca de 900 agentes do Estado. A operação do dia 21, iniciada às 6h 49 min da manhã, resultou na prisão de 51 pessoas e no registro de diversas violações de direitos. Moradores, movimentos sociais e até veículos de mídia presenciaram fatos como o ateio de fogo por parte da Guarda Civil Metropolitana (GCM) nos pertences dos moradores, a derrubada de prédios com pessoas dentro, abordagens policiais truculentas, entre outras intervenções.
Cleiton Ferreira, morador da região da Luz e participante do programa De Braços Abertos, do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, diz que a brutalidade por parte da GCM chamou a atenção no dia 21 de Maio. “A polícia militar a gente já está até acostumado, porque eles chegam na opressão máxima. Eles chegam com bala de borracha, bomba. O pior foi o que veio por trás, que foi a Guarda Civil Metropolitana. A GCM tirou os pertences do pessoal e colocou fogo, sem necessidade”.
Ele relata também que a brutalidade dos agentes de segurança não foi restrita aos dias 21 de Maio e 11 Junho. “Isso daí eles sempre fazem, mas nunca é mostrado realmente. Quantas roupas minhas já roubaram? Até livros eles levam. Eu mesmo quando fui preso, fui porque roubei livro numa loja, porque a GCM tinha pegado todos os meus livros e eu não conseguia ficar sem leitura”.
Os advogados da Defensoria Pública, Rafael Lessa e Davi Quintanilha, dizem que o órgão acompanha com atenção a Cracolândia desde o dia 21 de Maio, e que para além de violações no campo da segurança pública, como a revista pessoal e as abordagens policiais por parte da GCM, algo ilegal de acordo com a constituição, há denúncias no campo da saúde.
“Muitas pessoas relatam que desejam tratamento, mas há falta de vagas ou os serviços não são adequados para a necessidade da pessoa. Assim, as ações precisam ser ampliadas, para dar mais as oportunidades sociais para as pessoas da região”, contam os defensores.
Histórico da Cracolândia, a Boca do Luxo e do Lixo
Na última década do Século XIX, a Vila Buarque, bairro central de São Paulo, cuja maior referência é o Largo do Arouche, era marcada por bares e boates frequentados pelas elites da cidade, região que mais tarde foi nomeada como Boca do Luxo, e assim seguiu rotulada até meados dos anos 1970.
A região da Santa Ifigênia e dos Campos Elísios, também no centro da cidade, onde hoje se localiza a Cracolândia, recebe desde o final do Século XIX, data próxima à abolição da escravatura em 1888, a boemia e a vida noturna das classes populares. Nas primeiras décadas do Século XX, o espaço foi nomeado como a Boca do Lixo, local onde o Brasil desenvolveu durante os anos 1950 e 1970 o gênero cinematográfico da Pornochanchada.
Agente de segurança e moradores da região da Luz (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)
“É importante pensar que lá é um lugar com trajetória histórica de festa das classes populares, que o que é a Cracolândia até hoje. Muita gente vai para lá quando recebe o salário. Dia 5 e 10 do mês são dias que a Cracolândia triplica de tamanho”, explica Roberta Costa, antropóloga e ativista da Craco Resiste, movimento social com atuação no território.
O termo Cracolândia foi usado pela primeira vez pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, em 1995, em reportagem sobre apreensões e prisões relacionadas às drogas por parte da recém-criada Delegacia de Repressão ao Crack, fundada pelo governador do estado da época, Mário Covas (PSDB). Desde então, São Paulo teve 7 diferentes prefeitos, e 5 diferentes nomes a frente do governo do estado. Nenhum conseguiu entender e resolver a Cracolândia.
Em 2005 aconteceu a “Operação Limpeza”, seguida da “Operação Dignidade” em 2007, e da “Operação Sufoco” em 2012. As ações não resolveram os problemas da região, atuaram por meio da força policial, e descentralizaram as áreas de consumo. De acordo com dados da prefeitura de São Paulo, hoje o município conta com 8 “minicracolândias”.
“Faz mais de 20 anos que falam que vão acabar com a Cracolândia, e nunca, por mais que se tenha anunciado isso várias vezes, nunca aconteceu. A Cracolândia é um território itinerante, chama-se o fluxo por uma analogia aos fluxos das festas funks das periferias de São Paulo. A Cracolândia, assim como as festas funks, são delimitadas pela quantidade de pessoas, não por um território específico”, explica Roberta Costa.
Guerra às drogas
Pesquisa publicada no início de 2017, com o título “Crack: Reduzir Danos”, organizada pela Open Society Foundation, mostra qual o perfil dos participantes do antigo programa De Braços Abertos, criado pelo ex-prefeito Fernando Haddad para atuar no território, e com fim anunciado por João Dória no dia 21 de Maio.
De acordo com o documento, 68% dos participantes do antigo programa são negros, a maioria tem baixos níveis de escolaridade e não possui carteira de trabalho. 39% temem ser alvo de violência sempre ou quase sempre e 26% às vezes. Em geral, as pessoas declararam redes frágeis de apoio, com 36% sem algum parente com quem possa contar e 47% sem amigos para quem recorrer.
Outra característica dos moradores da região é o receio com relação à polícia. 80% dos participantes do programa De Braços Abertos disseram ter uma relação ruim ou muito ruim com o aparelho repressivo do Estado.
A relação de desconfiança entre usuários de droga, pobres e negros, tem uma justificativa histórica. Na década de 1970, nos EUA, o presidente Richard Nixon criou uma política de guerra às drogas. O objetivo era acabar com o tráfico de entorpecentes por meio do aprisionamento de traficantes. O resultado foi o insucesso no combate ao crime organizado e o status de maior população carcerária do mundo.
Números da pesquisa National Household Survey on Drug Abuse and Health, feita nos EUA de 2001 a 2010, mostra os diferentes hábitos de consumo da maconha em dois grupos raciais, negros e brancos. Em 2001, 10% dos entrevistados negros haviam usado maconha nos últimos 12 meses, contra 11% dos brancos. Em 2010, os números mudaram para 15%, por parte dos negros, e 12,5% por parte dos brancos.
Dados colhidos a partir das prisões feitas pelo FBI, polícia americana, entre 2001 e 2010, mostram a desproporção do olhar do Estado para negros e brancos. Se em 2001, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, menos de 200 foram presos por porte de maconha, mais de 500 negros foram encarcerados pela mesma razão. Em 2010, a taxa de aprisionamento dos brancos se mantém estável, enquanto a dos negros sobe para a de 700 para cada grupo de 100 mil.
Para Nathalia Oliveira, presidenta do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo (COMUDA) e coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), “a atual política de drogas é a justificativa mais atual, de parte do Século XX e início do XXI, para desenvolver mecanismos de extermínio do povo negro. Essa política nos deixa super representados na população em situação de rua, nos números da letalidade policial, nos presídios e criminaliza os territórios pobres”.
O Brasil importou esse modelo dos EUA e em 2006 adotou a nova Lei de Drogas, que dá o poder ao agente de segurança, muitas vezes representado pela figura do policial, de decidir se o sujeito com porte de entorpecentes é usuário ou traficante.
Dados do Ministério da Justiça mostram que o número de presos por tráfico de drogas no Brasil aumentou de 31.529, em 2006, para 138.366, em 2013, salto de 339%. O único crime que supera o crescimento do tráfico de drogas entre 2006 e 2013, é o tráfico internacional de entorpecentes, com a alta de 446%.
A divisão racial e de gênero aponta que os mais prejudicados com essa política são os negros, e em especial as mulheres negras. Em 2012, o Brasil tinha uma população carcerária próxima dos 470 mil, sendo que desse total, 173.536 eram brancos e 295.242, negros. Dados do Infopen Mulheres de 2015 mostram que 60% das mulheres encarceradas são negras e que 68% das mulheres atrás das grades estão nesta condição por crime relacionado ao tráfico de drogas. O tráfico motiva 25% do encarceramento dos homens.
Outra face da política de guerra às drogas é a letalidade policial e a alta taxa de homicídios no país contra a população pobre e negra. Só em 2012, enquanto 9.667 brancos morreram por armas de fogo, outros 27.638 negros perderam a vida da mesma forma. Estudo feito pelo programa SPTV via Lei de Acesso à Informação com base nos dados de 2014 denuncia que, para cada cinco assassinatos na cidade de São Paulo, um é cometido pela polícia. Das 1.198 vítimas de homicídio na capital, 343 morreram por policiais em serviço, o maior número dos últimos 10 anos.
Maioria dos moradores da Cracolândia são negros (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)
Pesquisa utilizada de fonte para o relatório “Crack: Reduzir Danos” aponta a vulnerabilidade da população em situação de rua e usuária de drogas. O estudo “Alta Mortalidade de Jovens Usuários de Crack no Brasil: um estudo acompanhado de 5 anos” mostra que esse grupo tem uma taxa de mortalidade 7 vezes mais alta do que a população em geral, e que 6 em cada 10 moradores de rua e usuários de drogas serão assassinados.
Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), acredita que o ônus da atual guerra às drogas no Brasil é sentido pela população negra, pobre e periférica. “É ela quem paga a conta da pior forma. A guerra às drogas produz violência e os negros, pobres e periféricos são as vítimas preferenciais dela”.
Juliana Borges, ativista da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), pensa que se o Estado estivesse em guerra contra as drogas e não contra pobres e negros, atuaria em grandes plantações de maconha e em laboratórios que escoam toda a produção de entorpecentes, ao invés de militarizar os territórios pobres.
“A gente vive uma guerra fria no Brasil, uma guerra silenciosa, que atinge grupos muito bem delimitados, majoritariamente negros, jovens, em idade ativa de produção, que não são excluídos, mas eliminados”, afirma Juliana Borges.
Por esses motivos, ela pensa ser importante que os movimentos sociais e em especial o negro combata as ações na Cracolândia engendradas pela prefeitura e o governo do estado. “O movimento negro precisa participar ativamente se colocando contra essas ações. Isso é também uma face do genocídio do povo negro. Se a gente pensar no tipo de violência que aconteceu na Cracolândia, e pensar que 70% daquela população é negra, é o Estado operando numa lógica de que não há direitos para esses corpos”.
Redenção
A primeira crítica compartilhada com relação ao programa é o fato da prefeitura não tê-lo apresentado. “Eu não tenho como dizer quais os equívocos do programa Redenção, porque ele não foi apresentado até o momento. Ele não é um decreto, não foi publicado, ele é só um nome”, diz Nathalia Oliveira, presidenta do COMUDA e coordenadora da INNPD.
A não divulgação do programa motivou uma ocupação da Secretaria de Direitos Humanos, entre os dias 24 e 26 de Maio. O protesto foi organizado por uma série de movimentos sociais que discutem política de drogas e a população em situação de rua. “É um absurdo a gente ter que ocupar por informação, sobre um programa que deveria ser público, que deveria ser construído com as pessoas. A prefeitura disse que teríamos uma reunião aberta para explicar o que é o programa. A gente desocupou e eles não cumpriram a promessa. A gente não teve essa reunião até hoje”, explica Roberta Costa, antropóloga e ativista da Craco Resiste.
Apesar de não ter sido apresentado, o programa era discutido há meses com o Ministério Público, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e outras entidades. Maria Angelica Comis, coordenadora de políticas sobre drogas da Secretaria de Direitos Humanos da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, condena as ações policiais por terem passado por cima das propostas iniciais do Redenção. “O que deveria ter acontecido, que era o cadastramento das pessoas, as abordagens sociais de saúde para conhecer cada indivíduo e trabalhar baseado na singularidade, foi atropelado por uma ação policial”.
Nathalia Oliveira sentiu a ausência da prefeitura durante as reuniões do COMUDA para discutir e construir o projeto. “Essa gestão não respeita os espaços de controle social da política pública, que é estabelecida a partir dos conselhos. Não é uma especificidade só do Conselho de Drogas”.
A crítica se estende aos movimentos sociais, que foram excluídos do processo. Roberta Costa repudiou a construção de uma política pública sem a presença dos mais interessados, os usuários e moradores da região, e os movimentos sociais que acompanham o dia-a-dia do território.
Internação Compulsória
No dia 23 de Maio, a gestão do Prefeito de São Paulo João Dória pediu à Justiça autorização para internar de maneira compulsória usuários de drogas com a aprovação de uma equipe média, mesmo que contra vontade dos indivíduos. A proposta foi barrada no dia 30 de Maio, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e a gestão do prefeito decidiu investir no convencimento dos usuários para a internação voluntária.
Cleiton Ferreira, morador da região da Cracolândia, discorda da internação compulsória. Ele acredita que a medida é ineficiente e apenas dá “férias ao problema”.
A Defensoria Pública acredita que a internação compulsória é custosa aos cofres públicos, tem baixa efetividade, e deve ser excepcional. O mais adequado para o tratamento, segundo os defensores, é a pessoa estar convencida da necessidade de ajuda e o cuidado, por parte do poder público, acontecer de maneira “multiportas”.
Em 2011, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia visitou 68 comunidades terapêuticas nos 24 estados da federação e no Distrito Federal. No relatório do estudo, há uma crítica às condições de desrespeito à cidadania dos internados. Em todas instituições visitadas, foram registradas violações de direitos, como: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras.
Mauro Aranha, médico e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), aponta para a importância dessas instituições estarem de acordo com critérios rígidos, para que não atinjam os grupos sociais mais vulneráveis, como os negros, LGBTs e mulheres.
Luta antimanicomial
A violação sistemática das comunidades terapêuticas contra os grupos excluídos faz Juliana Paula, psicóloga e ativista da Craco Resiste, aproximar essas clínicas com os antigos manicômios no Brasil. Para ela, ambos foram utilizados para tirar as pessoas de determinados grupos sociais de circulação, em especial a comunidade negra, e a justificativa também poderia passar pelas drogas.
“As comunidades terapêuticas são os novos manicômios. O que a gente vivenciou na época dos manicômios no Brasil, a gente vê hoje fragmentado em milhares de comunidades terapêuticas, que estão espalhadas por aí inclusive com financiamento público”, afirma Juliana Paula.
Mauro Aranha discorda da aproximação. Para ele, as internações compulsórias sob a Lei 10.216/2001 não têm conexão com a internação psiquiátrica ou do hospital psiquiátrico com os manicômios.
“Hoje, [a internação] deve ser pedida e fundamentada pelo psiquiatra e sob discussão com equipe multiprofissional, no sentido de proteger a vida ou a integridade de um determinado paciente, que não tem família que possa permitir essa internação e o juiz delibera a partir da fundamentação do médico”, explica Mauro Aranha.
Bandeira feita em ato em frente à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (Foto: Pedro Borges/Alma Preta)
Quais são os interesses na região?
A região da Luz, localizada no centro de São Paulo, é um local visto com alto potencial econômico para grandes empresários por conta da localização estratégica, próxima de metrôs e terminais de ônibus.
Juliana Borges, integrante da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), acredita que há um desejo por parte da especulação imobiliária na área e que não há coincidência dessa ação ocorrer com tanta violência contra esses grupos sociais excluídos.
Roberta Costa, antropóloga e ativista da Craco Resiste, destaca que, para além dos desejos econômicos, há também motivações higienistas, de “tirar pessoas das ruas para uma elite econômica, e para eles mesmos fazerem propaganda política e não terem essa cena que eles consideram feia”.
Apesar de concordar, Nathalia Oliveira, Presidenta do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool (COMUDA) e coordenadora da INNPD, acredita que os interesses econômicos na região ainda são nebulosos. “É difícil avaliar quais são os interesses políticos e econômicos sobre o território. Tem o interesse da construção de projetos imobiliários, não se sabem quais ainda, existe só uma propaganda do governo do Estado de São Paulo dizendo que serão moradias populares, mas não vi nada de concreto com relação a isso”.
O que ela enxerga de concreto é o interesse de construir uma cidade em que as pessoas fora do padrão estipulado pela prefeitura fiquem distantes da região central de São Paulo. “Senão não existiria essa disputa pelo território, senão a GCM não estaria desde o começo do ano recolhendo os pertences dos cidadãos em situação de rua e tratando esse pessoal muito mal”.
Indústria do cuidado
Outra questão posta pelos ativistas é a indústria do cuidado, ou seja, o lucro de empresários com a saúde das pessoas. Roberta Costa acredita que “essa indústria é algo muito nefasto e triste, porque ganha dinheiro em cima do sofrimento e da miséria dos outros. Hoje o mínimo que se paga numa internação por mês, que quem paga é o SUS, o que já é um problema, é algo no entorno de R$ 1.350 reais por pessoa. É muito dinheiro”.
Matéria publicada pelo jornal Agora aponta que a prefeitura de São Paulo contratou o Hospital Cantareira, cuja gestão é feita pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), órgão presidido por Ronaldo Laranjeira, responsável por integrar os programas Recomeço, governo do estado, e Redenção, prefeitura. O Hospital Cantareira vai receber 35,3% a mais do que os outros dois hospitais contratados pela prefeitura para cuidar de pessoas internadas advindas da Cracolândia.
A SPDM, em nota, disse que Ronaldo Laranjeira é professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e auxilia na integração dos programas Redenção e Recomeço de maneira voluntária, assim como não recebe vencimentos da SPDM. A assessoria de imprensa também afirma que a decisões finais sobre os programas são da prefeitura e do governo do estado, respectivamente.
A maior taxa paga pela prefeitura ao hospital se dá pelo serviço completo e a assistência 24h ofertados pelo Cantareira, que passou por mudanças para receber adolescentes. A SPDM ressalta que Ronaldo Laranjeira não participará na avaliação de qualquer dependente químico, e que atua apenas no comitê de integração entre os dois programas.
O Secretário Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Felipe Sabará, foi fundador da ONG Arcah, entidade que também trabalha com moradores de rua e usuários de droga. A equipe de reportagem do Alma Preta perguntou qual é a avaliação da ONG sobre as medidas de João Dória e Geraldo Alckimin na Cracolândia, e se há parcerias entre a Arcah e a Prefeitura de São Paulo. Até o fechamento desta edição, não houve retorno.
Qual a melhor maneira de resolver a Cracolândia?
A redução de danos é um conceito muito presente nas discussões sobre política de drogas. Para o pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), Maurício Fiore, apesar da controvérsia em torno do conceito, um fator essencial é a diminuição de danos associados ao uso de algum entorpecente sem cobrar, de maneira obrigatória, do usuário que ele se abstenha de consumir a droga.
“A redução de danos pode envolver ações muito diferentes, como, por exemplo, as que provêm necessidades básicas aos usuários mais vulneráveis (moradia, alimentação, trabalho etc.), insumos para uso mais seguro (seringas e cachimbos, por exemplo), e informações sobre drogas, incentivando formas e frequências menos danosas e/ou arriscadas de consumo”, explica Maurício Fiore.
Cleiton Ferreira defende a redução de danos. Ele diz que antes de participar do De Braços Abertos fumava 12 g de crack por dia, ficava a semana toda acordado e chegou a pesar 51 kg. Hoje, ele pesa 72 kg, fuma uma média de 5 g por dia.
“Nesses dias, gastei só 20 R$ com o Crack e comprei um óculos para mim. Você começa a se administrar, seu corpo começa a ver os outros lados, começa a se acostumar a ficar sem”, relata Cleiton Ferreira.
O Núcleo Especializado de Cidadania e de Direitos Humanos da Defensoria Pública propõe uma solução “multiportas”, com soluções específicas para cada indivíduo e alinhadas com a redução de danos, levando em consideração as diversas vulnerabilidades de cada grupo social.
Independente do nome do projeto e da política escolhida, Roberta Costa, antropóloga e ativista da Craco Resiste, acredita na importância da centralidade da ação ser o humano, e não a substância.
“A solução da cracolândia passa por isso, passa por uma transformação muito complexa de uma sociedade problemática. Por isso é tão mais simples e fácil para os governantes jogar a culpa em substâncias. Não dá para fazer um combate ao crack. Quando você combate o crack, você combate as mesmas pessoas combatidas em nossa sociedade, os pretos, pobres e periféricos. Eu acho que o problema é muito complexo e as soluções simples jamais darão conta”, expõe Roberta Costa.
Outro lado
Questionada sobre uma avaliação das ações iniciadas no dia 21 de Maio na região da Cracolândia do ponto de vista dos direitos humanos e quando pretende tornar público o programa Redenção, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Comunicação (SECOM), apresentou alguns números da atuação em conjunto com o governo do estado.
Entre os dias 21 de Maio e 5 de Junho, foram realizados 2.999 atendimentos no Cratod, equipamento localizado na região da Luz para o atendimento de usuários do programa Recomeço. Desses, 280 usuários foram encaminhadas para tratamento e internação.