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História apagada: 9 de julho e a participação negra nas trincheiras paulistas

Apagados dos livros de história, negros tiveram uma importante colaboração na Revolução Constitucionalista de 1932; a Alma Preta conversou com o professor e historiador Petrônio Domingues sobre o assunto, que explicou sobre o tamanho da participação negra no conflito e as motivações desse envolvimento
Imagem mostra foto de soldados da Frente Negra, nos conflitos da Revolução Constitucionalista de 1932.

Foto: Reprodução / Uol

9 de julho de 2024

Bauru e Rio de Janeiro – Em São Paulo, o dia 9 de julho é marcado pela celebração do feriado em memória da Revolução Constitucionalista de 1932, evento que simboliza a guerra civil do estado paulista contra forças militares comandados por Getúlio Vargas.

O conflito foi uma resposta ao estado ditatorial instaurado por Vargas, após o golpe de Estado que o levou ao poder, em outubro de 1930. Após acabar com as eleições e romper com os poderes políticos vigentes — que beneficiavam as elites de São Paulo e Minas Gerais —, o governante nomeou um interventor de outra região para o comando do estado. 

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O fato gerou revolta na elite paulista, que passou a pressionar o governo por uma descentralização do poder e pela criação de uma nova constituição, pautada em princípios liberais. A tensão seguiu até que a morte de quatro jovens resistentes à ditadura, Miragaia, Marcondes, Dráusio e Camargo, se tornasse o estopim para o combate.

No entanto, a narrativa oficial deste episódio histórico omite a participação de um grupo que teve importante participação no conflito: a população negra. Devido à falta de apoio do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, o estado e as elites paulistas contaram com a mobilização de mulheres e homens negros para a luta.

A participação da população negra no conflito

Em entrevista à Alma Preta, o historiador e pesquisador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), autor do artigo “Os ‘Pérolas Negras’: a participação do negro na Revolução Constitucionalista de 1932”, aponta que a participação negra chega a um quarto do contingente de soldados, de acordo com estimativas. Segundo ele, não há consenso sobre o tamanho real das forças constitucionalistas, mas há uma estimativa de que 40 mil homens chegaram a ser mobilizados.

Domingues explica que, desse contingente, estima-se que o número de membros da Legião Negra — batalhões específicos de soldados negros, grupo que ficou conhecido como “Pérolas Negras” — varia entre duas mil e 3,5 mil pessoas. No entanto, a participação negra no conflito não se restringiu a esse grupo. O historiador aponta que essa participação aconteceu em maior número fora desses batalhões. 

“Somando a participação da população negra que ficou diluída, há uma estimativa do jornal Folha da Noite da época que aponta que mais de dez mil pessoas negras participaram da luta, seja se engajando no Exército, na Força Pública ou nos batalhões de voluntários civis”, conta o pesquisador, doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP).

O historiador e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Petrônio Domingues.
O historiador e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Petrônio Domingues. (Kazuo Kajihara/Reprodução)

Liderados pelo chefe civil e capitão da Força Pública, Joaquim Guaraná, o agrupamento reuniu três batalhões de infantaria. Registros da época destacam a coragem e o desempenho dos soldados negros, que atuaram em dois importantes eixos de batalha — ao norte, na divisa com Minas Gerais, e ao sul, na divisa com o Paraná.

De acordo com o artigo de Domingues, o grupo chegou a ser utilizado como “bucha de canhão” durante a guerra, sendo lotado para o fronte com mais frequência que os soldados brancos — que, por vezes, pediam para se ausentar da linha de frente dos locais mais tensos de batalha, passando a atuação para os combatentes negros.

As mulheres negras também despontaram na guerra, não só como enfermeiras, mas também compondo a linha de frente dos conflitos. Maria José Bezerra, conhecida como Maria Soldado, virou símbolo por lutar nas trincheiras ao lado dos homens.

Engajamento é explicado por motivos econômicos e políticos

Para o professor Domingues, a participação massiva da população negra no conflito se deve, em parte, às condições materiais enfrentadas por essas pessoas à época. Ele explica que diante disso, as pessoas negras, em especial os homens jovens, viram na participação no conflito uma forma de garantir sua subsistência.

Apesar disso, essa explicação é insuficiente para retratar o engajamento da população negra nesse movimento. Domingues ressalta que a participação foi motivada também por uma leitura política e uma tentativa de integração da população negra nos destinos da nação. Diante da retórica paulista de luta pela liberdade contra Getúlio Vargas, a população negra engajada no conflito fez uma leitura, nos seus próprios termos, do que estava em jogo.

“A população negra acreditava, sim, que participar de uma luta política e social, engajando-se no destino da nação, era um meio de buscar sua inserção social, sua incorporação à comunidade nacional, ao corpo da nação, um meio de ser reconhecida por suas potencialidades. Então, engajar-se no Exército Constitucionalista era também um meio de mostrar como essa população negra era consciente de seus direitos no campo da cidadania e que buscava participar ativamente do destino da nação”, detalha o pesquisador.

Racismo epistêmico explica apagamento na pesquisa e na memória

Para o pesquisador, há um apagamento histórico dessa participação massiva da população negra no conflito. Segundo ele, isso se deve a fatores como o racismo epistêmico.

“Acredito que isso se deve a alguns fatores. Primeiro, o racismo epistêmico relacionado à narrativa histórica. Já foram publicados mais de 200 livros sobre a Revolução Constitucionalista, pelo menos na última estimativa que fiz. A cada ano, novas publicações são lançadas. No entanto, nenhum desses mais de 200 livros se dedica exclusivamente à história da Legião Negra”, salienta o historiador.

Para Domingues, do ponto de vista da pesquisa histórica, o mais incrível é que seu artigo sobre o assunto ainda seja o único a abordar o tema de forma aprofundada. Segundo ele, esse apagamento se estende à memória de São Paulo em torno da revolução, uma vez que as celebrações em torno de uma “suposta vitória moral” paulista excluem o papel da população negra:

“Por um lado, há um apagamento do ponto de vista do discurso histórico, da narrativa histórica, da escrita da história e da pesquisa histórica. E, por outro lado, há um apagamento da presença negra na Revolução Constitucionalista do lado dos paulistas quando se promove uma celebração da memória. Do ponto de vista da memória, das lembranças que devem ser cultuadas, celebradas e valorizadas, não há menção à presença negra no Exército Constitucionalista em defesa da causa paulista.”

  • Verônica Serpa

    Graduanda de Jornalismo pela UNESP e caiçara do litoral norte de SP. Acredito na comunicação como forma de emancipação para populações tradicionais e marginalizadas. Apaixonada por fotografia, gastronomia e hip-hop.

  • Solon Neto

    Cofundador e diretor de comunicação da agência Alma Preta Jornalismo; mestre e jornalista formado pela UNESP; ex-correspondente da agência internacional Sputnik News.

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