Baku – A Conferência do Clima (COP) tem como uma das partes centrais as negociações feitas entre os países, seja para definir metas, acordos, ou mesmo pressionar para que determinada medida seja materializada. Entre as brasileiras que acompanham estes diálogos está a ativista Letícia Leobet, assessora internacional em Geledés Instituto da Mulher Negra.
As incidências de Leobet também foram feitas em junho em Bonn, na Alemanha, que funciona como uma pré-COP, e reúne diplomatas dos mais variados países como forma de dar continuidade aos assuntos e acordos que serão debatidos durante a COP. Por conta da menor presença de participantes, há a possibilidade de se construir um diálogo mais próximo com os diplomatas e mesmo com agentes da sociedade civil de outros países.
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O Geledés Instituto da Mulher Negra apresentou uma carta de recomendações para a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). No documento, a organização apresenta o conceito das Zonas de Sacrifício Racial, uma ideia de que o racismo determina regiões que vão sofrer de maneira mais aguda as mudanças climáticas e que pessoas negras estão mais presentes nessas áreas.
“A população afrodescendente está desproporcionalmente concentrada em zonas de sacrifício globais – regiões que se tornaram perigosas e até inabitáveis devido à degradação ambiental. Essas áreas podem ser mais adequadamente descritas como “zonas de sacrifício racial”, porque abrangem sobremaneira as terras ancestrais dos povos indígenas, assim como os territórios negros e periféricos que têm enfrentado os piores impactos das mudanças climáticas, o que intensifica a necessidade de medidas de adaptação climática que consideram as desigualdades raciais e territoriais”, diz o texto.
Geledés ainda se prepara para organizar um encontro de preparação para a COP30, que ocorrerá em Belém, Brasil, no ano que vem. A reunião do Instituto da Mulher Negra deve ocorrer em maio de 2025 e será uma oportunidade para dialogar com o Itamaraty sobre as estratégias do Brasil no encontro.
Diante de um aumento dos reflexos das mudanças climáticas, como as enchentes no Rio Grande do Sul e as secas nos rios da região Norte do país, a ativista ainda acredita na existência de uma hipocrisia do governo brasileiro e das demais nações para lidar com o problema.
“Há uma promessa em relação à adoção de políticas climáticas que sejam eficazes, mas a gente não consegue ver essa narrativa se concretizando na adoção de fato dessas políticas. E há uma descredibilização de um país que tem tentado se vocalizar como referência no que diz respeito ao enfrentamento das mudanças climáticas e que, por outro lado, tem presenciado e vivenciado situações como o Rio Grande do Sul e outras no seu território”, explica.
Em entrevista para a Alma Preta, Letícia Leobet detalhou o conceito das “zonas de sacrifício racial” e contou das estratégias utilizadas para que o Brasil possa reconhecer os afrodescendentes como protetores do meio ambiente e dos caminhos para pressionar que o país seja uma liderança global efetiva.
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Confira a entrevista na íntegra:
Alma Preta: Quais as estratégias de incidência de Geledés neste espaço?
Letícia Leobet: Uma das nossas principais estratégias junto à diplomacia brasileira tem sido o envio de recomendações. Então a gente faz toda uma análise dos documentos que estão sendo negociados na COP, das principais discussões que estão acontecendo.
E essas recomendações a gente envia tanto para o Itamaraty, quanto para o poder executivo e os ministérios que estão envolvidos no processo.
AP: Qual o retorno vocês receberam depois do envio das recomendações?
LL: A gente não recebeu um retorno direto, uma resposta de e-mail ou algo assim, mas isso tem fortalecido a nossa interlocução com o Itamaraty. Participamos recentemente de uma conversa que o Itamaraty realizou com a sociedade civil e questionamos o Estado brasileiro de quais as estratégias que eles estão utilizando para conseguir incluir essas demandas que apresentamos.
AP: No ano passado você acompanhou os espaços de negociação como observadora. Vocês seguem com a mesma estratégia?
LL: Segue a mesma estratégia. No ano passado, acho que tinha uma questão diferente, que era o fato de que a gente estava se aproximando da diplomacia brasileira. Era o nosso primeiro contato.
Esse ano, a gente tem uma coisa diferente do ano passado, que é o fato de ter participado de Bonn, na Alemanha. Bonn é a pré-conferência, pré-COP, que a gente chama assim. E que dá pra gente, também, um corpo a corpo ainda mais intenso, mais próximo com a diplomacia brasileira.
A gente também utiliza essas recomendações para fazer articulação com organizações da sociedade civil de outros países e subsidiar a diplomacia de outros países.
AP: A possibilidade de incidência mais concreta é por meio desse trabalho de bastidor com a diplomacia brasileira?
LL: Isso. Basicamente, o que a gente tenta fazer é incluir linguagem. O que a gente quer é que estejam representados nos documentos de negociação questões que vão responder à agenda racial.
Um exemplo bem concreto. Se a gente está falando de indicadores globais de adaptação, aí o nosso tensionamento é de que maneira esses indicadores vão contemplar as questões de raça, gênero e território.
Dando um exemplo bem de bastidores mesmo, na COP28, e isso é muito a partir da relação que a gente foi construindo com o Itamaraty, a diplomata que estava negociando sinalizou para a gente a oportunidade de a gente fazer uma proposta de texto. ‘O texto é esse, o que vocês sugerem?’. E aí a gente incluiu na linguagem o que nos contemplava, questões de raça, questões relacionadas à comunidade afrodescendente. Enviamos e ele foi lá e fez a proposição.
AP: E como é o trabalho de acompanhar as negociações? Como é a dinâmica das negociações?
LL: A base das negociações é um texto. Existe um texto elaborado pelos facilitadores daquela agenda. Então, por exemplo, na agenda de gênero, uma das facilitadoras é da República Democrática do Congo e o outro é da Noruega. Eles elaboram um texto base, um texto inicial, e oferecem para os Estados-membros, para que eles possam, a partir desse texto inicial, fazer suas recomendações.
Ou não, o contrário, que é o que a gente mais vê acontecendo, que é rejeitar a linguagem. E aí entra o processo negociador em relação a essas linguagens. Tem muitas coisas relacionadas a questões de implementação, tem muitas coisas que são novas, tem coisas que se discutem no âmbito do financiamento, tem coisas que se discutem no âmbito da responsabilização dos países em relação à questão das emissões, ou à questão do financiamento.
AP: Até o que vocês já acompanharam em Bonn, quais são as expectativas que vocês têm para as negociações deste ano?
LL: É extremamente delicado o cenário que a gente tem. A minha impressão é que tudo ainda é muito abstrato. A definição desse novo valor do financiamento e os critérios que estão por trás disso, que vai ser a principal discussão sobre financiamento, está tudo muito incerto.
E é uma área concreta no que diz respeito a influenciar todas as outras agendas. O financiamento vai influenciar a adaptação, vai influenciar a transição justa.
AP: Como o Geledés tem olhado, e talvez outras organizações negras, para a COP30 em Belém, no Brasil?
LL: A diplomacia brasileira inclusive tem olhado para a sociedade civil e falado, ‘calma, vamos primeiro passar pela COP29 e depois a gente vai para a COP30’. Mas a gente sabe que não é isso e que com certeza muitas articulações já precisam ser feitas desde já.
Geledés está organizando um evento pré-COP, que vai acontecer em maio de 2025, que vai ser justamente um evento de alto nível para fazer articulação com representantes da ONU, diplomacia de vários países que são signatários, sociedade civil, enfim, e outros atores que sejam relevantes nesse processo para a gente discutir. E acho que uma dessas discussões é justamente de que maneira o Brasil pretende se posicionar.
Eu acho que tem uma questão muito importante sobre isso, que embora seja uma COP no Brasil, é uma COP da América Latina e é uma COP do Sul Global, que traz a oportunidade da vocalização das demandas, especificidades e soluções alternativas pensadas a partir do Sul Global, pensadas a partir da América Latina.
AP: Vocês cunharam um termo nos documentos para a ONU que são as zonas de sacrifício racial. O que são essas áreas?
LL: As zonas de sacrifício racial são uma maneira de destacar o racismo ambiental. Então, a gente está falando especificamente de territórios ocupados por populações historicamente vulnerabilizadas, historicamente discriminadas e que acabam se tornando zonas em que, a partir da dimensão das mudanças climáticas, vão impactar essas comunidades de uma forma específica, de uma forma diferente.
Então, a utilização desse conceito de zona de sacrifício racial está muito vinculada a essa ideia de visibilizar o conceito de racismo ambiental e explicitar essas disparidades no que diz respeito ao impacto das mudanças climáticas.
E esse conceito também traz um pouco esse tensionamento da perspectiva de justiça climática a partir da necessidade da incorporação de justiça racial. A gente tem enfatizado que não existe justiça climática sem justiça racial, sem justiça de gênero.