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Flip Paraty coloca João do Rio entre os mais vendidos e não debate racismo nas obras do autor

Apesar de ser um autor, jornalista e cronista que “flanou” e produziu narrativas que reforçaram o racismo biológico e o cientificismo que sobreviveu ao século XIX, o homenageado do ano e suas obras passaram ilesas pelas discussões, do palco principal, da FLIP Paraty 2024, a maior festa literária da América Latina. O evento colocou o esquecido “Alma encantadora das ruas” (1908) entre os mais vendidos.
O escritor, imortal da Academia Brasileira de Letras, João do Rio, em 1921, nas páginas da revista "Bahia Illustrada". nº 39, pag. 21, 1921, ano V

Foto: Reprodução

22 de outubro de 2024

“Alma Encantadora das Ruas”, uma das obras que mais revela o escritor, jornalista e dramaturgo João do Rio, com contribuições à perseguição da elite carioca à população preta, das macumbas e candomblés, entre os séculos XIX e XX, entrou para a lista dos livros mais vendidos da semana, impulsionada pela homenagem que o autor recebeu da 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty. 

As memórias de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), nome verdadeiro do homenageado, citadas nas poucas mesas que debateram sobre sua obra, reforçaram a imagem de um homem extraordinário das letras, amado, odiado e cercado de contradições. A ausência de debates específicos sobre o tema do racismo e do racismo religioso na obra do autor, aliado ao sucesso de vendas, permite questionar de que forma em pleno século XXI narrativas que nada contribuem com as pautas da atualidade podem circular livremente após um evento literário de tanta importância. “Alma Encantadora das Ruas” foi publicada em 1908, é um compilado de textos escritos por João do Rio, que com seu estilo único, misturando crônica e reportagem, sobre a cena urbana carioca, para “civilizados” e “incivilizados”.

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 Quem mais podia nos fazer pensar sobre os conflitos de João do Rio com sua origem negra e suas narrativas racistas, em relação às práticas religiosas negras, não foi convidado para festa. O autor da única biografia do homenageado, o jornalista João Carlos Rodrigues chegou a lamentar na sua rede social sobre o deslize da curadora Ana Lima Cecílio, que não o chamou para a programação.  Logo ela, que às vésperas do evento havia prometido um acontecimento “quente” porque abordaria temas do presente como racismo, lugar social da mulher, fake news e crise climática. 

Assuntos que seriam perfeitos para propor revisão e atualização da celebrada produção literária do homenageado, que não era uma unanimidade como tentou vender a curadoria (e nem precisava ser). Mas ao menos poderia ser mais bem debatido.   Até porque, ao mesmo tempo que lançou uma forma arrojada de fazer o jornalismo de campo, adentrando becos, vielas e morros, sem economizar críticas à toda gente preta e pobre, também sofreu preconceitos por representar existências que ele mesmo depreciava.  João do Rio era um negro de pele clara, gordo e diziam que escondia sua orientação sexual. 

Quando Luiz Antônio Simas na abertura desta Flip Paraty cantou para o orixá Exu, na conferência que ocupou o palco principal, poderia ter aberto também a possibilidade de repensarmos sobre obras que avançaram o passado e deveriam ser questionadas, ou no mínimo, atualizadas no presente. Mas não foi o que se viu e ouviu do aclamado professor.

Antes de iniciar a fala, Simas enalteceu a importância de se homenagear João do Rio como um homem das ruas e das encruzilhadas e o comparou ao orixá Exu, o que seria impensado pelo autor da época. O palestrante, usou da liberdade que ele disse ter recebido da organização, para remeter a Flip a um mercado, um dos domínios do orixá, trazendo uma antiga narrativa iorubá: Ebarabô agô mojubá, ebaraboô agô mojubá Exu Lonã (tenho fé e peço licença para louvá-lo no seu caminho!).  

Simas entoou a cantiga para o público que lotava sua conferência e ao concluir a história, que fala de uma peripécia de Exu e as cores dos dois lados do gorro que usava, desafiando dois grupos no mercado a perceber que se tratava de uma única peça, fez mais outra surpreendente comparação, revelando que um mercador havia solucionado o conflito: “Exu é a cidade do Rio e o mercador que cruzou para dizer que o gorro era vermelho e preto era João do Rio”. 

Ocorre que nem nos piores pesadelos João do Rio, que se notabilizou por ser um jornalista, que misturava crônica social com um jeito diferente de produzir suas matérias sobre a antiga capital federal, aceitaria ser comparado com o orixá Exu, que ele não se cansou de associar ao diabo. 

A verdade é que o celebrado escritor nunca romanceou sobre o Rio de Janeiro e a sua população majoritariamente negra e mestiça como ele, que nasceu do casamento de mãe negra e pai branco.  João era da ala que sonhava com uma modernidade que transformasse a cidade em uma “Paris tropical”, a belle époque carioca, nada africana e bastante europeia. Ele mesmo olhava e descrevia o Rio de Janeiro como um lugar de gente civilizada e incivilizada, sendo que ele era um homem civilizado, logicamente. Os incivilizados era os negros e mestiços, principalmente os “feiticeiros”, “feiticeiras” e frequentadores dos terreiros.

 É um erro pensar João do Rio (ou qualquer outro autor) como um “homem de época” para justificar qualquer passivividade diante do passado escravista do nosso país. Passividade era para os fracos, não para ele!

Há um aforismo africano que diz que Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. O que significa que é um orixá que subverte o tempo. Exu é o dono da comunicação e do movimento espiralado como um caracol, onde você pode se distanciar do centro, mas estará sempre ligado ao ponto de onde partiu, pois, cada volta te permitirá olhar o passado, para viver o presente.

Simas até falou sobre outro livro, “Religiões do Rio” e reconheceu que ela causa “certo incômodo”. Mas apesar de cantar para Exu, afirmou que as passagens do livro que “destilam certos preconceitos às religiões afro-brasileiras” podem ser consideradas apenas no tempo em que foram escritas e avançou apresentando outras qualidades “extraordinárias”, do homenageado, não sem antes se apoiar no pensamento de Muniz Sodré que teria dito: “não podemos julgar um homem com olhar de uma época que não é a dele”.

Por fim, o palestrante falou sobre o racismo e o racismo religioso serem “dilemas do Brasil” que estão aflorados, sendo que o racismo religioso opera na desqualificação dos saberes e das espiritualidades das encantarias que não são brancas”. Foi exatamente o que João do Rio fez, por exemplo, quando ao visitar os terreiros de macumba e candomblé classificou as religiões “negras” como primitivas, promíscuas, coisa de um povo “inicializado”, no caso a população preta e pobre da cidade. Para ele, o Rio de Janeiro de seu tempo era sujo, “bárbaro”, “feio” e “primitivo”. 

Para João do Rio o povo dos terreiros não passava de “idiotas”, “embusteiros”, “gorilas manhosos”, “obcecados”, “delirantes”, “pagãos literatos”, “reveladores do futuro” e “amantes do diabo”.  O diabo para ele também era Exu. João do Rio não cansou de reforçar essa deturpação e não havia imparcialidade para se referir a toda gente “incivilizada”.

Apesar de ter sido lembrado na Flip 2024 como o repórter que defendia o direito e emancipação das mulheres, é bom lembrar que ele não deixou de lançar um olhar de reprovação para as mulheres negras dos terreiros. Foram depreciadas em seus livros como feiticeiras, pretas cínicas, histéricas e descritas como postulantes a prostitutas. Ou no caso, de Tia Ciata, que também não foi poupada, chamada por ele de “falsa mãe de santo, exploradora, feiticeira, de embromação, presunçosa e até assassina”. 

Em Religiões do Rio estão registrados trechos como: “A yaôs são as demoníacas e as grandes farcistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de factos cruéis, anormais, inéditos, feitos do invisível, de sangue e morte”.

Será que homens de outros tempos devem mesmo ser lidos pelo seu tempo, no tempo de hoje? Será mesmo que João do Rio jogou a pedra ontem nas religiões afro-brasileiras, acreditando que hoje não nos atingiria, sendo que é o tipo de narrativa do passado que ainda alimenta imaginários que demonizam tradições, espiritualidades e as religiosidades afro-brasileiras no presente? 

A Flip 2024 terminou com um João do Rio que emergiu ileso pelo racismo que destilou e alçado ao topo dos mais vendidos, quando precisamos revisar narrativas hegemônicas e reescrever discursos que atrapalham a luta antirracista e violentam povos de terreiros, desde sempre.  

A festa literária e suas curadorias ainda não superaram a sina (ou a maldição) de reproduzir contradições, e se perder no contraditório, simplesmente porque dissimula ser um lugar diverso. Ainda bem que Exu cantado no palco principal foi aquecer os debates das margens, onde pulsaram as programações paralelas, nas ruas, vielas e encruzilhadas, onde se colocaram todas as questões que nos afligem, especialmente o racismo que circula em escritos do passado e do presente.

  • Claudia Alexandre é jornalista, cientista da religião e pós-doutoranda em Antropologia (FFLCH-USP). Autora dos livros Orixás no Terreiro Sagrado do Samba e Exu Mulher e o Matriarcado Nagô, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico (2024).

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