Um levantamento conduzido pelo JusRacial revela um aumento expressivo no número de processos judiciais relacionados a racismo e intolerância religiosa no Brasil. Só em 2023, a iniciativa contabilizou aproximadamente 176 mil processos em andamento em todas as instâncias da justiça, inclusive os tribunais superiores.
Em comparação com 2009, quando foram identificados 1 mil processos, os dados de 2023 revelam um crescimento de 17.000% no número de processos de intolerância religiosa e racismo no país.
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O primeiro levantamento foi realizado pelo JusRacial em 1997, quando foram encontrados apenas nove processos de racismo e intolerância religiosa no período entre 1951 e 1996, o equivalente a cerca de dois registros por década.
No ano passado, a pesquisa foi realizada com base no repositório do Jusbrasil, com uma busca direta nos sites dos tribunais para contabilizar processos julgados e em tramitação.
O aumento significativo pode ser atribuído, segundo o advogado e fundador do JusRacial, Hédio Silva Jr., às transformações sociais lideradas pelo Movimento Negro brasileiro nas últimas décadas.
“O ingresso da questão racial na agenda pública do país fez com que as pessoas fossem se sentindo mais encorajadas a buscar o sistema de justiça para reclamar violações de direitos. A administração da justiça está preparada para responder adequadamente a isso? A gente vai saber na medida que a gente fizer os recortes qualitativos”, explica.
Além disso, desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a classificar a homofobia e a transfobia como modalidades de crime de racismo.
Na ocasião, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) defendeu que ao igualar ofensas individuais ao crime de injúria racial, os atos de discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+ poderiam ser punidos de forma mais seevera, em relação às outras penas previstas em crimes contra a honra.
O JusRacial destaca que os 176 mil processos representam uma pequena fração dos casos de violação de direitos que afetam a população negra e seguidores das religiões afro-brasileiras, que são os principais alvos do discurso de ódio e da intolerância religiosa.
No entanto, a pesquisa aponta para uma confiança crescente das vítimas no Poder Judiciário, refletida na expansão exponencial da judicialização desses casos.
Apesar do resultado, Hédio Silva também chama atenção para a alta taxa de subnotificação, seja pela aura de impunidade em torno desse tipo de violência ou pela dificuldade em transformar as denúncias em condenações.
“A gente já vai confirmando nesse primeiro inventário quantitativo o problema de que um dos gargalos é que os boletins não se transformam em inquérito, os inquéritos não dão base às denúncias e as denúncias não resultam em ação e condenação. Há um gargalo que precisa ser enfrentado”, argumenta.
Dados por Tribunais
No âmbito dos Tribunais de Justiça estaduais, destacam-se, em processos relativos a crimes de raça, os estados de Minas Gerais (7.917), Rio Grande do Sul (7.074) e Santa Catarina (5.750). Em relação a processos relativos a crimes religiosos, os estados com maior número de registros são São Paulo (6.479), Minas Gerais (6.318) e Santa Catarina (3.223).
Dos 176 mil casos analisados, 117.823 estão relacionados a processos judiciais sobre crimes de raça nos seguintes tribunais: Supremo Tribunal Federal (1.096), Supremo Tribunal de Justiça (2.965), Tribunal Superior do Trabalho (9.144), Tribunal Regional do Federal (15.228), Tribunal Regional do Trabalho (44.352) e Tribunal de Justiça (45.038).
Quanto aos dados específicos sobre crimes religiosos, os números por tribunal são os seguintes: STF (811), STJ (1.327), TST (2.003), TRF (4.816), TRT (19.700), TJ (29.575), totalizando 58.232 processos.
Discrepância
Ao observar os processos de racismo e intolerância religiosa nos Tribunais de Justiça dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal, o advogado Hédio Silva Jr. aponta também uma discrepância no resultado dos dados obtidos pelo levantamento.
Por exemplo, em 2023, o Tribunal de Justiça do Paraná registrou 2.420 processos envolvendo casos relacionados à religião. Já os processos envolvendo raça totalizam 4.081.
Já na Bahia, estado com maior proporção de pessoas pretas no Brasil, segundo o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os números de processos por intolerância religiosa totalizaram 401 enquanto os casos por racismo somaram 1.082 no ano passado.
De acordo com o advogado Hédio Silva Jr., os dados ainda vão passar por uma análise qualitativa para avaliar as questões sociais para além dos números.
“Há um leque amplo de cortes que a gente pode levantar. De qualquer maneira, os números falam por si e são, à princípio, incompatíveis com a realidade. Não é só uma questão processual, é, certamente, uma questão social que a gente vai ter que trazer também outros campos para nos ajudar a decifrar esses números”, explica.
Para o cruzamento dos dados, Hédio Silva Jr. explica que será necessária a criação de softwares para trazer recortes específicos dos processos, como o perfil do infrator, perfil da vítima, idade, entre outros. A previsão é que o JusRacial divulgue, a partir de maio deste ano, um boletim mensal.
“Espero que a gente consiga, em um prazo de 60 a 90 dias, ter desenvolvido recursos tecnológicos para fazer alguns cruzamentos e a partir de maio possa divulgar algum boletim mensal e um anuário de jurimetria”, prevê.
‘É preciso vigor nas leis’
No dia 15 de janeiro de 2024, uma estudante foi alvo de intolerância religiosa dentro do Metrô de Salvador (BA). Na ocasião, ela usava adereços relacionados ao candomblé quando um homem passou a gritar e proferir mensagens de ódio contra ela.
A jovem, que não quis se identificar por medo, contou ao g1 Bahia que o homem chamou as pessoas do candomblé de “endemoniadas” e que deveriam morrer. Em nota, a CCR Metrô, empresa que administra o metrô de Salvador, disse que a segurança não foi acionada e que repudia qualquer prática de intolerância e desrespeito.
A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi) também repudiou o caso e informou que acionou a Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa da pasta.
“Assim que tomou conhecimento do ocorrido, a Sepromi acionou a Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa e entrou em contato com o advogado da vítima, dando todo o suporte por meio do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela”, cita um trecho da nota.
Vinculado à Sepromi, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela registrou no ano passado 83 casos de racismo e 33 casos de intolerância religiosa na Bahia. Além disso, sete casos de injúria racial também foram contabilizados pela pasta.
Os dados são coletados através dos atendimentos realizados pelo Centro, que encaminha e acompanha toda e qualquer denúncia de racismo e intolerância religiosa e oferece às vítimas serviços jurídicos, de apoio psicológico e social.
Em janeiro deste ano, o governo Lula aumentou a pena para quem praticar intolerância religiosa no Brasil. Com isso, a Lei 14.532, que equipara os crimes de injúria racial e racismo, prevê pena de 2 a 5 anos e multa para quem “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Anteriormente, a pena era de 1 a 3 anos de reclusão.
Combate à intolerância religiosa
Celebrado em 21 de janeiro, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído em 2007 através da Lei 11.635, sancionada como uma forma de reconhecimento à trajetória da yalorixá baiana Mãe Gilda de Ogum, que faleceu em janeiro de 2000 em decorrência de problemas de saúde provocados pela intolerância religiosa.
A data é vista como um momento de reflexão para os povos de axé e apesar dos avanços sobre a temática no país, lideranças religiosas apontam que ainda é preciso mais severidade na aplicação das leis.
Sacerdote do Candomblé e Obá de Xangô no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, Adriano Azevedo considera que ainda falta efetividade nas leis que garantam a proteção dos povos de axé.
“Eu acredito que as leis têm que atuar para mostrar que o Brasil é um país constituído por leis, por pessoas que formaram esse país, sobretudo pessoas pretas, e que essas pessoas merecem respeito. Essa lei tem que ser cumprida com a mesma veemência que o racista nos trata”, pontua.
Sobrinho da yalorixá baiana Mãe Stella de Oxóssi, considerada uma das líderes religiosas de candomblé mais influentes do Brasil, Azevedo também destaca que o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa é um momento de refletir sobre o respeito.
“É clichê, mas é a palavra que tem que estar sendo batida sempre para ver se as pessoas conseguem compreender o real sentido desta palavra. Não gosta de mim? Não tem problema, não estou pedindo para gostar de mim. Não gosta dos meus orixás? Também não tem problema. Ninguém é obrigado a nada, mas respeitar é uma obrigação”, afirma.
Arrastão da Liberdade
A yalorixá Jaciara Ribeiro, filha e sucessora de Mãe Gilda no Ylê Axé Abassá de Ogum, localizado no bairro de Itapuã, ma capital baiana, observa que o aumento do racismo religioso no Brasil tem feito com que os adeptos das religiões de matriz africana alterem até a estrutura dos terreiros para evitar ataques.
Com objetivo de reunir movimentos, diversos seguimentos religiosos e a sociedade soteropolitana no combate à intolerância religiosa, o terreiro Ylê Axé Abassá de Ogum resolveu criar o “I Arrastão da Liberdade”.
O evento conta com um café da manhã servido no terreiro, em Itapuã. Logo após, há um cortejo em direção ao busto de Mãe Gilda na Lagoa do Abaeté.
Para a ialorixá Jaciara Ribeiro, o Arrastão representa um ato revolucionário. “É dizer que a gente de terreiro não está com medo, que mesmo gradeando as nossas casas, botando câmeras, a gente acredita que ainda pode ter uma transformação de caminhar com a ética, com respeito, trazendo alegria e música”, considera.
“A liberdade de culto, esse diálogo inter-religioso, é muito importante para a gente dialogar com todas as adversidades na sua integridade e respeitando o outro. O respeito, para mim, é a palavra de ordem”, finaliza a yalorixá.