“Negro só se for na cozinha do R.U., cotas não!” Era o que dizia uma pichação feita em um muro próximo à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no ano de 2007. Naquela época, a universidade discutia a implementação da política de ações afirmativas no processo seletivo de ingresso na instituição, o que garantiria o ingresso de estudantes oriundos do ensino público e autodeclarados negros ou indígenas.
Numa reunião histórica realizada em 29 de junho de 2007, o Conselho Universitário, sob pressão da comunidade e dos movimentos negro e indígena, aprovou o sistema de cotas no vestibular, inaugurando um novo momento na universidade mais tradicional do estado.
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Para quem nunca circulou pelo campus Centro da UFRGS, onde fica a Reitoria da instituição e que foi principal palco de toda a mobilização ocorrida naquele ano, é interessante situar. O campus fica na região central de Porto Alegre, e por ali circulam principalmente os estudantes das faculdades de Educação, Engenharia, Arquitetura, Economia e Direito, cujas sedes são no campus. Mas não só os alunos. Passar pelo espaço da instituição é um movimento natural da comunidade que circula pela região e precisa chegar ao centro da capital gaúcha. Entrar na UFRGS, porém, sempre foi um movimento diferente, mais complexo. Pois embora os portões estivessem abertos ao passeio de todos, os muros que sempre cercaram aquele ambiente são invisíveis e muito altos. Para alguns, intransponíveis. Um lugar que está ali, perto de todos, mas não ao alcance de todos. Reflexo do próprio Brasil, país retalhado por muitos lugares próximos, porém distantes.
É nesse cenário onde as pessoas entram na universidade pública, paradigmático na mudança social pela qual o Brasil passou nas últimas décadas, que o escritor Jeferson Tenório, ambienta o seu quarto romance, “De onde eles vêm” (Companhia das Letras, 2024). Celebrado pelo seu romance anterior, o premiado “O avesso da pele”, que conquistou leitores no Brasil e no exterior e tensionou a veia censora da direita brasileira, Tenório conta a história com o olhar de uma testemunha ocular: ele próprio foi um dos primeiros beneficiários da política de ações afirmativas na universidade, e é no campus onde ele estudou Letras que Joaquim, o protagonista do romance, estuda e conhece um ambiente de dinâmicas específicas e restritivas, muitas delas estabelecidas tendo em mente uma camada específica da população.
Apostando numa prosa ágil e enxuta, muitas vezes sentenciosa, distanciando-se do processo emaranhado de elaboração do luto que marcava a voz narrativa de seu último romance, Tenório conta a trajetória de Joaquim, jovem negro que tem que equilibrar a vida de estudante de Letras com uma vida externa à universidade que parece jogar todos os dados possíveis pra impossibilitar a permanência dele nos estudos.
Órfão e desempregado, morador da região metropolitana da capital gaúcha, ele divide com a tia os cuidados com a vó, já idosa e acamada. Em capítulos curtos, que possibilitam e incentivam uma leitura rápida e fluida do texto, o autor constrói uma trama de personagens que deixam o protagonista num estado constante de tensão. A distância que Joaquim percebe entre si próprio e seus colegas; os amigos de infância que não estão na universidade, vivendo distantes das discussões propostas pela intelectualidade; a própria postura paternalista da academia que, de longe, acredita entender de tudo e de todos.
Todos esses aspectos são apresentados por Tenório ao longo da obra para evidenciar como a jornada de Joaquim — que se vê como um não pertencente tanto ao espaço da universidade, quanto aos espaços de vivência fora dela, transitando de entre um lugar caótico e outro — é uma jornada tensa de desvios: desviar-se dos entraves institucionais da academia, desviar-se das violências físicas e simbólicas da realidade da vida brasileira, desviar-se de um futuro de trabalho subalternizado e sem perspectiva de fim como o da tia e da avó. Todos esses, entraves muito bem estabelecidos pela dinâmica social e racial de um país fundado na violência e amadurecido na desigualdade.
Mas embora Tenório construa esse panorama com uma qualidade que cria uma sólida coluna vertebral para o romance, principalmente a partir das relações de Joaquim, a ambição do autor com “De onde eles vêm” parece não ser a de traçar um raio-X dos embates que a chegada deles promoveu no espaço acadêmico, de modo que os polígrafos, os horários das aulas (impeditivos para a conjugação paralela dos verbos estudar e trabalhar), o valor das passagens do transporte público, o pagamento do restaurante universitário, e mais algumas das muitas instâncias da vida universitária não são o que mais interessam ao autor e a Joaquim, narrador em primeira pessoa de sua jornada.
Tanto que alguns personagens que surgem ao longo do texto acabam tendo passagens curtas que, no cenário geral do romance, acabam se justificando quase como um check para deixar estabelecido que a discussão do embate que a entrada dos alunos cotistas foi levantada. No fundo, é a relação de Joaquim com a literatura que dá tônus à silhueta desenhada por Tenório é a percepção de que está no ato literário, leitura e escrita, a sua razão de ser enquanto um indivíduo presente no mundo, que mais importa.
É interessante pensar como a figura que Joaquim, um jovem pobre de pele retinta, é uma figura complexa, representando, tanto no campo acadêmico quanto no campo literário, um elemento estranho, uma matéria fora do lugar, algo para o lado de lá, sempre o lado de fora, daqueles muros invisíveis e muito altos. É bonito ver como a sua persistência na leitura, seu afeto e admiração pelos livros, pela forma e pelo conteúdo, seu fascínio por Joyce e Baldwin, é também, assim como entrar na universidade, uma forma de escrever novos parágrafos — e porque não um novo final — à história única imaginada — e até certo ponto imposta — às pessoas negras desse país.
Se há dúvidas — muito justificadas, aliás — de que a literatura pode ter um impacto na realidade, o texto de Jeferson Tenório nos ajuda a pensar que ela pelo menos pode ser entendida como uma ferramenta paradigmática de encontros. No caso de Joaquim, um encontro com seu próprio sonho e com a possibilidade de romper uma história fadada à uma violenta e inesgotável repetição. Num momento difícil, de afastamento de tudo o que Joaquim entende como um ponto de virada de sua história e de seu futuro, são as palavras de James Baldwin em “Terra estranha” que ele carrega como uma lembrança de suas próprias possibilidades e de sua própria esperança.
É justamente a obra-prima de escritor estadunidense, negro e gay, cuja abertura apresenta Rufus, um homem negro e artista que vaga por uma Nova York marcada pela solidão e pelos sonhos acabados, que Joaquim utiliza como uma âncora, que o puxa para o que tem de mais íntimo nele. Um tour-de-force que nos faz pensar na materialidade da vida, e em como essa materialidade brasileira, de uma vida negra brasileira, é capaz de matar sonhos na raíz, e que faz soar estranha a sentença de que o sonho de um jovem pobre de pele retinta é ser escritor. Um livro sobre uma mesa de atendimento de telemarketing é, a partir das palavras de Jeferson Tenório, uma imagem poderosa.
“De onde eles vêm” é mais um parágrafo na trajetória do autor enquanto um criador de histórias de leitores e sobre como a literatura e a arte são, também, atravessamentos poderosos na vida e nas subjetividades das pessoas negras. Se é de toda a degradação e de todo o barulho do mundo que vêm as palavras, as frases e as histórias, podem também os narradores surgirem de todos os lugares, e não apenas dos lugares já estabelecidos como fonte de tudo. Interessante pensar que, assim como foi um dos primeiros cotistas a se formar na maior universidade pública gaúcha, o nome de Jeferson Tenório também marca presença nas listas de escritores que, cada vez mais, buscam pluralizar as narrativas contadas na literatura brasileira.
A obra é um importante exercício de Tenório em construir personagens e cativar leitores, falando sobre leitores. E surge num momento em que as discussões sobre identidade e desigualdade no contexto brasileiro surgem em camadas cada vez mais profundas e ramificadas, na academia e na literatura. É difícil dizer de onde eles vêm, pois eles são muitos, todos diferentes entre si. Mas o que sabemos é que eles hoje escrevem — e muito! — e em todo o mês de novembro se reúnem sob o prédio da Reitoria da UFRGS para tirar a já conhecida foto dos alunos negros e negras da universidade. Não mais passar por esses espaços, acadêmico e literário, mas entrar neles e estar ali, pavimentando novos caminhos e contando novas histórias.