Por: Taynara Borges, do ISA (Instituto Socioambiental)
“Esta, talvez, seja a sentença mais complexa em termos jurídicos e humanos que já tive e terei, em muitos anos – a incumbência de proferir.” É assim que a juíza Hallana Duarte Miranda, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dá abertura às Considerações Iniciais da Fundamentação de uma decisão judicial inédita e histórica no Brasil.
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No dia 29 de dezembro de 2023, a juíza determinou ao Estado de São Paulo:
– a invalidade da sobreposição do Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira (Petar) ao território do Quilombo Bombas, situado na região do Vale do Ribeira, a sudoeste do estado, no município de Iporanga;
– a devolução ao quilombo do Sistema Areias, uma área histórica e sagrada para os quilombolas, que fora retirada de seu território para incorporar ao perímetro do parque;
– a conclusão definitiva da titulação do quilombo em prazo razoável, sob pena de multa, promovendo a regularização fundiária necessária (os estudos técnicos para titulação foram concluídos no ano de 2002 e segue até hoje sem ações da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – Itesp);
– a apresentação do cronograma de execução e prazo para início da obra da estrada de acesso ao quilombo, que já fora determinada em decisão liminar anterior, proferida em 2015.
As determinações partem de ação proposta pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo contra Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo (Fundação Florestal) e o Estado de São Paulo.
Entretanto, o reconhecimento de direitos das comunidades tradicionais não é assim tão óbvia no Brasil. Basta pensar que as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira já habitavam a região havia mais de 300 anos quando o Estado simplesmente ignorou a presença humana na floresta e instituiu uma Unidade de Conservação sobre seus territórios, cerceando aquelas famílias de direitos básicos, como o de ir e vir, já que dificulta a construção de novas estradas, e sufocando seus modos de vida, proibindo até mesmo o cultivo de alimentos para o próprio consumo por meio de suas roças tradicionais.
As injustiças são inúmeras. Um grande reflexo do racismo estrutural, tanto em sua manifestação institucional quanto ambiental, nas palavras do advogado popular e assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Fernando Prioste.
“Infelizmente, a abolição formal e inconclusa da escravidão em 1888 não previu nenhum direito aos quilombolas, e o Estado de São Paulo ainda age como se estivéssemos no século XIX, pois não atua para viabilizar direitos que foram garantidos cem anos após a Lei Áurea, com a Constituição de 1988. Por esta razão, esta decisão judicial é uma medida de reparação histórica.”
De acordo com Prioste, a sentença busca fazer a justiça que, ao longo dos anos, o governo de São Paulo nunca fez por falta de vontade. “A decisão é inédita, justamente, porque abre um novo caminho para resolução, por meio do Judiciário, dos inúmeros casos de sobreposição de Unidades de Conservação a territórios tradicionais que existem hoje no país. Um precedente como este é de extrema importância”, explica.
E além de negar direitos, exaurindo tentativas de conversas e negociações com as comunidades, deixando a ação judicial como último recurso para a busca pela efetivação da cidadania por parte dos quilombolas, o Estado ainda se utiliza de manobras para prolongar os trâmites processuais, distanciando estes cidadãos brasileiros do alcance do básico, do elementar, do constitucional.
Nas palavras da juíza contidas na decisão: “Mais uma vez ressalto: a remessa desmedida de processos, sejam administrativos ou judiciais, de um ente ao outro, somente atrasa a solução do caso e no transitar de 20 (vinte) anos de discussão e mais de 9 (nove) anos de trâmite judicial, uma comunidade espera do Estado a pronta postura de, ainda que para negar o direito, decidir com assertividade”. Eis a materialização do racismo institucional contra o qual lutam os quilombolas e que é objeto desta ação.
Conquista quilombola
A comunidade está radiante com a decisão que ela e seus ancestrais aguardam há centenas de anos. Coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, Edmilson Furquim de Andrade enumera tragédias e dificuldades que ele vivenciou com sua própria família ou testemunhou com vizinhos e amigos.
São histórias inacreditáveis e inaceitáveis para o Estado mais rico da União: seu neto, aos dois anos de idade, sofreu uma crise respiratória e para chegar ao hospital mais próximo foi necessário colocá-lo no lombo de um burro e enfrentar seis quilômetros de uma trilha que atravessa cursos d’água, afunda lama até os joelhos, atola até mesmo animais, e ainda oferece o perigo de animais peçonhentos. Já o filho adolescente, que amanheceu convulsionando, teve de ser carregado com ajuda de amigos de forma improvisada. Felizmente, ambos conseguiram atendimento médico a tempo.
Mas o mesmo não aconteceu com idosos e pessoas com dificuldade de mobilidade que não tiveram forças ou recursos para percorrer o caminho até a rodovia para buscar socorro médico. Alguns nem se atreveram a sair de casa; outros faleceram ali mesmo, na travessia, carregados em redes por amigos e familiares. Também não são inéditos os casos de nascimentos de bebês na trilha.
Isso sem contar os acidentes que acometem visitantes ou trabalhadores que não são nativos do quilombo. Como é o caso do professor Pedro, relatado em reportagem do ISA. Ou de enfermeiros, que se arriscaram na tentativa de levar socorro aos moradores do local.
Leia série do ISA sobre a vida no Quilombo Bombas:
– ‘O Caminho pro Quilombo’: em SP, quilombolas lutam por estrada que garanta acesso a direitos básicos
– Ausência de estrada faz quilombolas de Bombas (SP) sofrerem com perda de alimentos
– Quilombolas de Bombas (SP) precisam ser retirados no lombo de burros para atendimento emergencial
– Comunidade de Bombas (SP) defende direito à educação quilombola
“Essa decisão da Justiça foi muito importante para a comunidade depois de tantos anos de luta e sofrimento. Bombas é uma comunidade que luta desde seu surgimento. Agora, com essa sentença, podemos ter alguma esperança de vitória. Com a estrada, a comunidade vai poder se desenvolver em saúde, educação… vamos poder vender os produtos que produzimos na roça. Até agora, até mesmo o direito de participar das discussões sobre nossas comunidades foi tirado de nós. Como que vai sem estrada?! Ninguém vive o que nós vivemos. Poucos são os que sabem o que nós passamos”, desabafa Edmilson Furquim.
Sobre o método do Estado de apagamento, ferramenta do racismo institucional, a juíza Hallana Duarte Miranda, em sua decisão, recorda que “as populações tradicionais foram consideradas pelo Estado (especialmente dentro das linhas do sistema Colonial que buscava implementar uma só visão de formas de viver), na maior parte do tempo, ‘incapazes’ de decidir seu próprio destino, devendo ser tuteladas e, com o tempo, integradas ao modo ‘civilizado’ de vida. Ou seja, a pretensão de integração das comunidades originárias, portanto, seguia na lógica de que com o tempo haveria absorção completa, com extinção de seus costumes, considerados ‘atrasados’ e até inferiores, como se sua existência fosse limitada (tivesse fim) pelo dever de se tornarem ‘mais desenvolvidos’. A convenção 169 da OIT e a Constituição, que prescreve um capítulo inteiro sobre os Indígenas (art. 231 e ss da CRFB) e que pontua um artigo a respeito dos Quilombolas, traçam novo panorama: é impositivo que o Estado proteja as comunidades tradicionais.”
Precedente Judicial
Foi com a ideia equivocada de mata “intocada” que a Unidade de Conservação de Proteção Integral se sobrepôs ao território da Comunidade Bombas no ano de 1958 e foi implementada a partir da década de 1980, quando teve seu perímetro delimitado pelo Governo do Estado de São Paulo.
Na avaliação de Edmilson Furquim, a implantação do parque naquele local foi, além de uma arbitrariedade, um reconhecimento de que foram eles, os quilombolas, que conservaram o maior remanescente de Mata Atlântica do país. E sentencia: “se não existisse a comunidade, não sabemos nem se existiria o parque”.
Vercilene Dias, coordenadora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), reitera como esta decisão reforça o argumento político que o movimento das comunidades tradicionais já vem defendendo: “dar proteção àqueles que protegem”. De acordo com ela, esta ação abre um importante debate no Poder Judiciário sobre as outras situações semelhantes que existem no Brasil.
“A sentença é um precedente importantíssimo no campo jurídico sobre algo que a gente já vem tratando há muito tempo: dar proteção a estas comunidades, proteger quem realmente protege. Porque o Estado cria parques e reservas ambientais em cima de territórios tradicionais, de comunidades quilombolas que sempre protegeram aquele espaço, que estão ali há mais de cinco gerações. E depois, muitas vezes, dão estes parques para a iniciativa privada, o que inviabiliza o modo de vida daqueles povos que estão ali, que fizeram o uso sustentável daquele território, que o protegeram, em vez de dar garantias para que estas comunidades continuem protegendo e, para além disso, que tenham autonomia de gestão destes territórios.”
Sobre a desafetação do parque, o coordenador do Programa Vale do Ribeira do ISA, Frederico Viegas, reforça: “A gente não está perdendo uma Unidade de Conservação, esta já é igualada a Unidade de Conservação já que os territórios quilombolas são reconhecidos enquanto Área Protegida e Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade Brasileira, conforme o Decreto 5.758/2006”.
O presidente do Conselho Diretor do ISA, Márcio Santilli, assevera que “a exclusão do Quilombo Bombas da área do Petar é uma questão de justiça e supera um vício do ato de criação do parque”. Ele acrescenta a importância estratégica de que a gestão ambiental da área seja feita de forma articulada para fortalecer sua conservação, antecipando a já anunciada iniciativa da comunidade de elaboração de um Plano de Gestão Ambiental e Territorial sob estes termos.
Titulação tardia
Ao determinar a conclusão definitiva da titulação do Quilombo Bombas sob pena de multa, a sentença busca garantir o direito à autonomia das comunidades, segundo avaliação do Defensor Público do Estado de São Paulo, Andrew Toshio Hayama, além de caminhar no sentido de reconhecer que as comunidades tradicionais cumprem uma importante função socioambiental.
“São territórios que são ambientalmente protegidos. Em razão disso, essa sobreposição, essa incidência e esse controle sobre estes territórios era algo, do ponto de vista da Defensoria Pública, ilegal, inconvencional e inconstitucional”, assevera.
Rafaela Miranda, assessora jurídica da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), jovem liderança quilombola, classifica como “excelente” a decisão a partir do ponto em que o direito ao território tradicional se conecta ao que já fora declarado pelo Supremo Tribunal Federal como um direito fundamental de eficácia plena e aplicação imediata, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239.
“O direito ao território cumpre diversas outras funções como espaço de moradia, de sobrevivência, de subsistência, de exercício da cultura e da identidade, além da autodeterminação de um povo e da perpetuação dessa comunidade. Em termo jurídico, o território quilombola é compreendido como aquele necessário para a reprodução cultural, social e econômica do povo quilombola”, afirma Miranda.
A advogada ainda enfatiza que há urgência na titulação dos territórios quilombolas, não só no Vale do Ribeira, mas em todo o país, o que classifica como “fundamental” para a existência das comunidades, a proteção dos territórios e a conservação da biodiversidade.
“É por isso que há centenas de anos nós lutamos. Porque sem o território nós continuamos num estado de alerta e insegurança constantes, por razões que vão desde os conflitos fundiários, as invasões, até o etnocídio, a dizimação de um povo.”
Embora haja uma legislação explícita no arcabouço jurídico brasileiro, a regularização fundiária quilombola é marcada por uma morosidade inexplicável no país. A demora no cumprimento do direito constitucional à titulação quilombola é tamanha que, se levado em conta o histórico de inércia nos processos de titulação, chegamos à surpreendente e vergonhosa perspectiva de que, para titular a metade dos quilombos existentes hoje no Brasil, somente aqueles reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, levaríamos mais de 1000 anos, número que beira o surreal.
“É por isso que a decisão demonstra pra gente um caminho próspero a ser seguido, no cumprimento do dever legal de titulação dos territórios e proteção das comunidades. Devemos planejar e executar esta titulação num prazo razoável, zelando pela garantia integral deste direito. E esta é uma medida que traz algo fundamental de reparação histórica. É sobre o direito de viver dignamente, algo basilar para o Estado com os maiores IDH e PIB do país”, reitera Rafaela Miranda.
Desafios
O caminho a ser percorrido a partir de agora ainda é longo. A decisão da juíza Hallana Duarte Miranda não é definitiva, vez que o Estado de São Paulo ainda pode recorrer.
Baixe a decisão judicial na íntegra
Embora tenha havido uma decisão liminar no ano de 2015 determinando a construção da estrada de acesso ao quilombo e que até hoje ela não saiu do papel, os desafios a serem enfrentados pela comunidade do Quilombo Bombas são muitos.
Em audiência pública realizada na última quinta-feira (18/1), o Estado informou que fora dado início aos trâmites necessários para a execução da obra. No entanto, o projeto apresentado prevê um pavimento de apenas três metros de largura e coberto por cascalhos. Ou seja, ônibus e caminhões seguirão sem acesso ao quilombo e basta uma chuva para que tudo retroceda.
Enquanto lutam pela construção da estrada, os quilombolas precisam se arriscar em uma trilha íngreme, sinuosa e esburacada, com um trecho de atoleiro que persiste mesmo em épocas secas. Veja a seguir os registros feitos em julho de 2023.