A cientista social Yasmim Alves começou sua atuação como militante do PSOL, em Recife, com apenas 17 anos e agora, uma década depois, quer se tornar vereadora da capital pernambucana. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a jovem bissexual é uma das 515 candidaturas registradas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tentam ocupar uma das 39 cadeiras da Câmara Municipal de Recife.
A recifense é ligada ao movimento negro da cidade e tem histórico de atuação na defesa dos direitos dos trabalhadores e da cultura popular. Alves é integrante do Afoxé Alafin Oyó, fundado em 1986 e conhecido como “candomblé de rua”, um grupo que atua na defesa da memória e da cultura negra.
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Em entrevista à Alma Preta, a candidata critica duramente a desigualdade em Recife, ressalta que a cidade vive um “monopólio político” do PSB, partido do atual prefeito, João Campos, e aponta sua trajetória de luta por direitos como credenciais para ampliar a luta antirracista dentro da Câmara e “tirar o filtro” da comunicação da Prefeitura para revelar e combater os reais problemas da cidade.
Entre as propostas, a candidata destaca a tarifa zero para o transporte público, a criação do Fundo Municipal de Reparação Econômica para apoiar famílias afetadas pela violência, a criação de equipamentos culturais nas periferias, a ampliação da licença-maternidade e a instituição de licença parental, a construção de lavanderias e restaurantes públicos e a criação de um Dia Municipal da Arte Drag Queen.
Para Alves, as galerias da Câmara Municipal precisam ser preenchidas pelo povo “para as pessoas se formarem politicamente no processo e pautarem políticas antirracistas”, e gerar a pressão necessária para garantir orçamento para projetos de “combate ao racismo em todas as esferas”. Apesar de defendê-las, a candidata acredita que políticas públicas não são o suficiente e apenas a mobilização de massas é capaz de superar o racismo.
Abaixo, confira a entrevista na íntegra:
Alma Preta: O que você destacaria da sua trajetória para alguém que busca uma candidatura antirracista e de esquerda em Recife?
Entrei no PSOL aos 17 anos e agora, dez anos depois, estou candidata a vereadora do Recife. Nesses anos, construí a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe) junto com a Coalizão Negra por Direitos.
Durante a pandemia, atuei no processo de distribuição de cestas básicas e tíquetes de alimentação. Na medida em que a gente fazia isso na pandemia, a gente conscientizava a população sobre a necessidade de enfrentar o racismo e a extrema-direita representada na figura de Bolsonaro e do bolsonarismo.
A gente organizou, e fiz parte dessa organização, de diversos atos de enfrentamento à violência racista da Polícia Militar, construindo atividades em um bairro, por exemplo, como Ibura, que tem um forte índice de violência da Polícia Militar.
Então, destaco primeiro essa trajetória de luta, ou seja, não sou uma candidata negra antirracista qualquer, já trago uma trajetória anterior de atuação e ação concreta.
Acho que a gente precisa cada vez mais vincular o debate antirracista ao debate anticapitalista, que andam lado a lado, e de enfrentamento às consequências do sistema capitalista, como, por exemplo, a crise climática.
Recife é a 16ª cidade do mundo mais ameaçada pelos eventos climáticos extremos, e as primeiras pessoas impactadas por isso não vão ser as pessoas que moram nos prédios de Boa Viagem ou mesmo nos prédios, nas Torres Gêmeas, do Centro da cidade do Recife — onde, inclusive, o menino Miguel [Otávio Santana da Silva], como consequência do abandono da patroa [Sari Corte Real] de Mirtes [Renata Santana de Souza, mãe de Miguel], caiu do nono andar desse prédio, sobre o que a gente fez diversas mobilizações.
Não vão ser as pessoas que moram nesses locais e nesses territórios, as primeiras atingidas vão ser justamente a população negra trabalhadora, a população periférica dos bairros, que não têm um atendimento, uma cobertura plena de saneamento básico.
Alma Preta: Quais são os maiores desafios que a candidata identifica em Recife atualmente e com quais propostas pretende enfrentá-los?
Entendo como desafio o fato de o PSB estar na gestão do Recife há mais de 12 anos. Antes de Raquel Lyra, do PSDB, o PSB governava o estado através da figura de Paulo Câmara e outros. O PSB possui 53 prefeituras em todo o estado. Então, eles monopolizam a política no estado de Pernambuco através de uma política que é familiar, que é de oligarquia, através de compra de votos, através de assédio, inclusive, de servidores públicos, para adesão às suas candidaturas. E que agora [continuam] com a figura de João Campos e com muito dinheiro investido em comunicação. É o prefeito TikTok, é o prefeito amigo da galera, é o prefeito que gasta mais de 42 milhões do dinheiro público com publicidade e propaganda.
Então, enxergo isso como um desafio, porque, quando na democracia, alguém já sai para a corrida eleitoral estando [com o jogo] ganho, isso dificulta a competitividade, o debate político para o Legislativo. Então, em vez de eu estar tendo vários debates com outros candidatos à vereança, não está tendo muito. Não estou vendo muitas caminhadas, então acaba tendo um elemento até misterioso de como vai ser o dia 6 [de outubro], pensando na Câmara Municipal, porque eu fico me perguntando: “Onde é que estão os candidatos do prefeito?”. Alguns eu consigo ver, mas a maioria deles, não.
Acho que isso é um desafio e acredito que a forma que a gente tem enfrentado, e tem sido efetiva, é mostrar o que está por trás desse filtro do Instagram, o Recife real que João Campos não tem mostrado na rede social, que é esse Recife onde falta saneamento básico, onde falta emprego, onde as feiras, os mercados públicos precisam de infraestrutura, onde o setor cultural tem reclamado que não dá para sobreviver apenas de cachê e de ciclos festivos, como o Carnaval, que João Campos também faz uma grande questão dizendo que o Carnaval é o melhor do mundo. Talvez seja, mas para mim, que sou do Afoxé Alafin Oyó, e para outros segmentos da cultura, o cachê chega atrasado. A gente faz cultura o ano todo e, em vez de ter um financiamento o ano todo, a gente tem apenas, e prioritariamente, nesses ciclos festivos.
Então, eu acho que uma forma de enfrentar isso é tirando esse filtro e mostrando a realidade para a população, escutando a população, porque a gente não pode ir para a rua com a cabeça fechada, sem estar com os ouvidos abertos para escutar o que a população está pensando.
Alma Preta: Atualmente, a Câmara de Recife tem uma Comissão de Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo. Como você avalia o trabalho dessa comissão e como a vereança pode incidir na luta contra o racismo?
Acho que o trabalho da Comissão de Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo na Câmara Municipal, ele pode e deve ser mais efetivo. E para isso é preciso que, a gente chegando lá, a gente faça uma disputa, e não apenas pelos mandatos, porque os mandatos de esquerda na Câmara Municipal são poucos. A gente precisa encher a Câmara de gente, de povo de classe trabalhadora, da negrada, para poder exigir que haja orçamento suficiente para aplicar políticas de igualdade racial, de enfrentamento ao racismo em todas as esferas. Na saúde, na educação, no transporte público, na segurança, porque tudo isso está articulado.
O racismo não pode ser superado no âmbito da política pública. Com a política pública, a gente atende direitos básicos, estabelece medidas urgentes. O racismo só será superado com a construção de um grande movimento, de uma grande mobilização de massas, que denuncie o racismo e o sistema capitalista, porque, enquanto houver capitalismo, vai haver racismo — algo que se estruturou desde a escravização e está muito forte. Então, uma Câmara Municipal não é capaz de superar isso.
Uma prova de que essa comissão não é tão efetiva quanto deveria, é que a gente já tem como previsto o Estado laico, e a Câmara Municipal do Recife não só traz símbolos de uma única religião, como uma pessoa, por exemplo, vereadora*, como a missionária Michelle Collins [PP], utiliza do seu poder enquanto vereadora para pregar ódio, violência, discriminação e racismo religioso contra as religiões de matriz afro-brasileira e indígena.
Quando fui assessora parlamentar do primeiro mandato municipal do PSOL, do vereador Ivan Moraes, eu fui a responsável por organizar uma sessão solene, que foi de enfrentamento a essa postura de Michelle Collins. A gente teve lá vários povos de terreiros e afoxés, não para dizer que aquele ali é espaço de uma única religião, mas para dizer que não é possível que, dentro do dito Estado laico, os vereadores e vereadoras sejam permissivos com esse tipo de postura de uma vereadora como Michelle Collins.
Então, a gente demarcou a nossa presença lá, elaboramos uma cartilha de enfrentamento ao racismo religioso, e eu acho que esse é um dos papéis que essa comissão e um mandato como o nosso têm, teria, deve ter em uma Câmara Municipal: incidir para que a Câmara Municipal do Recife seja exemplar no quesito Estado laico, sabe? Não permitir que nenhum vereador compartilhe esse tipo de ideia, compartilhe esse tipo de mensagem enquanto um representante do povo recifense. Você não é representante de uma única religião, você não é eleito por um único bairro, você é eleito mesmo para legislar e atuar para todo o Recife. E se é assim, você precisa atuar com o princípio do Estado laico e não apenas pensando na sua ideologia, a partir da sua religião. E isso é algo que a gente precisa avançar muito enquanto esquerda no Brasil.
Alma Preta: As Câmaras brasileiras são amplamente de direita. Recife tem uma maioria de vereadores com siglas que, nominalmente, são de esquerda e centro-esquerda — PSB, PT e PCdoB. Você acredita que há um ambiente favorável para o combate ao racismo na Câmara? Caso não, como é possível agir para garantir o avanço das suas propostas antirracistas nesse ambiente?
Acho que é importante um mandato com o caráter da candidatura que eu trago — combativo, de luta, educativo —, um mandato de escuta, que pretende fazer o debate de democratização do orçamento público, da ampliação da participação social. Gente, quando tem votação na Câmara, as galerias, na maioria das vezes, estão vazias! Então, o nosso mandato tem que criar as condições para que essas galerias comecem a lotar de gente, para as pessoas se formarem politicamente no processo e pautarem políticas antirracistas e políticas como um todo.
Acho que uma forma de avançar é ter o mandato não só como tribuna da nossa classe, mas um mandato que tem ações próprias, por exemplo, elaborações de cartilhas e uma caravana nas escolas públicas para usar essas cartilhas como instrumento de enfrentamento ao racismo e aplicação da lei de ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, a Lei 10.639 e a lei complementar.
Então, cartilhas, campanhas educativas do próprio mandato, porque o mandato, ele terá uma equipe de comunicação, terá uma equipe de articulação e mobilização, terá estrutura para potencializar coisas que saiam e que sejam criadas pelo nosso próprio mandato e, através dele fortalecer a auto-organização em diversas esferas. Uma coisa que eu percebo no Recife é a oxigenação do movimento hip-hop, do brega funk. A questão dos afoxés, das culturas populares, perpassam, originalmente, a questão racial e antirracista. Então, fortalecer a luta antirracista em todas essas dimensões, sabe? Ter a porta do mandato aberta para fortalecer essas organizações.
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* Apesar de ser vereadora eleita em Recife, Michelle Collins (PP) atualmente é deputada federal, tendo assumido a vaga em julho deste ano como suplente de Clarissa Tércio (PP), licenciada do cargo para disputar eleições em Jaboatão dos Guararapes (PE).