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O Discurso da mestiçagem a serviço da branquitude: Antônio Risério e as contradições de um racismo “anti”racialista

19 de dezembro de 2017

A reflexão é uma resposta à publicação feita no jornal Folha de S. Paulo no dia 16 de Dezembro. O texto foi feito pelas pesquisadoras Lia Vainer Schucman e Mônica Mendes Gonçalves.

Texto / Lia Vainer Schucman e Mônica Mendes Gonçalves
Imagem / Reprodução

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Domingo, 17/12/2017, foi publicado na Folha de S. Paulo o artigo do antropólogo Antônio Risério. Tivemos contato com o texto em função do seu número significativo de compartilhamentos nas redes sociais. Dado isso, e o fato de o tema abordado ser orgânico não somente nos nossos estudos e pesquisas, mas no modo como aprendemos a enxergar a sociedade, achamos importante travar um diálogo com o texto, a partir de nossa perspectiva – intelectual, epistemológica e política – sobre a questão.

O antropólogo escreve pontos realmente importantes para o debate racial, como as categorias de classificação raciais e seu uso, a mestiçagem brasileira, o lastro político em que se assentam nossas condutas pessoais no que tange à raça. Contudo, o texto recai exatamente sobre o erro que pretende combater. Afirmamos isso a partir da análise de três questões fundamentais que o texto aborda. E pretendemos ilustrar nossa afirmação da maneira mais simples e didática possível – pois, a primeira ambiguidade quanto a errar pela afirmação do que pretende combater se evidencia pela não explicitação dos marcos conceituais de que parte o ensaio de Risério.
Em primeiro lugar, ressaltamos o modo como o autor aborda o “mulato” e fala sobre ele, repetindo a palavra insistentemente. Difícil não questionar porque alguém que está tão atento ao movimento negro faz questão de usar uma palavra tão criticada e pesarosa para esse segmento social. Mas indo diretamente ao texto, fica evidente a primeira contradição: o autor que não acredita na existência das raças, que condena o racialismo, acredita no “mulato”, categoria criada precisamente como matriz de algo que ele quer combater: a noção de raça biológica.

Nesse sentido, a argumentação racista dos teóricos do século XIX que acreditavam na raça biológica, ao menos do ponto de vista retórico, é bastante mais “lógica” que o texto de Risério: só pode haver mestiço ou mulato onde impera a ideia de raça, de raça originária, de raça pura. No seu texto, embora não possamos considerar a existência real e factual de negros e brancos, os “mulatos” existem, são uma realidade.

Embora o autor advogue que o movimento negro (desconsiderando a infinidade de diversidade de indivíduos negros e filiações políticas que compõem esse segmento que chamamos, intencionalmente, de Movimentos Negros, no PLURAL – já que homogeneizar o negro e suas escolhas políticas é expressão do racismo) defenda uma ideia biológica de raça, quase todos os acadêmicos e militantes anti-racistas, negros e/ou brancos, optam por pensar a raça como uma construção SOCIAL, o que significa dizer que a raça como realidade biológica não existe.

Todos eles sabem que os marcadores genéticos de uma determinada raça poderiam ser encontrados em outras e, portanto, experiências genéticas comprovaram que negros, brancos, mestiços e amarelos não têm diferenças que poderiam diferenciá-los enquanto indivíduos de raças diferentes. E da mesma forma que enquadrar-se negro ou branco seria uma arbitrariedade, designar mulato igualmente seria. Logo, a categoria “mulatos” e/ou mestiços escolhida por Antonio Risério é tão arbitrária quanto a classificação branco/negro escolhida pelos movimentos políticos que ele critica.

O que existe de fato (no sentido leigo e sociológico) são pessoas com descendências e fenótipos diversos, os quais produzem impacto nas vidas destas pessoas e realidades bastante concretas e muito distintas em nossa sociedade. Não é preciso ser antropólogo para saber que brancos e negros não vivem da mesma forma em nosso país. E as diferentes formas como vivemos está determinada pelas nossas racialidades. No texto de Risério, este ponto, debate central que congrega todos os Movimentos Negros, é escamoteado.

E, alheio a este debate, o texto de Risério reporta exatamente ao modo como a raça opera no imaginário: como algo que, a partir da mistura biológica, pode ser amalgamado e diluído. Resgata o lugar simbólico atribuído ao “mulato” como aquele que faria desaparecer nossas cisões de raça, de direitos, de poderes, ambos resquícios de (parte significativa das) teorias racialistas do século XIX.

E aí se apresenta outra armadilha na linha discursiva do autor. Ele acaba por usar as categorias discursivas dos racialistas do século XIX – que tanto condena, sem deixar de se valer de categorias e argumentação, por assim dizer, mais modernas: aquelas que entendem as raças e racialidades como construções sociais baseadas nas interpretações acerca dos fenótipos dos sujeitos. Fazendo isso, acaba por usar as categorias da maneira que bem entende – exatamente da mesma maneira que acusa Abdias. É o que vemos em seu texto quando, enquanto Kabenguele é nomeado negro, Abdias é nomeado mulato, e Chico, MESTIÇO BRASILEIRO. E não seria também, Abdias, mestiço brasileiro? Quem pode garantir que Kabenguele não é um mestiço? É a impossibilidade de pensar Kabenguele (assim como Lazaro Ramos, ou Zezé Mota, ou Seu Jorge como mulatos, mestiços – embora todos sejam) a questão de que trata a mestiçagem: trata-se de quem pode ser fisicamente reconhecido como fruto de uma mistura a que TODOS fomos submetidos em nível genético, porém, que só fica aparente em alguns.

Façamos um teste: quem é o mestiço brasileiro? Você consegue pensar em três pessoas famosas que você considera mestiças? Se você pensou em pessoas como Camila Pitanga, Neymar, ou Ronaldo (Fenômeno), bingo! Você acaba de cair na ideologia racial brasileira, essa que Risério também reproduz: o mestiço é sempre aquele que traz marcas corporais ou fenotípicas daqueles que, ainda que “mais clarinhos”, “com traços mais finos”, são socialmente classificados como negros; o branco mestiço (que tem fenótipo branco, apesar de pais ou avós negros) é nomeado como branco. É esse o mecanismo racialista que institui o mulato, o mesmo que faz com que jamais pensemos como mestiços aquele que vemos como “verdadeira” e evidentemente – melhor seria dizer, fisicamente – pretos ou brancos, mas que são igualmente, fruto da miscigenação.

Por isso, Chico é um mestiço brasileiro. Neste caso, o mestiço BRASILEIRO é o branco com medo de assumir sua racialidade, escondendo sua brancura num lugar discursivo mestiço em que os negros mestiços não podem se esconder – porque esses são mesmo pretos ou mulatos, como a escolha lexical no texto de Risério e sua análise metalinguística aponta.

Exatamente nesse ponto que se revela outra contradição, que nos leva à segunda questão a ser levantada. Propomos pensar, aqui, o lugar discursivo que o autor dá ao processo de mestiçagem e ao cartaz em questão.Vale começar sinalizando: há na leitura de Risério um salto interpretativo: ele vai direto da crítica ao DISCURSO sobre a miscigenação à interdição afetiva por parâmetros raciais. Assim, nesse salto, para Risério, os movimentos negros estão negando a mestiçagem real em que a realidade brasileira se encontra e operando um sistema de segregação sexual-racial.

Embora seu texto não seja elaborado a ponto de explicitar isso, Risério subentende que adotar classificações raciais com base na polaridade branco-negro seria uma negação do Brasil real. Assim, essas identidades raciais defendidas ou valorizadas pelos Movimentos Negros (brancos versus negros) – de que ele mesmo se utiliza, por sinal – não existiriam no Brasil, senão como um continuum de cor, além da miscigenação, uma realidade que se oporia a estas identidades polarizadas. Aqui também é possível perguntar: já que elas não existem, e são importações americanas, com que categoria as pessoas brancas discriminam as pessoas negras? Ou seja, o racismo existe no Brasil exatamente porque a raça, como categoria SOCIAL, divide a sociedade entre brancos e negros, ideia de raça que não está somente construída, como está sendo utilizada cotidianamente.

É essencial apontar que o argumento da complexidade de classificação racial e da mestiçagem, aquele famoso bordão “aqui somos todos miscigenados e é impossível saber quem é branco ou preto porque somos todos miscigenados” nunca ajudou a solucionar o problema do racismo na sociedade brasileira e tampouco para a união das vítimas do racismo, pelo contrário. Enaltecer a ambiguidade racial e a mestiçagem sempre foram as estratégias escolhidas, em sua maioria, pelas elites intelectuais e políticas brasileiras desde a década de 1930 e o discurso da mestiçagem foi e continua sendo utilizado como instrumento ideológico que desconstrói a luta por direitos iguais entre negros e brancos. A mestiçagem, apesar de ser um fato da humanidade como um todo, não apaga as desigualdades entre brancos e negros.

Entre os dados mais curiosos do texto de Risério – um recurso de que retóricas hegemônicas se utilizam largamente, diga-se de passagem – é a “retorsão”. Como Spivak descreve, trata-se de quando o opressor se utiliza do discurso do oprimido para argumentar contra ele. A tese central do autor é uma retorsão: o movimento negro é racista, ele diz. Seu argumento de que os nazistas condenaram a mestiçagem, também. Vemos isso ainda quando o autor afirma: “Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem”. Pois esta afirmação é a mais pura verdade. E se refere exatamente a não tomar o fenômeno objetivo da mistura genética como desculpas para escamotear as racialidades brancas, ou afirmar-se negro oportunamente, apenas na ocasião das cotas. Se Risério tivesse qualquer contato, ínfimo que fosse, com o objeto sobre o qual discorre, saberia que é mais disso que se trata a faixa com os dizeres “miscigenação é genocídio” que de qualquer outra coisa.

O recado dado aos brancos, neste sentido, não é “não se casem com pretos”, mas sim “estamos atentos ao apelo à miscigenação, um mecanismo que faz vocês, brancos, se igualarem a nós numa sociedade em que jamais, em nenhuma circunstância, exceto por esse discurso de mestiçagem, estamos igualados”. A placa diz que não cabe mais esse tipo de retórica, de apelo. Ela reitera “não venham dizer que somos todos iguais, porque somos todos mestiços, miscigenados, misturados”, e a reivindicação é bastante pertinente de ser dita mesmo, porque essa igualdade que opera no plano genético nunca operou no plano social.

Diante desses dois pontos, é quase natural chegar ao terceiro: branquitude. Ela, no texto, se expressa pela forma como o autor trata – e nomeia – intelectuais negros. Curiosamente, Kabenguele, antropólogo como o autor, é tratado apenas como um negro, um negro “menos lunático”. Kabenguele, nacional e internacionalmente reconhecido, que ofereceu à academia e ao patrimônio cultural da humanidade uma obra conceitual e epistemologicamente fundamentada sobre a raça e suas questões, sobre o que são as identidades raciais, sobre as diferenças entre o que seja o conceito de raça e etnia, sobre as classificações raciais, sobre os embates entre o lastro biológico, social e fenotípico em que a ideia de raça se ancora – fundamentações que no texto mencionado, não só estão não estão colocadas, como estão indiferenciadas, estão sobrepostas, confusas e confundidas – é apenas um preto. Essa redução, que não é em vão, revela como os racismos e os racistas aparecem à sombra e se revelam até onde pretendem se esconder, atrás de um discurso pelo fim do racismo. É curioso que o autor, em seu afã de combater os sistemas raciais, se utilize deles e de seu mecanismo de maior perversidade – subscrever os negros, exclusivamente, a sua racialidade. Nada mais, além de racismo, poderia justificar o modo como o autor desqualifica, sem nenhuma base argumentativa além de bordões insultuosos, importantes pensadores negros, como a própria luta negra em si.

Veja que Risério questiona o casamento de Abdias, mas em momento algum revela sua própria racialidade e suas escolhas raciais-conjugais. Este questionamento não se trata se indagar sobre ele, pessoalmente, ter um(a) companheiro/a ou não, mas sobre o dado concreto – assim como é concreto existirem um número significativos de uniões inter-raciais – que são os homens brancos aqueles que mais escolhem parceiros da mesma racialidade. Esteja o leitor atento ao texto: seria em vão ele afirmar TEMOS UNIÕES entre homens pretos e mulheres brancas e depois dizer que A UNIÃO entre homem branco e mulher preta? Assim, o autor, ao invés de ouvir o recado sobre o fato de a miscigenação não colar mais, apela a ela e polemiza sobre a vida sexual das gentes.

Mas, se se deseja polemizar ou politizar as uniões inter-raciais, cabe o questionamento: será que discorrer sobre a escolha afetiva do autor também não seria proveitoso ao assunto que ele propõe? (o autor, aqui, apenas tomado como símbolo ou representante de seu grupo, pois é deste lugar também que ele fala – e por isso a pertinência do debate sobre branquitude). Ou: sua proposta de pensar criticamente a si próprio a partir de suas escolhas pessoais serve apenas para “mulatos” como Abdias? Certamente, muitos debates podem ser extraídos sobre a escolha afetiva de homens brancos, especialmente dos que se colocam em defesa política da mestiçagem.

Outro ponto ainda fundamental para debater a branquitude em que o texto se alicerça – este, talvez, o de maior relevância em se tratando de um debate intelectual – é o seletivismo de que parte a crítica à importação de teorias e teóricos estrangeiros. É totalmente legítimo que teóricos não nacionais sejam usados para absolutamente tudo, para qualquer tema em qualquer campo, menos para a raça: assim temos Beauvoir e Butler para falar das questões de gênero, temos Bordieu fundamentando as classes e grupos sociais, temos ainda, para não sair do campo, Levi-Strauss como base deteórica (afirmativa ou denegatória) para quase tudo se produz na Antropologia moderna brasileira. Mas Abdias é colonizado e confuso. Assim, o argumento de importação americana é usado pelos mesmos que usam MARX, FOUCAULT, DERRIDA WEBER, GEERTZ. Ou não é o próprio autor que fala em stalinismo? Parece haver uma alfândega na academia, cujos agentes de controle são brancos, garantindo que a importação de teorias seja legítima apenas quando usada em favor de suas racialidades, da manutenção de seus privilégios raciais-intelectuais.

Concluindo, não deve passar despercebido um quarto e último ponto. A segregação não começa na escravidão, não começa no genocídio, não começa nos dois por cento de pretos vivendo em Pinheiros – a subprefeitura de maior IDH do Munícipio de São Paulo – contra 65% de pretos vivendo em Parelheiros (aquele bairro que, de tão longe, muitos leitores nem ouviram falar; bairro que as pessoas nunca frequentaram, nem conhecem ninguém de lá, porque lá não tem transporte, nem aparelhos de cultura, lazer ou esporte, esse bairro que tem apenas gente preta morando). A segregação não começa no risco três vezes maior de jovens negros morrerem quando comparados aos brancos. A segregação começa quando os negros, reunidos, pensam em estratégias de superação dessa condição – estratégias que não envolvam as pessoas brancas, com meios e métodos que caminhem de encontro ou à revelia das considerações dos brancos. É um incômodo, alarde e polemização que não vemos quando pretos são assassinados. A isso, os pensadores anti-racialistas seguem bastante indiferentes.

Eis porque, na nossa perspectiva, o autor não somente escreve um texto incoerente, infundado do ponto de vista teórico, confuso do ponto de vista epistemológico, como também desonesto. Só mesmo o medo branco, bem descrito por Célia de Azevedo, pode justificar que a organização negra, a partir de perspectiva própria, do autocentramento e da autogovernança – que não necessariamente significam afrocentramento, mas que poderiam e podem sim e até incluir como táticas de restrição a uniões afetivo-sexuais entre os negros, como a maioria dos homens brancos já faz em seus grupos – seja tão “ferozmente atacada”. É sobre os afetos levantados pela (e contra) insurreição negra que se trata o texto, sobre os ressentimentos de uma branquitude ameaçada. Se, como Maria Aparecida Bento ensina, esse ressentimento vem de uma consciência culposa, não metabolizada, a maior contradição é que o autor, no fundo, bem sabe que miscigenação, tantas vezes, também é genocídio – e sua defesa deste processo só confirma isso.

Autoras:

Lia Vainer Schucman (Doutora em psicologia social pela USP, discute Relações Racias)
Mônica Mendes Gonçalves (Psicóloga e doutoranda em Saúde Pública USP discute Relações Racias)

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