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A conta do clima chegou para a favela

Homem em meio a uma enchente em Uruai, Duque de Caxias (RJ), 24 de março de 2024

Foto: Pablo Porciuncula/AFP

7 de abril de 2024

Por Alan Brum Pinheiro

A pelada nas ladeiras íngremes, o jogo de bolas de gude nos becos estreitos e o pomar do outro lado do muro, onde pegávamos frutas como carambola, amora e pitanga. As brincadeiras nos quintais com espaços, árvores e muitas plantas. Essa é a primeira lembrança da minha favela, ainda na década de 1970. A infância ingênua, tranquila e cheia de molecagem no Morro do Alemão, hoje bairro Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro.

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O tempo passou e os problemas das favelas só pioraram, e de forma cruel. Em uma metrópole com grande densidade populacional, as favelas ainda são os locais que mais sofrem com a violência de Estado e com os impactos ambientais agora agravados pela crise climática.

O poder público sempre viu as favelas como estruturas provisórias. Assim, nunca investiu em infraestrutura, sempre canalizada para locais privilegiados da cidade. A falta histórica de políticas públicas estruturantes nos nega o básico: saneamento, água, luz com qualidade e, principalmente, moradia decente. As favelas viraram um mar de habitações sobrepostas, quentes, insalubres e sem espaços de convivência, sejam públicos (praças e parques) ou privados (quintais). As poucas intervenções urbanas tardias sempre atenderam à lógica das empreiteiras, ou seja, maior lucratividade com muito cimento e pouco projeto urbano.

Os principais impactos da mudança climática sobre as favelas são deslizamentos, enchentes e ondas de calor. Eles são agravados por esse contexto e pelo assoreamento dos rios e canalização do esgoto para suas águas, a destruição das matas ciliares, o desmatamento contínuo, a impermeabilização do solo e a falta de um planejamento urbano integrado que possa reverter essa situação e priorizar as populações que ali vivem.

Na cidade do Rio de Janeiro, segundo estudos da C40 (rede de megacidades mundiais que se autodeclaram comprometidas com ações relacionadas à mudança climática), a zona norte, principalmente os complexos de favelas do Alemão e da Maré, é a região com maior efeito de ondas de calor. Esse fenômeno climático provoca um aumento anormal da temperatura e foi agravado pelas alterações climáticas nos últimos 60 anos.

Considerando a aridez do ambiente, a falta de circulação de ar, o fornecimento precário de água e o perfil socioeconômico da população, as favelas sofrem os impactos climáticos de forma muito mais acentuada, aumentando problemas sérios de saúde, principalmente em crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas, causando insolação, desidratação (consequentemente, alguns problemas renais), pressão baixa, além de aumentar o risco de acidentes vasculares cerebrais (AVC), podendo levar até à morte, em alguns casos. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), 15 milhões de pessoas morrem por ano no mundo por causa do calor extremo, sendo as populações mais vulneráveis socialmente a maioria dessas vítimas.

Isso é fruto de uma política governamental que assinou diversos tratados do clima mundo afora, mas que nunca traduziu esse entendimento em práticas consistentes em nossas cidades. Precisamos apontar os responsáveis e exigir mudanças estruturais que consigam reverter e adaptar os impactos climáticos negativos.

Um bom exemplo foi a manifestação na última semana na passarela na entrada da Rocinha, onde foi colocada uma faixa com a mensagem “Rio 60 graus – um oferecimento Petrobras”.

Mais uma vez é a favela dizendo o que precisa ser feito. Por um lado, precisamos reafirmar as macro ações de políticas públicas para diminuir a emissão de gases de efeito estufa com planos mais efetivos, consistentes e o mais breve possível na mudança de nossa matriz energética, honrando o Acordo de Paris. E, por outro lado, reafirmar ações localizadas nas favelas com intervenções urbanas e políticas públicas integradas e intersetoriais com foco na proteção das pessoas e na redução das desigualdades. A urbanização de favelas precisa deixar de ser um projeto de obras apenas e passar a ser um urbanismo ambiental processual, focado nessas populações, suas histórias e memórias.

Como processo, pode e deve ter camadas que vão se sobrepondo num mosaico de políticas intersetoriais. Entregar obras de infraestruturas, mas com cinturões verdes, permeabilidade do solo, integração do saneamento às redes da cidade, hortas, pomares, melhorias habitacionais e outras soluções baseadas na natureza; e camadas sociais e humanas cuidando das pessoas, criando acessibilidades diversas aos direitos, à geração de renda e aos benefícios sociais, culturais e educacionais.

Sonho com um tempo em que as favelas serão vistas pelo que são: constituintes e construtoras diárias da cidade. Para isso, devemos reparar a dívida histórica do direito à cidade e ao ambiente saudável. Nós, favelados, não podemos ser, mais uma vez, as maiores vítimas das irresponsabilidades dos setores que ditam as políticas que devem ser implementadas, dos descasos sistêmicos de políticas de agressão ambiental e climática.

Alan Brum Pinheiro é favelado, doutorando em planejamento urbano IPPUR/UFRJ, diretor do Instituto Raízes em Movimento e coordenador do Plano de Ação Popular do CPX.

Este é um texto de opinião e não reflete necessariamente as opiniões da Alma Preta Jornalismo

  • Redação

    A Alma Preta é uma agência de notícias e comunicação especializada na temática étnico-racial no Brasil.

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