“Sou Gessiane, sou do Quilombo da Rasa, e essa é a minha identidade étnico-racial, da qual tenho muito orgulho”. É assim que Gessiane Nazario, pedagoga, escritora e uma das cofundadoras do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) se apresenta. Mulher negra e quilombola, Gessiane carrega no olhar e na voz a força de sua ancestralidade, moldada nas terras da Rasa, em Armação dos Búzios, no Rio de Janeiro.
Desde cedo, ela entendeu que sua luta extrapola as fronteiras individuais: é uma batalha coletiva por emancipação e cidadania. “Aqui, aprendi com os mais velhos quem eu sou. Minha ancestralidade me foi ensinada com histórias, saberes e resistências que moldaram minha identidade. Hoje, como professora, busco resgatar essas memórias que foram apagadas”, conta.
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Gessiane acredita que a educação quilombola não é apenas um ato de ensino, mas um processo político de resistência. Com mestrado e doutorado dedicados a pesquisar a educação escolar quilombola, ela reforça a importância de conectar o aprendizado formal à realidade dos territórios.
“A escola precisa ser um espaço de fortalecimento da identidade étnica e política quilombola. É no território que vivemos e mantemos nossos conhecimentos ancestrais. Não podemos perder isso”, diz.
A educadora destaca desafios no fortalecimento da educação quilombola: a urbanização desordenada e os projetos de especulação imobiliária que ameaçam a memória e a continuidade das comunidades. “A urbanização trouxe desafios enormes. Lutamos para que a escola reflita nossa realidade e tenha um corpo docente quilombola. Isso exige articulação política e sensibilidade das gestões públicas”.
Outro desafio deste fortalecimento é a desconstrução do modelo tradicional de ensino eurocêntrico. Gessiane aponta que o sistema educacional é baseado em conteúdos que não valorizam o não-branco. “Agora como professores, temos o desafio de formar as novas gerações para que elas conheçam suas histórias e se sintam orgulhosas delas”.
Literatura infantil quilombola: representatividade e memória
Gessiane leva à literatura as histórias e vivências de sua comunidade. Seus livros infantis são uma extensão de sua luta pela valorização da memória quilombola e da representatividade negra. “A literatura infantil brasileira nasceu racista,e nosso papel é desconstruir isso. Precisamos de narrativas que reflitam a realidade das crianças negras e quilombolas”.
Uma das estratégias que Gessiane utiliza para ensinar e resgatar a memória quilombola é a contação de histórias, prática que aprendeu com a avó e a tia. “Contar nossas histórias é um ato de resistência e memória”, explica. Para ela, a literatura é um veículo poderoso para que as novas gerações se reconheçam em sua própria história, e ela própria entrou para o mundo literário ao lançar um livro que narra as vivências de seu povo.
A escritora aponta como muitos livros ainda perpetuam estereótipos racistas, mesmo ao tentar representar a estética negra. “Há um imaginário racista que desumaniza e animaliza crianças negras nas ilustrações. Isso precisa ser desconstruído para que nossas crianças se vejam representadas com dignidade e orgulho”.
Em sua própria obra, Gessiane buscou garantir que as ilustrações e as histórias representassem com precisão a estética e os valores quilombolas. Para ela, a literatura deve ser um espaço de reafirmação das origens e das lutas do povo quilombola. “É preciso muito cuidado na representação da estética negra, porque muitos livros infantis ainda trazem figuras que não valorizam a criança negra, criando um ambiente de exclusão”.
Aquilombar a literatura e a educação
Para Gessiane, o movimento de “aquilombar” a educação e a literatura é essencial para romper com o apagamento histórico e garantir às crianças negras o direito à identidade e à memória.
“Nós, quilombolas, precisamos ser os narradores das nossas histórias. É a partir da memória que construímos o futuro. Nosso desafio é garantir que as próximas gerações cresçam com orgulho de quem são e do território que ocupam”, conclui.
Em sua prática pedagógica, Gessiane observa que as crianças de comunidades periféricas muitas vezes perdem o interesse pela leitura porque os livros não falam sobre suas realidades. “Precisamos garantir que nossas crianças negras não apenas sejam representadas, mas também tenham acesso aos livros que refletem suas realidades“, afirma. E é nesse sentido que ela destaca a importância de uma literatura inclusiva e acessível.
O que no momento não é uma realidade, já que os custos seguem afastando a literatura da população economicamente vulnerável. “Embora tenhamos avançado na produção de literatura representativa, o livro ainda é caro e inacessível. Precisamos de políticas públicas para garantir que todas as crianças tenham acesso a esses materiais”.
Histórias que transformam
Um dos momentos mais marcantes na trajetória de Gessiane foi o lançamento de seu livro “Aspino e o boi“, inspirado nas memórias de seu avô. “Quando entreguei o livro para ele, ele chorou. Foi emocionante perceber o impacto que registrar nossas histórias pode ter para os mais velhos e para as crianças”.
Gessiane acredita que contar histórias é um ato de resistência e transformação. “As narrativas dos nossos avós, como a sabedoria sobre as marés e as fases da lua, nos ensinam sobre resiliência. Quando crianças conhecem essas histórias, elas crescem com um senso de orgulho e pertencimento”.
Para o futuro, Gessiane pretende seguir escrevendo e lutando por uma educação que valorize a identidade quilombola e afro-brasileira. “Ainda há muito a ser feito”, afirma, determinada a continuar sua caminhada. Ela acredita que a literatura pode ser um caminho poderoso para transformar a sociedade e garantir que as histórias e culturas quilombolas não sejam esquecidas. “Estamos criando literatura e aquilombando o espaço da literatura infantil brasileira”, conclui.