“Parece que essa voz que eu tinha na minha cabeça que só me punia, agora está mais branda. Parece que essa voz agora sou mais eu e eu não quero mais me fazer mal assim, eu quero me acolher também”. Essa fala foi disparada por uma de minhas pacientes e acredito que suscita um debate muito interessante.
Como psicóloga negra, que se utiliza da psicanálise e da psicologia preta como ferramenta, possuo uma clínica majoritariamente de mulheres negras, de diversas idades, contextos sociais diferentes e histórias muito singulares. No entanto, mesmo na singularidade de cada caso, vou percebendo certas semelhanças tanto em como essas mulheres chegam, como também nas direções de tratamento que escolho para cada uma. De certa forma, essas direções se cruzam e se entrelaçam.
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Essa dinâmica tem passado por dois conceitos psicanalíticos muito importantes: O Ideal de Ego e o SuperEgo. Essas instâncias têm funções que se entrelaçam e se retroalimentam. O Ideal de Ego pode ser resumidamente definido como a representação daquilo que queremos ser, da nossa “melhor versão”, do que almejamos conquistar e nos tornar. Já o SuperEgo é a instância psíquica que vai introjetar nossas figuras de autoridade, ou seja, será ele que irá constituir nossos ideais morais, nossos julgamentos e também que irá nos “punir” caso venhamos a agir de forma que consideramos “errada”.
Tratando primeiramente do Ideal de Ego, é uma afirmação psicanalítica que quão mais distante esse Ideal está de quem nós somos no momento, de outra forma dito, de nosso Ego Atual, mais tensa é essa relação e mais frustração e culpa iremos sentir quando não cumprirmos o que entendemos enquanto esse ideal. Muitas de minhas pacientes mulheres negras têm chegado a mim com um Ideal de Ego extremamente distante de quem elas são no agora. Muitas das vezes esse ideal é embranquecido ou corresponde a expectativas completamente impossíveis de serem alcançadas por essas mulheres. A autora Neusa Santos trabalha isso de forma muito brilhante em seu livro “Tornar-se Negro”; o fato de como pessoas negras vão criando um Ideal de Ego branco devido ao racismo introjetado pela sociedade em nossas subjetividades.
Bom, essas pacientes chegam desejando sucesso, felicidade e amor, coisas que todos nós desejamos, mas a partir de um referencial totalmente desconexo da realidade que vivem, ou seja, desejam ter, ser ou tornar-se algo que é impossível a partir da historicidade singular de cada uma. São então pacientes que experienciam a própria vida com muita culpa e frustração, desejando o que não conseguem e se autoflagelando por isso.
Venho percebendo esse movimento e a importância da realização, em análise, da aproximação desse Ideal de Ego do Ego Atual de cada uma; entrelaçando essa aproximação com a valoração da história individual delas. Foi necessário e importante um trabalho em que o percurso que cada uma construiu até ali fosse valorado e visto como o percurso que foi possível a partir das escolhas feitas, mas também que foi possível a partir das dinâmicas estruturais que violentam essas mulheres: o racismo, a misoginia e o classicismo.
Foi essencial elaborar sobre como a dinâmica estrutural da sociedade exerce um papel imprescindível em como essas mulheres serão vistas, tratadas e em como as oportunidades vão se apresentar à elas; intencionando que sonhar voltasse a ser possível a partir do entendimento crítico da realidade de cada uma. Fazer essa relação e tratar sobre esse desequilíbrio foi uma direção de tratamento, mas também um desafio do cotidiano, isso porque é bastante complexo lidar com as violências estruturais, mas também fortalecer que é possível agir e não sucumbir a essas estruturas. É uma busca em trabalhar sobre o que é singular, mas também o que é coletivo.
Tratando do SuperEgo, o foco se mostra na intensidade da punição, que é uma das funções dessa instância. Essas pacientes, com alta frequência, são fortes algozes de si mesmas. Por terem uma visão intensamente negativa e, se posso dizer, muitas vezes deturpada sobre os próprios erros. Cada vez que falham, se dirigem os piores xingamentos e utilizam de palavras muito duras para me explicar o porquê de suas falhas. Por exemplo, é comum que ao falharem no trabalho, essas pacientes se vejam como preguiçosas, acomodadas e incompetentes, ao mesmo tempo em que me relatam jornadas intensamente desgastantes, cobranças exorbitantes e trabalhos muito bem feitos, que são elogiados, mas pouco valorizados financeiramente ou por pessoas com mais poder que elas.
Fica nítido que o que deveria ser depositado no Outro (no chefe, na dinâmica da empresa, na violência racial) é introjetado por elas como culpa individual, como características negativas sobre si mesmas. E isso sempre traz desafios.
Minha paciente, citada no início desse texto, sem saber, descreve como conseguiu aliviar a punição de seu SuperEgo, conseguindo fazer com que ele se tornasse menos violento consigo mesma. Ela é um exemplo, mas a evolução do tratamento das minhas pacientes mulheres negras têm demonstrado que, valorar a própria história aliado a entender as dinâmicas estruturais do racismo, machismo e classicismo, possibilita que essa punição diminua e que elas possam ser mais justas e acolhedoras consigo mesmas. Essa instância ainda trará julgamento moral sobre o outro e sobre nós mesmas, mas ela não precisa ser irreal e violenta.
Além disso, aproximar quem elas são de onde podem chegar, possibilita a movimentação e a continuidade. Aproximando o Ego Atual do Ideal de Ego, a caminhada, mesmo com percalços e obstáculos, não é paralisada. O sonho é possível e faz sentido, não é mais da ordem do Outro, é da ordem do singular de cada uma. Assim, elas podem projetar e construir desejos que as deixarão realizadas consigo mesmas e que realmente vão acontecer. O que é essencial para uma vida mais leve e também disruptiva dentro de uma sociedade genocida que mina, para pessoas negras, a possibilidade de almejar algo além da sobrevivência.
Ainda assim, quando surge o atravessamento pela dor, pela violência, é possível fazer pausas, sentir esse momento, mas seguir entendendo o que é de nossa responsabilidade e o que talvez nós não temos controle. Continuar caminhando é imperativo para que a violência racial não impeça essas mulheres de serem felizes com suas próprias narrativas.
Essa é uma pequena reflexão sobre a clínica com mulheres negras. Nada aqui é certeza absoluta e nem está terminado, mas é fruto de estudo, trabalho e vivências. O convite é para abrir o debate! Espero que gostem.