O punho cerrado, símbolo resistência negra, foi mais uma vez alvo de ataques, como ocorreu recentemente no carnaval de São Paulo, quando o presidente da X9 Paulistana, Mestre Adamastor o deslegitimou. Classificado como “p… nenhuma” pelo sambista, o gesto, ao longo da história, muitas vezes foi motivo de punições, polêmicas e ataques. Mas por que será que ele ainda é alvo de tanto incômodo?
Para o sociólogo e professor universitário Tadeu Matheus, primeiramente é necessário compreender seu significado e valor para os tantos movimentos negros espalhados pelo mundo.
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“O punho erguido, também conhecido como o punho cerrado, é um símbolo de solidariedade e apoio às causas relacionadas a conflitos sociais, como racismo, xenofobia, sexismo, entre outras mazelas que fragilizam as relações humanas. Também é utilizado como uma saudação para expressar unidade, força, desafio ou orgulho de pertencer a um grupo social politicamente minorizado”, enfatiza.
A atitude de Mestre Adamastor gerou revolta do movimento negro, além de ser motivo para um abaixo assinado reivindicando retratação imediata do autor da fala racista e um posicionamento da Liga Independente das Escolas de Samba de SP. Ambos se posicionaram, mas não foi o suficiente para acalmar os ânimos e deixar o ocorrido para trás.
“Sabe o que é isso? Racismo! O privilégio branco dominando a gestão do carnaval das escolas de samba e se sentindo tão à vontade no seu lugar de poder para rir dos negros que resistiram e foram expulsos desse lugar. Podemos ser desrespeitados e humilhados diante da nossa história?”, questiona a jornalista e pesquisadora de cultura afro-brasileira Claudia Alexandre.
De onde vem o gesto?
Tadeu contextualiza que o gesto de punho cerrado remonta a antiga Assíria como um símbolo de resistência em face da violência, segundo ele.
“O gesto com braço erguido e punho cerrado era utilizado por Nelson Mandela, um dos principais nomes na luta mundial contra o racismo. Ele lutou contra o apartheid e a segregação racial na África do Sul. Mandela passou 27 anos na cadeia e, após sua saída, continuou na luta contra o preconceito, se tornando presidente da África do Sul em 1994”, destaca.
Além da referência ao ativista Nelson Mandela, o gesto de punho cerrado remete também ao movimento negro estadunidense – o Black Power – com o simbólico grupo antirracista chamado de “Panteras Negras”.
“A formação desses espaços de sociabilidade e resistência negra foram necessários, pois a branquitude do poder político e econômico criou diversas formas de impedir que a população preta conseguisse ascender socialmente no pós-abolição, além de criar estratégias epistemicidas para acabar com a presença física, cultural e simbólica dos descendentes dos povos das diásporas africanas”, comenta o sociólogo Tadeu Matheus.
Resistência no Brasil
O movimento negro no Brasil é um dos mais antigos movimentos políticos do país. Os primeiros registros de grupos similares datam o século XVII, quando as irmandades espalhadas pelos estados representavam as primeiras organizações políticas constituídas por negros no período colonial.
Com o passar dos anos, as expressões instrumentalizadas tomaram formatos e dinâmicas diferentes, mantendo pautas como o combate ao racismo, a defesa dos direitos da população negra, a preservação de gestos, e a legitimação de identidades e saberes culturais, como o punho cerrado. É o que diz o artigo “O punho cerrado do movimento negro: antecedentes e remanescentes”, de Laura Kasemiro.
Por essa razão, o sociólogo Tadeu enfatiza a importância de não deixar passar nenhuma atitude preconceituosa, que busque deslegitimar a luta negra, em especial, num contexto fenotipicamente preto, como o carnaval. O desrespeito, segundo ele, é ainda maior por partir de uma agremiação que homenageia uma figura negra e feminina de tanto prestígio: Dona Ivone Lara, a primeira mulher a assinar a autoria de um samba-enredo e fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano.
“Homenagear uma mulher preta que é uma referência de resistência negra e desconsiderar todo seu legado de enfrentamento ao racismo é, no mínimo, uma clara demonstração de como algumas escolas de samba brancas se apropriam de temas ligados à negritude apenas por conveniência, pois é sabido e notório que as narrativas cotidianas nesses espaços não se alinham com a luta diária de resistência negra no Brasil, bem como não há nenhum compromisso com a luta antirracista”, enfatiza Tadeu.
Preço
O gesto de punho cerrado já havia causado outros problemas. Em 1968, por exemplo, os atletas Tommie Smith e John Carlos fizeram o gesto durante a edição dos Jogos Olímpicos, na Cidade do México. As imagens desse protesto silencioso correram o mundo e viraram um escândalo na terra dos dois atletas.
Naquele 16 de outubro, Smith ganhou a medalha de ouro nos 200 metros e quebrou o recorde mundial com o tempo de 19,83 segundos – sendo o primeiro atleta a bater a marca dos 20 segundos. Carlos conquistou a medalha de bronze. Mas os momentos de glória foram poucos, pois o auge da carreira de ambos foi também o começo do fim.
Com seu gesto contra a discriminação e o preconceito racial nos Estados Unidos, eles haviam quebrado uma regra fundamental do movimento olímpico: a de que esporte e política – supostamente – não se misturam. Smith, então com 24 anos, e Carlos, um ano mais novo, pagariam pelo resto de suas vidas pelo punho cerrado erguido no pódio.
“Não achávamos mais emprego. Não entrava mais dinheiro. Muitas pessoas que eu considerava meus amigos se afastaram de mim. Nossos filhos sofriam bullying na escola. Minha primeira mulher não suportou tudo aquilo e se matou”, recordou Carlos, em entrevista à DW, em 2018.
A encenação, no entanto, foi detalhadamente pensada: os punhos erguidos eram o símbolo do movimento Black Power. As meias pretas simbolizavam a pobreza da população negra. Além disso, Smith e Carlos usavam um broche branco no peito, símbolo do movimento Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos (OPHR, em inglês).
Sob pressão do Comitê Olímpico Internacional (COI), os dois foram excluídos da equipe americana, e Smith perdeu todas as verbas de patrocínio. De uma hora para a outra eles se tornaram párias e receberam até mesmo ameaças de morte.
Pantera Negra
Não é só o punho cerrado que representa a resistência negra e entra no imaginário popular como gesto grupal de força e unidade. O filme “Pantera Negra”, por exemplo, possui um símbolo próprio de propósito similar.
Mesmo se tratando de uma obra de ficção, o estudante de artes visuais, quadrinista e tatuador amador Anderson Amaro ressalta que o cumprimento “Wakanda para sempre” têm mostrado a importância dos signos e símbolos do movimento preto pelo mundo.
“São gestos negros os que mais representam algo, seja na vida real ou na ficção. O Wakanda para sempre corre o mundo hoje só porque o punho cerrado engatinhou e caminhou lá atrás. Por mais que o gesto do Pantera Negra não seja tão popular, pudemos ver o quanto ele é forte nos diversos tapetes vermelhos das premiações de cinema”, relata.
Anderson ainda destaca que é necessário brigar para que gestos e símbolos de resistência negra não se percam ou sejam deslegitimados pelo racismo. “Tudo que é nosso eles [brancos] querem desmerecer. Wakanda é dos pretos. Punho cerrado é a força do negro. Que nós não deixemos mais essas coisas serem sequestradas”, avalia.
Fim da permissividade
“Não há mais espaço para práticas racistas e desrespeitosas contra a história e presença física, cultural e simbólica da população preta que edificou este país. Cometer atos de racismo e desrespeito contra essa população e depois mandar um pedido irônico de ‘desculpas’ só reforça o quanto desrespeitoso está sendo com as pautas da luta antirracista”, afirma o sociólogo Tadeu Matheus.
Para a jornalista Cláudia Alexandre, no carnaval especificamente, a pauta negra tem sido deixada de lado, e é por isso que dirigentes que se beneficiam da tradição negra cada vez mais exploram os símbolos, mas sem levar em consideração sua importância real.
“Aliás, há um grande interesse no desaparecimento e rebaixamento das escolas de samba tradicionais. Assim, a branquitude consegue provar que somos incapazes de nos manter reverenciando o passado”, diz.
“Levantar os punhos não significa p… nenhuma para o sistema. Por isso nos ignoram. Mas nossos punhos continuarão cerrados e eles saberão por que”, finaliza.
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