O governo federal entregou ao Congresso, na última quarta-feira (23), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, que pretende reformular a atuação das forças de segurança no Brasil. O texto propõe maior integração entre União, estados e municípios, por meio de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) com status constitucional.
A PEC foi apresentada em cerimônia no Palácio do Planalto com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil).
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Além da criação formal do Susp, a PEC propõe a inclusão das guardas municipais como forças de segurança reconhecidas constitucionalmente, amplia as atribuições da Polícia Rodoviária Federal — que passaria a se chamar Polícia Viária Federal — e estabelece a criação de corregedorias e ouvidorias autônomas. Também insere o Fundo Nacional de Segurança Pública no texto constitucional, buscando assegurar financiamento contínuo ao setor.
Fórum de Segurança Pública cobra integração ampla
Em nota oficial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmou que a proposta representa um passo relevante na construção de um sistema mais coordenado. A entidade elogiou a previsão de ouvidorias e corregedorias independentes, a uniformização de protocolos entre as polícias e a presença da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
O Fórum também destacou a inspiração no modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para propor um arranjo federativo na segurança pública.
Contudo, o próprio órgão alertou que a PEC, embora importante, não é suficiente para resolver os problemas do setor. A entidade defende que o enfrentamento ao crime organizado e à violência contra a mulher também deve envolver instituições como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Receita Federal, Banco Central e Anatel, com ações integradas além das forças policiais.
“PEC da Segurança reforça a guerra”
Em entrevista à Alma Preta, o historiador e cofundador da Iniciativa Negra, Dudu Ribeiro, criticou a proposta por aprofundar um modelo que, segundo ele, faz parte de um “discurso de reforço da guerra”. Segundo ele, a proposta se organiza a partir da intensificação da lógica bélica entre forças policiais, ao invés de promover uma “perspectiva mais ampla de produção de paz”.
O especialista afirma que o foco da proposta deveria ser a prevenção de conflitos e a proteção da vida: “É necessário partir da perspectiva de construir mecanismos que evitem os conflitos, que reduzam o fluxo cruzado que recai sobre a população brasileira e que protejam, prioritariamente, a vida”, aponta. Para Ribeiro, a PEC desconsidera essa necessidade ao reforçar estruturas militarizadas de policiamento.
Ele também alertou para os riscos de incorporar as guardas municipais ao sistema como forças armadas. “A inclusão da Guarda Civil no rol da segurança pública não nos ajuda, a priori, justamente porque já temos guardas atuando com uma lógica militarizada — e esse é um dos piores problemas que enfrentamos na segurança pública”, avaliou.
Para Dudu Ribeiro, a proposta da PEC reforça um modelo de segurança que remonta às origens do Estado brasileiro, fundado sobre a repressão aos povos negros e indígenas. “O inimigo declarado na fundação do Estado brasileiro tem sido a população negra e os povos originários. Corremos, assim, o risco de ampliar ainda mais o aparato de guerra contra essas populações.”
Exclusão da sociedade civil
Dudu Ribeiro, que também integra a Rede de Observatórios de Segurança da Bahia, criticou a ausência de participação da sociedade civil organizada no processo de formulação da PEC.
“Infelizmente, as organizações comunitárias, os movimentos negros, de juventude, e os movimentos que historicamente têm estado na linha de frente da proteção da vida do povo negro e de outras populações violentadas — não têm sido convocados para o debate.” Ele afirma que a discussão tem sido restrita a gabinetes e distante das demandas reais da população.
Para o historiador, é fundamental que o governo reveja a condução do debate e viabilize participação efetiva da sociedade civil, tanto na PEC quanto na formulação de uma nova política de segurança pública.
“É fundamental que o governo aponte caminhos reais para a participação efetiva da sociedade civil organizada — não apenas na construção da PEC, mas na edificação de um processo pautado na cultura de paz”, destaca.
Sistema prisional permanece intocado
Outra ausência reparada pelo historiador, é de qualquer proposta na PEC que trate do sistema prisional. Ainda destacou que esse campo permanece intocado no debate. Para ele, é necessário pensar a atuação da política penitenciária dentro da lógica da guerra, onde a prisão serve para inflar e fortalecer a atuação de organizações ligadas ao tráfico de drogas e armas.
Segundo Ribeiro, o sistema prisional brasileiro opera de forma a consolidar o encarceramento como política central, desconsiderando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou o estado de coisas inconstitucional nas prisões.
“Precisamos refletir sobre o sistema prisional a partir, primeiro, da declaração já feita pelo STF sobre o estado de coisas inconstitucional, e partir para a sua revisão imediata — a revisão do papel da prisão no Estado brasileiro”, disse.
Ele ainda defende o esvaziamento das prisões como passo necessário para a pacificação social e para o acolhimento das pessoas vitimadas pelo próprio Estado dentro do cárcere.
Expectativa e tramitação
O texto da PEC começará a tramitar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa, Hugo Motta, prometeu “celeridade e diálogo”, enquanto o presidente Lula afirmou que a proposta busca apoiar os estados no enfrentamento ao crime organizado, sem interferir em suas autonomias.
A proposta ainda precisa ser aprovada em dois turnos nas duas Casas Legislativas, com apoio de ao menos três quintos dos parlamentares em cada votação. Até lá, especialistas e movimentos sociais seguem pressionando por alterações que ampliem a participação popular, rompam com o modelo militarizado e promovam uma política de segurança orientada à defesa da vida.