Pesquisar
Close this search box.

Não é para todos? como os aplicativos de relacionamento podem ser excludentes para pessoas negras

Estudos científicos revelam que os apps de relacionamento não mantém a régua da igualdade no que diz respeito às preferências para um encontro; pessoas negras que já usaram essas feramentas falam a respeito

Interface de aplicativo com uma mulher negra, em foto genérica, sendo negada como pretendente em um aplicativo de relacionamento

Foto: Ilustração: Vinicius de Araújo

5 de abril de 2022

É entre o “não” e o “gostei” que a comunicadora Fernanda*, 23 anos, avalia quem são as pessoas que – com uma cartela reduzida de fotos e uma biografia resumida em poucos caracteres – pode convencê-la de engatar em uma conversa e, quem sabe, acabar em um “date” (encontro).

Desde a adolescência, no Recife, disposta a conhecer pessoas novas, a jovem reserva parte do seu tempo para aprovar ou não perfis que lhe interessam, mas, até então, não encontrou seu par. Uma situação que pode levantar a discussão de como os aplicativos de relacionamento podem ser excludentes para pessoas negras.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Sociável em sua profissão e nos momentos de lazer, a jovem conta das suas percepções ao longo do uso dos aplicativos que, mesmo sendo ferramentas que propõem a quebra de estruturas sociais e viabilizam uma comunicação com menos hesitações, parecem não ser tão eficazes para a construção de afetividade além da sua família e amigos próximos.

Para ela, através da sua educação racial, aprendida no dia a dia, a popularidade dos aplicativos parece não ser sinônimo de mais chance de encontrar uma pessoa companheira e, sim, mais possibilidades de segregação por causa da cor de pele.

“Antigamente, não conseguia entender quais eram os critérios que me diferenciavam das minhas outras amigas. Mesmo compartilhando dos mesmos ideais, do humor e até do estilo parecido de roupas que usava e os eventos que a gente frequentava, eu sempre era a que menos conseguia marcar encontros ou, até mesmo, ir além de um primeiro contato. Só depois que fui compreender que existia uma padronização dessa procura, uma busca de um perfil o qual eu não pertencia e não gostaria de tentar pertencer”, conta.

Fernanda entrou em aplicativos de relacionamento para tentar de forma mais rápida e objetiva encontrar perfis que dialogassem com o dela. Bastou pouco tempo para entender que ali, assim como no vínculo social que estabeleceu desde a adolescência, se tratava de um retrato do que já sentiu na pele só que, naquele momento, através de um meio virtual. 

“Parecia uma reprodução do que eu vivia desde a juventude, só que de uma forma mais direta. Eu dava ‘gostei’, ficava na expectativa do retorno, mas, na maioria das vezes me vi frustrada ao desejar perfis que, até então, eram sinônimos de alcançáveis por mim. Hoje, mesmo sem entender se há uma tendência do algoritmo em me mostrar perfis que são mais quistos pelos usuários em geral, me vejo mais criteriosa e tentando, aos poucos, demonstrar interesse com quem, assim como eu, não se encaixa nesses padrões que são postos para gente como inalcançáveis”, desabafa.

O desejo tem um padrão?

Estudos científicos já comprovaram que a tecnologia pode ser, sim, uma aliada do racismo nos aplicativos de relacionamento. Os algoritmos e até o design dessas ferramentas podem interferir na escolha das pessoas, fortalecendo a construção de uma padronização do desejo. Um campo minado que pode unir expectativa à rejeição, afetando a autoestima de pessoas negras. 

Um estudo realizado pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, concluiu que determinados aplicativos de relacionamento podem apresentar padrões discriminatórios, principalmente no que diz respeito à raça. Para os pesquisadores, os aplicativos de encontros não deveriam dispor de filtros ou mecanismos que permitam remover pessoas diferentes do gosto já pré-estabelecido.

A pesquisa aponta que a ação de encontrar alguém pelo acaso, uma proposta destes aplicativos – na teoria – pode ser perdida quando as pessoas conseguem estabelecer uma relação de “filtragem” dos perfis. Os estudiosos reiteram que, mesmo que as preferências sejam subjetivas, a cultura de buscar um ideal padronizado de “alguém para namorar”, por exemplo, podem ser fortalecidas pelos aplicativos, responsáveis por moldar, em seus funcionamentos, as decisões afetivas.

Como um exemplo, o levantamento da Universidade Cornell revela que homens e mulheres negras têm dez vezes mais chances de iniciar uma conversa ou enviar uma mensagem para pessoas brancas do que o contrário. No caso do Tinder, existem estudiosos da tecnologia que culpabilizam a escolha do algoritmo utilizado entre as problemáticas que fortalecem a discriminação. Um dos que já foram utilizados é o chamado “101”, responsável por colocar em evidência pessoas que tenham mais tempo online na plataforma. 

A tecnologia aliada à programação desses sistemas, segundo o estudo, realiza uma filtragem colaborativa também, que funciona com base em escolhas anteriores, de acordo com o gosto de cada perfil. O algoritmo prevê novas preferências, o que pode reduzir as chances de tipos específicos de perfil serem mais divulgados. Com isso, a ferramenta pode, também, promover alguns perfis mais do que outros.

Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, a jornalista baiana e “pesquisadora do amor”, como costuma se apresentar, Lorena Ifé, diz acreditar que os aplicativos de relacionamento já conhecidos endossam à exclusão ou a preferência maior por corpos não-negros.

“A maioria são aplicativos tipo jogo de baralho, que você descarta a pessoa. Para nós, pessoas negras, o descarte já é uma realidade em várias esferas sociais. O amor nunca foi pauta para as nossas vivências, muitos de nós acreditamos que é algo fútil e desnecessário, sendo lutamos todos os dias pela nossa sobrevivência. Meu maior sonho é investir em um aplicativo de relacionamento exclusivo para pessoas negras”, pontua.

A ideia de criação de um “app” realizado por Lorena parte de um projeto que já rende há cinco anos, o “Afrodengo”, um grupo no Facebook com mais de 54 mil pessoas e que tem como foco principal a paquera e a busca por “dengo negro”, como ela pontua. Destinado exclusivamente a pessoas negras, o projeto é definido pela jornalista como um espaço de resgate de identidade e fortalecimento dos laços afroafetivos. 

O qur motivou Lorena a criar o grupo foi o livro “Vivendo de Amor”, de bell hooks, além de sua vivência, que trouxe a necessidade de preencher uma lacuna de afetividade não só dela, mas coletiva. 

“Ao utilizar aplicativos de relacionamento, percebi uma baixa diversidade de pessoas negras. Os perfis eram os mesmos, pessoas brancas, malhadas. As poucas pessoas negras que tinham acabava sendo o mesmo match entre minhas amigas negras, por exemplo. O meu principal questionamento era de que como estava inserida numa cidade como Salvador, que tem 80% da sua população negra e não via essa diversidade nos aplicativos”, descreve.

Lorena conta ainda que ao seu redor já ouviu de pessoas negras muitas queixas sobre a  falta de diversidade e aplicativos que não atravessavam as questões raciais. Para resolver, ela decidiu suprir a dor própria e da comunidade negra que a cercava. O “aquilombamento” gerou bons frutos e desabafos nas redes. 

Um dos resultados mais gratificantes, para a jornalista, é a tecnologia feita por e para pessoas negras. que retira, aos poucos, o estigma de que “o amor não é para gente”, como diz a jornalista.

Leia também: Afroafetividade: entre a idealização e o amor real

Reeducação do corpo negro em aplicativos

A psicóloga pernambucana Raphaella Maia, especialista em Sexologia pontua que é preciso compreender como corpos negros são levados a construir os seus desejos e a se projetarem.  Segundo a profissional, antes da compreensão sobre afetividade, sexualidade e sensibilidade,  é necessária uma reflexão identitária antes de procurar, em espaços como os aplicativos, encontros afetivos. 

“Acredito que é importante que pessoas negras reflitam, antes de tudo, suas identidades, o que as compõem, até como forma de se entender  o que e como querem na afetividade. É aquele entendimento que chamamos de ‘tornar-se negro’. Só assim podemos pensar como construir vínculos afetivos e sexuais, uma vez que nossos corpos são hipersexualizados e privados de um afeto real, aqueles que não partem apenas do desejo pelo corpo”, explica. 

Para a psicóloga, dentro dos aplicativos a primeira barreira a ser reavaliada é o processo de como se lida com a autoimagem, desde a escolha das fotos que serão expostas e “avaliadas”, curtidas ou não pelos outros usuários e como se lida com a insegurança e os questionamentos posteriores.

O processo de reeducação pode ser seguido sem perder o medo de como se portar, sem esconder a real identidade ou fortalecendo processos que dialogam com o apagamento dos traços da cultura negra a fim de aceitação.

“É importante tomarmos segurança sobre essas questões pela simples constatação de que, quando for o momento de ir à procura de outras pessoas, dentro desses espaços, devemos ter a consciência de que vamos, sim, lidar com muitas pessoas brancas, mas isso não quer dizer que não daremos ‘match’ ou ‘certo’ com ninguém. Precisamos deixar de lado a busca pelos ditos perfis ‘inalcançáveis’ e trabalharmos o medo de não sermos escolhidos. O foco é nos perguntarmos: como estamos buscando nossos afetos enquanto pessoas pretas?”, pontua. 

Ainda de acordo com a profissional, é preciso entender os aplicativos como ‘leques’ de possibilidades de conhecer pessoas novas e também como redes que, se não houver preparo e autoconhecimento prévio, podem causar adoecimento mental. 

“Uma coisa que nos falta hoje enquanto pessoas negras é a lucidez. Lucidez enquanto consciência do que nós busc amos, o que queremos e quais as formas que propomos nossos corpos a estar, escolher, ocupar, sejam espaços, situações ou relações. Isso também vale sobre os usos de aplicativos tradicionalmente conhecidos”, conclui.

IMG 6036Imagem: Vinicius de Araújo/Alma Preta Jornalismo

Os ‘matches’ pela afroafetividade

Juntos há um ano e seis meses, o residente em nutrição Luiz Ícaro e o estudante de psicologia Hallysson Deleon, ambos com 27 anos, são exemplos de que os aplicativos de relacionamento também podem ser ponte para um trajetória de companheirismo e de identificação. Os dois, homens negros, afirmam que o encontro funcionou como um processo de cura e autoconhecimento desde quando engataram uma conversa extensa pela primeira vez.

Luiz revela que usava, entre idas e vindas, aplicativos desde os 23, mas não acreditava na possibilidade de ter um relacionamento duradouro e conta que, quando mais novo, um homem negro não fazia parte do seu ideal enquanto pessoa com quem gostaria de casar e construir junto. 

“Sempre ficava com pessoas brancas, até por não ter, às minhas vistas, quando era mais novo, mais pessoas negras nos espaços ou em aplicativos. Sobre me relacionar e ter um companheiro, ainda era mais complicado. Percebi que as conversas comigo não rendiam, não existia um interesse de sustentar uma conversa, o que me faz acreditar que dos aplicativos eu não conseguiria partir para um relacionamento duradouro”, conta.

Há pouco mais de dois anos, os dois passaram de possíveis pretendentes a companheiros que já chegaram a passar sete horas de ligação ao telefone. Hoje, Luiz Ícaro diz que o que o conquistou foi o olhar do companheiro para além do superficial apresentado no “app”. 

“Nos olhamos para além do que era apresentado e daquelas qualidades ou posições sociais que são colocadas nos aplicativos. Isso me cativou e me fez ficar interessado ainda mais em seguir com o relacionamento. Atualmente, nós vivemos uma relação que segue de compreender os nossos traumas e limitações, muitas delas vindas de relações que já passamos”, finaliza. 

História semelhante é a da escritora e jornalista Izabella Portella e do estudante de enfermagem Marcos Emanual. Ambos têm 29 anos e estão juntos há quatro. Marcos é o primeiro namorado de Izabella e ela é a primeira mulher negra com quem ele já se relacionou. 

“Sempre fui uma pessoa que tinha minhas paixonites, mas não levava muito a sério, exatamente pelo fato de não me identificar com ninguém, principalmente nos aplicativos. Sempre achei que um relacionamento só surgia de uma identificação muito grande com uma pessoa, não que fosse igual a mim, mas que as ideias fossem parecidas. Aí que encontrei Marcos, com quem pude conversar bastante e, depois do segundo encontro, já começamos a namorar”, conta Izabella.

Izabella revela que a identificação com Marcos a fez pensar que não poderia demorar para firmar um compromisso. Ela trabalhava em uma campanha política na época, o que ocupava a maior parte de seu tempo, e acreditava que, em três meses de trabalho que não pudesse dar atenção ou seguir com as conversas, Marcos, provavelmente, poderia estar envolvido com outra pessoa. 

“Vim de um histórico que saí pouquíssimas vezes com pessoas de aplicativos. Tinha medo que pudesse acontecer algo, muito por esses golpes que a gente vê sendo noticiado, da violência também. Também sabia que as mulheres negras, geralmente, não são associadas ao compromisso. Por isso, muitas vezes eu só conversava pelas redes, nada além disso. E aí eu saí, durante todo o meu tempo utilizando aplicativo, acredito que saí três vezes e o último foi Marcos”, lembra.

A identificação levou o casal a dar os próximos passos dentro da relação que escolheram. Ainda nos preparativos, os dois organizam o casamento, algo que, desde de 2017, só era visto pela página do Instagram idealizada por Izabella, a ‘Rede Social do Amor’, responsável por “aproximar corações”, sejam eles intra ou interraciais.

*Fernanda foi um pseudônimo utilizado a pedido da fonte para não identificá-la.

Leia também:Amor preto: é preciso ampliar o diálogo sobre bifobia e racismo

Leia Mais

Destaques

AudioVisual

Podcast

Cotidiano