Depois de mais de um ano de processo, os quilombolas das comunidades de Poconé, no Pantanal (MT), conseguiram responsabilizar fazendeiro por contaminação de agrotóxicos após uma poeira tóxica da colheita de soja atingir as casas das famílias. Na ocasião, uma grávida adoeceu e um bebê de 10 meses também teve os sintomas. Isso aconteceu em março de 2021.
As famílias estavam expostas a pulverizações constantes de agrotóxicos nas lavouras de soja muito próximas às moradias, onde foram observados efeitos também em plantas, no solo, e na água.
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“Mangueiras deram mangas deformadas, podres por dentro e sem sabor”, relata uma moradora da comunidade. Um agricultor afirma que, na sequência dos dias, suas mandiocas e quiabos não vingaram.
Fazendeiro é multado
O caso gerou uma reação coletiva e para dar um basta nas contaminações recorrentes todos os anos na época de safra na região, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e a Federação de Assistência Social e Educacional (Fase) – que desenvolvem trabalhos nas comunidades afetadas, com o apoio da organização de advogados populares Terra de Direitos –, protocolaram a denúncia junto ao Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e também Estadual (MPE).
O MPT instaurou um processo investigativo e um ano depois da poeira tóxica veio a vitória. O processo resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e multa trabalhista ao proprietário da Fazenda Carisma. No âmbito do processo, a Conaq do Mato Grosso propôs um projeto de apoio à Agroecologia, para reverter, ao menos em parte, os danos causados aos territórios quilombolas. O projeto está em fase de execução, financiado com o recurso da multa aplicada.
“Estamos comemorando a nossa vitória. A multa é irrisória, em vista dos grandes danos causados, mas é algo importante para que passem a nos respeitar, porque da próxima vez os fazendeiros vão pensar duas vezes antes de plantar soja no quintal dos quilombolas”, diz a coordenadora da Conaq em Mato Grosso, Laura Silva.
“A gente pensou que não ia dar em nada, mas este é um caso exemplar, de que vale a pena denunciar. Mexeu no bolso do agressor e serviu para mostrar que não estamos mortos e vamos continuar lutando e defendendo nossos direitos, nossos interesses, porque nosso território é de uso em comum, não visa lucro, é um espaço sagrado”, completa.
A engenheira Agrônoma e Educadora da Fase e também quilombola, Fran Paula, explica que o objetivo do projeto é fortalecer os sistemas agroecológicos, os quintais produtivos e as roças tradicionais das comunidades quilombolas, demonstrando que outra forma de produção agrícola – sem uso de agrotóxicos – é possível.
Análise da água
Fran relata que, durante a apuração da denúncia, a Fase e o Núcleo de Estudos Ambientais da UFMT coletaram amostras de água nas comunidades em Poconé e o resultado confirmou até 10 tipos de agrotóxicos nas fontes de água, nos rios, nos tanques de piscicultura, na água de chuva, e em poços artesianos.
O documento sobre a água dos quilombolas foi anexado ao processo, assim como os pareceres do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso (Indea) e da Secretaria Municipal de Saúde de Poconé, que fiscalizaram a fazenda e visitaram as comunidades.
Ficou comprovado, na apuração dos fatos, que o fazendeiro desrespeitou o limite de distanciamento de lavouras e residências, determinado em lei, mantendo lavouras a menos de 90 metros das comunidades quilombolas.
Poeira tóxica é comum em MT
Coordenador do Fórum Mato-Grossense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, o procurador do trabalho Bruno Choairy Cunha de Lima vê uma série de ganhos resultantes da denúncia, desde a responsabilização do fazendeiro com multa até medidas educativas, previstas no TAC.
“O fazendeiro se comprometeu a manter distância mínima para aplicação de agrotóxicos de povoações e mananciais e a não usar agrotóxicos como a Atrazina, encontrada nas amostras colhidas nas comunidades atingidas. Esse veneno é tão maléfico à saúde que está proibido na União Europeia desde 2004”, adverte o procurador.
Segundo Bruno Lima, o MPT também observou que essa situação ilegal se repete em vários pontos do Estado, atingindo quilombolas, indígenas e demais comunidades ilhadas pelo agronegócio. Ele destaca ainda que se trata de uma contaminação silenciosa, que vai minando a saúde aos poucos, ao longo dos anos, no contato próximo a áreas pulverizadas com venenos agrícolas.
Com a evidência de riscos às pessoas, às plantas, ao solo e à água, o MPT também determinou a realização de uma audiência pública, para ampliar a discussão com municípios em que se verifica maior produção agrícola. Sorriso, Sapezal, Campo Novo do Parecis, Nova Ubiratã, Nova Mutum, Diamantino, Campo Verde, Primavera do Leste, Lucas do Rio Verde, Querência e Campos de Júlio. Além de Rondonópolis e Sinop, por sua importância estadual.
Denunciar não é fácil
De acordo com uma quilombola atingida, que preferiu não expor seu nome, denunciar casos assim causa medo, mexe com pessoas importantes e tira a paz. Porém o amor pelo quilombo, seus familiares e vizinhos, faz o esforço valer a pena.
“Na minha casa eu, meu marido e meus filhos tivemos irritação na garganta, coceira na pele, dor de cabeça, já no dia seguinte da ocorrência. Nunca tinha acontecido isso antes, ficamos assim sem entender, estranhamos, tratamos com chá caseiro”, conta a quilombola. “Mas logo associamos à soja, porque estamos rodeados por lavouras. Jogam veneno lá e na gente”, completa.
Outra moradora da região, que também prefere se manter anônima, explica que os quilombolas nem sabiam da gravidade dos agrotóxicos para saúde, até sentirem os efeitos tóxicos na pele.
“Aprendemos da forma mais dura com essa experiência terrível. Nasci aqui e precisamos não deixar isso acontecer mais. À medida que fomos nos valorizando, ao ponto de denunciar o caso, fomos também refletindo sobre quem somos, nossa cultura, que estávamos deixando de lado, nossas rezas cantadas, o cururu e o siriri, nossas rodas e nossas comidas. Nossa saúde não é mimimi, o meio ambiente não é mimimi, o quilombo vai reagir”.
PL do Veneno
O combate ao uso de venenos agrícolas é uma luta incansável da Conaq. A Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) da Câmara aprovou nesta segunda-feira (19) relatório favorável do senador e presidente do colegiado, Acir Gurgacz (PDT-RO), ao PL do Veneno, que modifica as regras de aprovação e comercialização de agrotóxicos.
O Projeto de Lei 1459/2022 tramita no Congresso Nacional desde 1999 e é de autoria de Blairo Maggi, que foi senador e depois ministro da Agricultura. Blairo é um dos símbolos do agro no Mato Grosso. O projeto atual, que é um substitutivo ao original, segue agora para votação no Senado.
Em anos de tramitação no Congresso Nacional, o texto passou por várias alterações. A proposta trata de pesquisa, experimentação, produção, comercialização, importação e exportação, embalagens e destinação final e fiscalização. Nesses últimos três anos e 11 meses, foram liberados mais de 1,9 mil agrotóxicos nas lavouras do país.
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