Há 90 anos, em 24 de fevereiro de 1932, o Decreto nº 21.076 dava às mulheres brasileiras o direito ao voto. Conhecido como Sufrágio Brasileiro, o movimento buscava efetivamente que as mulheres tivessem os mesmos direitos eleitorais cedidos aos homens. No entanto, com o sufrágio feminino de 1932 não efetivou-se a inclusão de mulheres negras nas eleições, já que, de acordo com a decisão, apenas mulheres alfabetizadas poderiam votar e, em um Brasil pós-abolição, essa não era uma realidade para todas.
O professor de sociologia da Estácio São Paulo, Gleibe Pretti, explica que o Sufrágio Brasileiro possuia bastante semelhança com o movimento das sufragistas europeias e norte-americanas, que conquistaram o direito ao voto antes do Brasil.
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“Em virtude do contexto da escravatura, havia diversas dificuldades que impediam as mulheres negras de votar. No entanto, um protesto contra o voto das mulheres negras foi rechaçado pelas sufragistas brasileiras, para que as mulheres negras, sim, pudessem garantir esse direito”, explica o docente.
Na Constituição de 1934, a obrigatoriedade do voto foi estendida apenas às mulheres que fossem servidoras públicas. Somente em 1946, a obrigatoriedade do voto passou a ser para ambos os gêneros, sem distinção. E, apenas em 1985, esse direito foi ampliado aos analfabetos.
A socióloga e professora Najara Costa, ativista e ex-candidata à Prefeitura Municipal de Taboão da Serra pelo PSOL, destaca que a onda feminista, sob a lógica da hegemonia branca, não tratava das especificidades das pautas de luta das mulheres negras, que no Brasil, em 1932, viviam em situação de extrema dificuldade, sem qualquer política de integração, em uma sociedade que começava a se industrializar a partir da exclusão negra e incorporação da mão de obra de imigrantes brancos europeus.
“No entanto, é necessário afirmar que houve, sim, a participação de mulheres negras no movimento político pelo Sufrágio Brasileiro, embora tenhamos tido o apagamento sistemático dessas importantes vozes”, destaca.
Najara relembra que Almerinda Farias Gama foi uma dessas mulheres negras que lutaram no período sufragista, pois compôs a condição de delegada na eleição de representantes para a Constituinte – que seria aprovada em 1934 –, e foi candidata à deputada federal. Embora não tenha obtido êxito no pleito, Almerinda certamente abriu caminhos para a existência política de outras mulheres negras nos espaços de institucionalidade, de acordo com a professora.
“Outro grande exemplo deste contexto histórico foi Antonieta de Barros que, em 1934, foi eleita em Santa Catarina a primeira deputada estadual negra da história de nosso país. Anos mais tarde, precisamente em 12 de outubro de 1948, um projeto de Lei de sua autoria criaria o dia do professor”, completa.
A deputada Talíria Petrone (PSOL) pondera que as necessidades imediatas das mulheres negras durante o Sufrágio Brasileiro eram diferentes das mulheres brancas.
“Enquanto para as feministas brancas o objetivo era garantir o direito ao voto feminino, para as mulheres negras a luta era para garantir trabalho digno e comida na mesa. Mas também era para que toda a população negra tivesse os mesmos direitos que a população branca, nem que para isso fosse preciso enfrentar privilégios da outra parcela da população que já tinha acesso a mais do que o básico”, ressalta a parlamentar.
Por que Bertha Lutz e não Almerinda Farias?
Várias foram as tentativas sem êxito de emenda à Constituição e alteração da legislação eleitoral para conferir direitos políticos plenos às mulheres. Contudo, as sufragistas formaram a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Com a liderança da bióloga Bertha Lutz, as militantes do Sufrágio Brasileiro encontraram no senador Juvenal Lamartine um aliado na luta pelo voto.
A parceria foi duradoura, pois a bióloga acompanhava o político em seus deslocamentos. Junto com Carmem Portinho, Bertha aproveitava para fazer discursos, distribuir panfletos e dar entrevistas, sendo uma das figuras que marcam a conquista ao voto feminino no Brasil.
No entanto, a deputada federal Talíria Petrone traz uma reflexão sobre as razões que fazem de Bertha Lutz um dos rostos associados ao Sufrágio Brasileiro, enquanto Almerinda Farias, segundo ela, é apagada da história.
“Quanto se ouve falar de Almerinda e de sua contribuição para a luta pela conquista do voto feminino no Brasil? Quantas reflexões há em torno da foto de Almerinda depositando seu voto na urna durante a Assembleia Constituinte de 1933? Como representante classista, ela foi a única mulher a votar e a ser votada”, pondera a parlamentar.
“É muito simbólico que a mulher negra que teve participação de extrema importância nesse processo não tenha o reconhecimento merecido. Ou que o destaque tenha ficado basicamente em torno de Bertha Lutz, sem desmerecer sua importância, obviamente, mas problematizando o lugar que ela ocupava na sociedade daquela época. Assim como ela, tantas outras feministas brancas que não traziam as pautas urgentes das mulheres negras que trabalhavam desde sempre, que já faziam a roda do mundo girar”, complementa a deputada Talíria Petrone.
O professor Gleibe, no entanto, acrescenta que não só as mulheres negras foram historicamente colocadas em segundo plano quando o assunto era a participação política feminina no Brasil.
“Indígenas, nordestinas e pobres muitas vezes eram consideradas apenas ‘massa de manobra’. A primeira conquista foi dar às mulheres negras o direito ao voto. Logo em seguida é essencial salientar a importância dessas mesmas mulheres poderem ser candidatas”, ressalta o professor.
Candidatura feminina negra e a democracia
“Temos muitas referências para serem lembradas e exaltadas, mas também sabemos que ainda é muito pouco, considerando a proporção com os homens e até mesmo com as mulheres brancas que ocupam espaços na política. Temos ainda muito o que avançar”, defende Talíria Petrone.
Para a deputada estadual Mônica Francisco (PSOL), todavia, a mobilização negra e feminina na política nacional, apesar dos percalços que as mulheres negras enfrentam desde o Sufrágio Brasileiro, representam uma esperança: tanto em conquistar espaços de forma proporcional à sociedade, quanto para um futuro em que as próximas gerações, letradas racialmente, possam participar de maneira mais efetiva da democracia do Brasil.
“Enxergo a ascensão da mulher negra, sem descartar quem veio antes de nós, com esperança. É um avanço, ainda que haja muito o que se conquistar”, salienta a deputada estadual do Rio de Janeiro.
Mônica ressalta ainda que a manutenção dos preceitos democráticos servem como garantias fundamentais para a inclusão de mulheres negras nos espaços públicos de poder. Acesso a financiamentos de campanhas, formação, organização coletiva e tranquilidade de que as candidatas negras não irão sofrer violência ao elevarem suas vozes são ações imprescindíveis para assegurar a democracia e a equidade racial e de gênero, segundo a parlamentar.
“É preciso que se tenha um ambiente democrático seguro para que se garanta, inclusive, a integridade física e a vida das mulheres negras. Não é à toa que a gente vem ainda, neste contexto atual, clamando por uma resposta ao atentado que tirou a vida de Marielle Franco”.
“É necessário entender quais foram os reais motivos que levaram a essa execução. Isso tem um viés político, de ataque direto à democracia, e ao acesso da população negra – sobretudo, das mulheres negras – nesses espaços de poder, em que se exige uma resposta”, afirma Mônica Francisco.
“Nossa ancestralidade foi o que nos permitiu chegar até aqui”
Para a professora Najara Costa, tratar da ampliação de mulheres negras em cargos eletivos é fundamental para a democracia. Segundo ela, esse movimento pode ser um dentre as mudanças necessárias para sociedade ser capaz de melhorar consideravelmente a política brasileira como um todo.
“Nossa luta envolve a dignidade em uma sociedade hierarquizada por raça, classe e gênero que nos sexualiza e tanto nos explora. A violência política sempre teve um peso maior sobre nós e a disputa pela institucionalidade demanda muito além do nosso esforço pessoal”.
“Ainda recebemos pouco investimento dos partidos e somos alvo de diversos ataques misóginos. Nosso aquilombamento é a partir da noção ampla de movimento de mulheres negras, pois nossa ancestralidade foi o que nos permitiu chegar até aqui, do luto à luta”, destaca a professora Najara Costa.
Talíria Petrone, deputada federal eleita, destaca ainda que não há democracia plena e completa sem que a população negra participe, efetivamente, dos rumos do país. Para ela, essa inclusão deve abranger ainda espaços como universidades, com o povo preto apto para formular pesquisa nas artes, na ciência, na cultura, entre outros campos de estudo.
“Não há democracia de fato enquanto a população negra estiver relegada ao desemprego ou ao trabalho informal, à pobreza extrema, à violência do Estado, aos locais vulneráveis de moradia, à falta de vagas no SUS e nas escolas. Então, falar em democracia é falar também sobre em quais condições essas pessoas vivem”, avalia a parlamentar.
Contudo, o professor Geibi Pretti finaliza com a orientação de que, apesar de todo contexto em que o ativismo feminino estava inserido em 1932, as mulheres negras devem enxergar o Sufrágio Brasileiro como uma busca por igualdade.
“O que faltou para as mulheres negras da época, e acomete, infelizmente, o Brasil até hoje, é a falta de espaço e oportunidade, algo que deve ser efetivamente combatido”, pontua.
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