Por: Pedro Borges e Petrônio Domingues
Em 1978, militantes negros brasileiros, em particular da cidade de São Paulo, se indignaram com situações de racismo, sobretudo vindas do poder estatal. Naquele contexto, duas pessoas negras, Robson da Luz e Nilton Lourenço, foram mortas por policiais. As vidas ceifadas, que se somaram ao racismo sofrido por atletas negros no Clube Tietê, foram o estopim para a criação do Movimento Negro Unificado (MNU).
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A organização nasceu com um caráter contestatório, inaugurando o chamado movimento negro contemporâneo, e assumiu um papel fundamental na denúncia de casos de violência policial. Não havia, para aquele grupo, outra possibilidade que não a queixa acerca da ação truculenta do Estado, assim como não existia qualquer sinal de abertura de discussão com o mercado e grandes corporações. Enfrentar a ação do Estado era uma maneira de mobilizar os segmentos subalternos e, junto das organizações políticas de esquerda, insurgir-se contra o sistema, inspirando-se nos princípios marxistas.
O MNU também entendia essa estratégia de denunciar a violência policial como um caminho tático para romper com o chamado mito da democracia racial. Era preciso primeiro que a sociedade brasileira reconhecesse a existência do racismo para conseguir eliminá-lo.
A estratégia pareceu vitoriosa. O mito da democracia racial não existe no Brasil como no passado. Há uma maior discussão na sociedade brasileira sobre o racismo e a violência policial é um dos principais exemplos de seletividade racial. Casos de discriminação racial costumam repercutir via imprensa na sociedade como não ocorria há dez anos.
Entretanto, não foram apenas os cidadãos que se despertaram para a existência do racismo. O mercado entendeu ser necessário dialogar com essa agenda como forma de vender mais. Em partes, o mercado conseguiu construir uma agenda de promoção da igualdade racial ou mesmo de diversidade como um produto.
O mercado, contudo, segue sua lógica, a partir do interesse de defesa da propriedade privada. O país registra, inclusive, um avanço significativo sobre a segurança privada, a ponto de existir no Brasil mais vigilantes e seguranças do que policiais. O controle da violência do Estado foi compartilhado com o capital.
É nesse cenário que em 19 de novembro de 2020 João Alberto Freitas foi espancado até a morte por seguranças da Vector, empresa de segurança privada contratada pelo Carrefour para fazer a proteção patrimonial do recinto. Uma morte, que infelizmente poderia apenas entrar para a estatística e parecer como as muitas outras produzidas no Brasil, ganhou um caráter particular.
A resposta ao assassinato de Beto, como era chamado, foi bastante incisiva por parte do movimento negro. Em cidades como São Paulo e Porto Alegre, acostumadas a organizar marchas de Consciência Negra no dia 20 de novembro, os manifestantes agiram com contundência e atacaram, de maneira física, unidades do Carrefour. O sentimento de revolta parecia estar inspirado na música Capítulo 4, Versículo 3, dos Racionais MC’s, especialmente no trecho “A fúria negra ressuscita outra vez”.
O mercado, todavia, movimentou-se também. Dias depois do assassinato, em 25 de novembro, o Carrefour construiu um Comitê Externo Independente, com personalidades representativas do debate racial no Brasil. Depois da resposta de marketing, necessária para acalmar os ânimos da sociedade civil, a rede de supermercados firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de R$ 115 milhões, o maior da história para crimes raciais, e passou a ser uma patrocinadora frequente em eventos e projetos de combate ao racismo.
O resultado foi um impacto sobre as concepções antirracistas dentro do movimento negro. A Coalizão Negra por Direitos passou a criticar os acordos feitos com o Carrefour e demandou ações mais radicais, como judicialização da empresa, retirada do Carrefour do local onde Beto foi assassinado, enquanto outras pessoas, inclusive as participantes do Comitê Externo Independente, acreditavam na necessidade de fazer a empresa sofrer com ônus financeiros diante do que ocorreu. A divergência gerou até um racha entre as organizações do movimento negro, com um afastamento da Coalizão Negra por Direitos com demais instituições do campo.
O caso Carrefour, ou João Alberto Freitas, abriu um novo questionamento histórico para o movimento negro brasileiro. Qual o caminho para enfrentar o racismo? Diante da violência, a geração do MNU de 1978 acreditou em um projeto marxista e revolucionário, sem qualquer possibilidade de diálogo com o mercado e com uma visão de transformação radical do Estado. Era uma geração influenciada pelo período histórico, diante de processos de independência no continente africano, Panteras Negras nos EUA, lutas armadas em países da América Latina.
As respostas atuais foram outras, à luz de um contexto histórico diferente, de outro estágio do capitalismo. Paira para muitos a dimensão de fim da história, de impossibilidade das utopias, de uma vitória ad eternum do capital, mesmo para grupos historicamente marginalizados e que já sonharam com outras saídas para o problema.
O fato posto é de que o mercado passará a ser cada vez mais presente nas chamadas relações raciais no Brasil. Cabe ao movimento e a à sociedade debater se há o desejo de se relacionar com o mercado, de que maneira, e qual o projeto de nação arquitetado pelas organizações antirracistas no país. Mais do que isso, fica a questão do que é ser antirracista.
Pedro Borges é mestrando em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e editor-chefe da Alma Preta. Petrônio Domingues é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).