Por: Federico Pita, cientista político e fundador do Diáspora Africana da Argentina (Diafar)
O dia 9 de julho de 1816 é comemorado como o Dia da Independência da Argentina, em referência à declaração de independência assinada nesse dia no Congresso de Tucumán pelos representantes das Províncias Unidas do Rio da Prata. Essa declaração teve que ser complementada dias depois, acrescentando que não só exprimia a independência em relação à Espanha, como também a todas as potências estrangeiras. No entanto, não era a primeira vez que se declarava a independência da monarquia espanhola neste território.
Um ano antes, em 29 de junho de 1815, os delegados do Congresso dos Povos Livres, representando a Banda Oriental e as províncias de Corrientes, Santa Fé, Córdoba, Entre Ríos e Misiones, já o tinham feito. Por que então a data é comemorada a 9 de julho e não em 29 de junho? Por que o discurso da independência foi associado à ideia de liberdade, apesar de a escravidão ser ainda uma instituição robusta e de os processos de independência não pretenderem contestá-la? Quantos dos signatários do 9 de julho e do 29 de junho eram proprietários de escravos? De que liberdade falavam então, para quem? De que liberdade falamos hoje? Se a história é escrita pelos proprietários, por aqueles que vencem, então nós, o povo, devemos escrever a nossa própria história.
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Quem somos nós, argentinos, quem nos representa, o que queremos para o nosso país, etc., são questões que se colocam frequentemente em torno das comemorações patrióticas. No dia 9 de julho, é frequente o debate em alguns círculos sobre se nos tornamos realmente independentes, sobre o grau de soberania real do nosso país e sobre os ajustes necessários. No entanto, há algum tempo, quando pensávamos que na pior das hipóteses se repetia o discurso da História Oficial da oligarquia latifundiária de Buenos Aires (ou seja, o verso mitrista), houve quem pedisse desculpa ao rei de Espanha por ter rompido com os laços coloniais. E depois houve quem recuperasse com nostalgia a época inquisitorial e escravocrata inaugurada com a chegada de Colombo em 1492 ao nosso continente.
Proponho refletir sobre as linhas de continuidade que podem ser traçadas entre as maiorias desse 9 de julho de 1816 e as maiorias de hoje. Para começar, vale a pena notar que as maiorias populares e racializadas de hoje são descendentes das maiorias populares e racializadas de então. Os nossos antepassados conheceram a expropriação, o genocídio, a servidão e a escravidão desde a excursão do genovês perdido. Fomos/somos nós que pusemos os nossos corpos nas guerras de independência de então e na pandemia neoliberal-libertária de hoje. Em ambos os momentos históricos fomos/somos os mais afetados por sistemas injustos, violentos, empobrecedores, restritivos e imorais. E, hoje como então, a palavra liberdade está minada ao ponto de perder o seu significado.
Na declaração de independência de 9 de julho de 1816, os representantes das Províncias Unidas da América do Sul, em um congresso geral constituinte (foi assim que nos ensinaram na escola), reivindicam o seu direito à independência em relação à Espanha, a ser uma nação livre, à “liberdade”. Desde 1813 já se cantava a Marcha Patriótica (hoje o Hino Nacional Argentino), mencionando a “liberdade” e o som de correntes quebradas. Tudo isso enquanto ainda havia escravos nesta terra. De fato, foram necessários quase 50 anos após a declaração de independência para que a população afro-argentina visse o fim da escravidão. Quase duas vidas, se levarmos em conta que a expectativa média de vida no século XIX era de cerca de 29 anos.
Atualmente, os discursos em torno dos aniversários nacionais continuam colocando um sintoma no centro das atenções: o racismo crioulo. Um racismo que oprime, invisibiliza e nega as nossas maiorias não brancas. Por isso, reivindicar a matriz negra da nossa independência é reivindicar o poder transformador das maiorias populares racializadas da Pátria.
Na narrativa do mito racista da “Argentina branca e europeia”, as guerras de independência são utilizadas para negar a existência da comunidade afro-argentina no presente. Os heróis “oficiais” afro-argentinos, como Antonio Ruiz “Falucho” ou José Apolinario Saravia, são destacados como tempero épico e álibi; nos últimos anos, as mulheres afro-argentinas foram até resgatadas na figura de María Remedios del Valle Rosas, mas continua a prevalecer a história da extinção: como os corpos de infantaria, onde predominavam os soldados afrodescendentes, foram colocados na linha da frente da batalha e, portanto, a sua participação maciça nessa guerra nos fez desaparecer.
Raramente é relatado que os escravizados eram obrigados a se juntar aos exércitos. Por vezes com a promessa de libertação após o serviço, O qual durava anos. Mesmo assim, essa promessa ocorria de forma indiscriminada. Um caso que ganhou notoriedade sobre isso, embora anos antes da Declaração de Independência, é o do “Batalhão n.º 17 de Pardos e Morenos”, em que 70 pessoas escravizadas ganharam a liberdade depois de luta contra as invasões inglesas. Setenta, de um total de 686.
Frequentemente também, a presença dos afrodescendentes no processo revolucionário é reduzida aos batalhões segregados. No entanto, a contribuição dos afro-argentinos não se limitou aos regimentos de “Pardos e Morenos”. Bernardo José de Monteagudo, por exemplo, destacou-se como intelectual, político e militar, participando nos processos revolucionários de vários países ao lado, primeiro, de San Martín e, depois, de Bolívar. A sua influência foi tal que, na impossibilidade de o tornar invisível, a propaganda oficial teve que branqueá-lo.
Para não falar da incontornável contribuição dos afrodescendentes na Revolução Haitiana. Era o terror dos latifundiários, era o espectro que pairava sobre todos os conselhos, debates e congressos. Ampliar a participação popular no processo revolucionário no Sul significava se expor aos perigos da radicalização, até mesmo perder o controle do processo e acabar como os brancos no Haiti. Mortos, ou sem escravos, sem propriedade e sem poder.
O poder branco tem o hábito de monumentalizar os indivíduos, homens, brancos, exaltados como notáveis, gênios únicos, falsificando a história para nos fazer crer que temos de esperar pela chegada desse gênio iluminado. Pouco se fala das massas que acompanharam os libertadores, das mulheres, do povo, outros dirigentes. Já xs negrxs devem saber que a luta é coletiva, que ninguém se salva sozinho e que não sairemos desta violência anarco-capitalista-libertária por obra e graça de um único gênio, muito menos de um único homem. As guerras pela independência da Argentina foram vencidas pela ação das grandes maiorias que lutaram, juntas, e a tornaram possível.
Reconhecer a participação dos afro-argentinos nas campanhas de independência enriquece a nossa compreensão da história, contribui para a justiça histórica e racial, e leva-nos a colocar questões desnaturalizantes: quem somos nós, argentinos? Quem são as maiorias? Por que é que é sempre à nossa custa? Por que é que os nossos governantes, mais de dois séculos depois, continuam a não se parecer com o seu povo?
Exaltar o legado afro-argentino na luta pela emancipação não só honra a sua memória, mas também aprofunda a relação das maiorias racializadas com os fundamentos da nossa nação. Nós somos a Pátria.
Este artigo foi publicado originalmente em espanhol no portal Negrx, parceiro da Alma Preta na Argentina, e parte do site do jornal Página 12.