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Povos de terreiro e ambientalistas lutam contra urbanização das Dunas do Abaeté

Após derrubar PL que alteraria o nome da região para 'Monte Santo Deus Proverá', lideranças religiosas e ativistas apresentaram uma representação no Ministério Público da Bahia contra projeto da prefeitura de Salvador que pode fazer intervenções nas dunas

Foto: Iago Augusto/Alma Preta Jornalismo

Foto: Duas mulheres negras seguram cartazes

22 de fevereiro de 2022

Após conseguirem derrubar o projeto de lei (PL) 411/2021, que mudava o nome das Dunas do Abaeté para ‘Monte Santo Deus Proverá’, liranças religiosas, políticas, ambientalistas e entidades agora buscam barrar o projeto de urbanização da prefeitura de Salvador, que destina cerca de R$5 milhões para realizar intervenções na região. O território é o último remanescente do sistema de dunas, lagoas e restingas ainda conservadas na cidade e considerado local sagrado e histórico para as religiões de matriz africana e povos originários.

Na última semana, a vereadora Maria Marighella (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar Mista Ambientalista, e a mandata coletiva Pretas por Salvador (PSOL), junto com entidades, apresentaram uma representação no Ministério Público da Bahia (MP-BA) apontando uma série de possíveis irregularidades e pontos a respeito do projeto de intervenção, que prevê a instalação de uma sede, auditório, sanitários e espaços de convivência, lazer e atividades religiosas.

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No entanto, povos de santo e entidades apontam que não foram procurados para um diálogo sobre as intervenções e também citam uma suposta relação do projeto com entidades evangélicas. Na ação, lideranças religiosas e políticas pedem a apuração e adoção de medidas que visam a preservação ambiental e histórica das Dunas do Abaeté que, segundo eles, ainda não foram explicadas pela Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra), órgão municipal responsável pelas obras.

Segundo a ialorixá Mãe Jacira de Iansã, liderança religiosa também à frente da representação, o projeto é perverso e faz parte de uma política que visa beneficiar apenas um grupo religioso, os evangélicos.

“Essa obra tem que ser interrompida até porque eles não nos chamaram para o diálogo, para nos mostrar o que iria beneficiar. Só foi conversado com os evangélicos. Não queremos perder o espaço onde cultuamos os nossos encantados, os nossos sagrados”, pontua a ialorixá, que foi uma das lideranças religiosas que pediu a derrubada do PL 411/2021 na Câmara Municipal de Salvador.

Um dos pontos também levantados pelas entidades se refere à autoria do projeto. Nas redes sociais, a instituição Restaura Verde, ligada à lideranças evangélicas e que define as Dunas como ‘Monte Santo’, se intitula responsável pela apresentação do projeto, junto com a Universidade Livre das Dunas (Unidunas), responsável pela gestão do Parque Municipal das Dunas.

Em um vídeo divulgado em uma rede social, o presidente do Restaura Verde, apóstolo Roque Soares, comemorou a aprovação do projeto e disse que a intervenção vai beneficiar o povo cristão que frequenta o local, com a instalação de praça, receptivo, banheiros, biblioteca e demais espaços. Em um trecho do vídeo, o apóstolo relaciona o projeto como um benefício recebido pelo povo evangélico. “Reforço também que todos nós juntos cuidaremos desse patrimônio público que o povo evangélico está recebendo do nosso prefeito Bruno Reis e sua equipe”, diz o evangélico em um trecho do vídeo.

No entanto, no site oficial da Seinfra, o órgão diz que o projeto foi desenvolvido pela própria pasta. Para o membro da Frente Nacional Makota Valdina, Eduardo Machado, é preciso que a Seinfra preste explicações sobre a autoria do projeto, a suposta relação com entidades evangélicas, detalhes sobre o orçamento e demais informações sobre o projeto.

“Queremos saber a origem dos recursos que estão sendo destinados para essa obra, de onde é a autoria do projeto, entender a participação da Unidunas, do Restaura Verde, duas organizações que deveriam cuidar desse espaço mas estão em conluio com a prefeitura”, pontua Eduardo.

‘Estão comendo a APA pelas bordas’

O projeto de urbanização das Dunas do Abaeté foi lançado no dia 10 de fevereiro pelo prefeito Bruno Reis (DEM). Segundo a Seinfra, órgão municipal e responsável pelo projeto, a intervenção vai contar com ampla urbanização da área, com instalação de receptivos para frequentadores, escadarias de madeira para visitantes, mirante, deque, entre outros. Conforme a Seinfra, a previsão é que as intervenções sejam realizadas em uma área de 5.654 m², sendo 1.900 m² de área construída, com investimento de cerca de R$5 milhões.

Para ambientalistas, o projeto apresenta preocupações do ponto de vista ambiental, já que a região onde a instalação será feita fica na borda da Área de Proteção Ambiental (APA) Lagoas e Dunas do Abaeté, área com último remanescente de dunas e restinga e que conta com mais de mil espécies de flora e fauna, sendo nativas e migratórias.

A APA foi criada e delimitada em 1987 pelo governo da Bahia e chegou a ter a poligonal alterada mais de uma vez, o que, segundo a representação apresentada no MP-BA, resultou na redução da área e afetou o ecossistema das Dunas.

Para a ambientalista e integrante do Fórum Permanente de Itapuã (FPI), Clara Domingas, é preciso levar em consideração que o projeto pode impactar a vegetação nativa, que já vem passando por um processo de desgaste. A ambientalista defende que seja feito um processo de restauração ao invés de promover a degradação do ecossistema nativo.

“Quando se pensa em uma unidade de conservação e dizem que a área já está antropizada, isso deveria ser um sinal de impôr uma restauração e não de mais antropização e ocupação. Dentro da unidade de conservação, se a coisa está antropizada, você identifica, regenera e recupera a função ecológica”, explica a especialista.

O Fórum Permanente de Itapuã, junto com as comunidades indígenas, povos de religião de matrizes africanas e associações de moradores, abriu uma petição online em que pede pela suspensão das obras e discussão prévia sobre qualquer tipo de intervenção na região. Intitulada ‘Atentado contra o Abaeté’, a petição também aponta possíveis irregularidades no projeto, já que, segundo a organização, ele infringe a Zona de Ocupação Controlada (ZOC) e a Zona de Proteção Visual (ZPV), que delimitam a preservação ambiental.

A ambientalista Clara Domingas também alerta que o projeto não leva em consideração a preservação local para além das questões ambientais e ressalta que a restinga também engloba todo o complexo cultural, histórico, patrimonial das comunidades que ali vivem.

“Restinga não é só vegetação. É a comunidade pesqueira, quilombola, é os saberes e as crenças afro-ameríndias. São práticas religiosas e sagradas que são desassociadas com o que a gente chama de natureza. Se você quer preservar todo esse complexo patrimonial dentro de uma unidade de conservação, a direção é sempre recuperação, regeneração e não mais ocupação e promoção de pisoteamento”, completa.

‘Abaeté é ancestralidade viva’

Para a ialorixá Mãe Jacira de Iansã, o projeto representa uma tentativa de apagamento histórico dos fazeres ancestrais, principalmente das religiões de matriz africana. Ela defende que melhorias sejam feitas, no entanto, com diálogo e respeito aos espaços sagrados.

“Nós não somos contra a melhoria que venha beneficiar os evangélicos, os católicos, o povo de matriz africana e tantos outros. Somos contra tirar a originalidade do lugar que para nós, povo de santo, tem a ancestralidade viva. Nós não podemos perder o Abaeté. Aquilo é histórico”, afirma a ialorixá.

Para além do detalhamento do projeto e suas especificidades, os povos de santo também pedem por respeito aos territórios e pela abertura de diálogo e participação ativa das comunidades originárias na tomada de decisões.

“Povo de santo não está mais para brincar. A gente não quer ser mais a foto bonita ao lado do prefeito, a gente quer fazer esse debate político até porque só a partir desse processo de incidência política que a gente vai conseguir galgar os caminhos que a gente merece”, completa Eduardo Machado, membro da Frente Nacional Makota Valdina.

Posicionamento

Em nota enviada à Alma Preta Jornalismo, a Seinfra informou que o projeto de urbanização na Av. Dorival Caymmi, nas imediações das Dunas de Itapuã, teve origem na UniDunas e no Restaura Verde, que, segundo a pasta, acionou a secretaria por causa da “degradação do local devido ao alto volume – cerca de 5 mil – de pessoas que sobem o local semanalmente”.

Disse também que ouviu lideranças religiosas e que levou em consideração as sugestões abordadas pelo povo de santo. “No entanto, não existe nenhuma ação que vá de encontro com qualquer grupo ou entidade religiosa”, destacou a Seinfra em um trecho da nota.

A Alma Preta também questionou a suposta relação do projeto com entidades ligadas a grupos evangélicos, que foi desmentido pela pasta: “O local é e continuará aberto para qualquer cidadão, de qualquer religião”, respondeu.

Sobre o projeto não estar previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA), a Seinfra explicou que a LOA possui classificações em grupos e subgrupos por área de atuação e temáticas, tendo o projeto de urbanização representado no grupo de “elaboração de projetos de infraestrutura urbana e habitação”. Disse também que a primeira etapa da obra vai contar com investimento de R$ 2,1 milhões, com recursos do Tesouro.

Em relação às supostas irregularidades ambientais, a pasta completou dizendo que a intervenção será feita fora da área da APA e que os órgãos competentes, como o Inema, foram consultados para a realização da obra.

Já o Ministério Público respondeu que oficiou a Prefeitura de Salvador solicitando os projetos, bem como o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), e está aguardando o envio das informações. Disse também que “foi solicitada a confecção de mapas ao setor de geotecnologia do próprio MP para a devida apuração dos fatos”.

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