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Não é conselho, é visão: funk e a Lei de Licitação

Não é de hoje que confundem MCs com criminosos, propagando ódio contra o movimento funk, assim como diversas outras expressões ligadas à cultura negra e periférica foram historicamente perseguidas
Baile da Penha, no Rio de Janeiro.

Baile da Penha, no Rio de Janeiro.

— Jeferson Delgado

11 de março de 2025

No dia 11 de fevereiro de 2025, uma vereadora de São Paulo trouxe à tona um debate polêmico: apresentou um projeto de lei apelidado de “PL Anti-Oruam”, com o intuito de proibir “a contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas e dá outras providências.” 

Oruam é um MC bastante famoso, com hits românticos como “Para de Mentir” e “Papo de Agustinho”, que canta sobre temas variados, dentre eles amor, violência policial, ascensão social, drogas e situações do cotidiano periférico – assim como muitos funkeiros, rappers e trappers.

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Não é de hoje que confundem MCs com criminosos, propagando ódio contra o movimento funk — assim como diversas outras expressões ligadas à cultura negra e periférica foram historicamente perseguidas, como foi o caso da capoeira e do samba.

Após o protocolo do PL Anti-Oruam em São Paulo, uma iniciativa semelhante foi protocolada na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei Federal n.º 243/2025 (PL) ampliou ainda mais a discussão ao prever, supostamente, “medidas de combate ao incentivo e à apologia ao consumo de drogas, ao crime organizado e à prática de condutas criminosas em eventos de qualquer natureza contratados ou incentivados” pelo poder público, mediante propostas de alteração da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021).

Contudo, o texto legislativo apresenta graves problemas. Como advogado negro que nasceu em Itaquera e cresceu em Suzano, que atua na área do Direito Administrativo, amante do rap, funk e demais ritmos que vêm das periferias, não posso deixar de contribuir para a reflexão qualificada sobre esse assunto.

Neste artigo, analiso as propostas de alteração da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) com especial atenção à técnica legislativa que faltou ao PL, às incoerências com o Direito Administrativo e à discussão sobre constitucionalidade da matéria.

1. Imprecisões técnicas: o curioso caso do PL perrequeiro

Parafraseando muitos dos meus amigos, ressalto que este PL está eivado de perrecagens, isto é, completamente permeado por equívocos, erros e imprecisões. Falta a quem o produziu o domínio da boa técnica legislativa.

A Lei de Licitações tem como objetivo central regulamentar contratações públicas para assegurar eficiência, economicidade e competitividade. O PL, ao incluir vedações de cunho moral e penal em artigos que tratam de regras procedimentais, como o art. 12, desvirtua essa finalidade. Explico.

O atual art. 12 da Lei de Licitações trata exclusivamente de aspectos técnicos e objetivos da fase preparatória de licitações ao estabelecer o que deve ser observado no processo licitatório. 

Contudo, o PL em questão acrescenta ao art. 12 um inciso com a seguinte previsão: “nas contratações de shows, artistas ou eventos de qualquer natureza, é vedado ao contratado a expressão, veiculação ou disseminação, no decorrer da apresentação contratada, de apologia ou incentivo ao consumo de drogas, ao crime organizado ou a prática de condutas criminosas”.

A proposta busca inserir obrigação ao contratado. No entanto, tal inserção foi feita no art. 12, que trata daquilo que deverá ser observado no processo licitatório, isto é, trata da forma de produção de documentos, assinatura, digitalização etc. O art. 12 não trata de regras ou obrigações. Desse modo, caso aprovada a alteração pretendida, haveria o rompimento da lógica sistemática da norma, dificultando sua interpretação e aplicação.  

Outra questão na seara da técnica: o PL altera o art. 5º da Lei de Licitações ao reorganizar princípios que atualmente constam no caput, convertendo-os em incisos e incluindo o inciso XXII, que veda “incentivo ou apologia ao consumo de drogas, ao crime organizado ou à prática de condutas criminosas.”  

Essa proposta ignora a distinção fundamental entre regras e princípios. Conforme Robert Alexy, princípios são normas de otimização que exigem realização proporcional às circunstâncias fáticas e jurídicas, enquanto regras têm aplicação binária. Incorporar uma vedação material como “apologia” em um rol de princípios compromete a aplicação uniforme da norma e cria insegurança jurídica.  

Ainda, o texto legislativo contém uma redundância gritante. Dispositivos como os §§ 2º, 6º e 8º, que seriam inseridos nos artigos 72, 74 e 92 da Lei de Licitações, respectivamente, repetem exaustivamente a obrigação de incluir cláusulas contratuais que proíbam “apologia ou incentivo.” 

Essa repetição não só é desnecessária como fere a boa técnica legislativa, que preza por clareza e concisão. A multiplicação de dispositivos com a mesma redação confunde a interpretação e prejudica a aplicação da norma.  

2. Discricionariedade ou Imposição: o PL zé povinho

Permitam-me recorrer novamente a outra gíria do meu bairro: o conceito de “Zé Povinho”. Zé Povinho é aquele que, ao observar qualquer conquista, iniciativa ou esforço alheio, busca imiscuir-se, comentar e influenciar, gastando energia em atividades que, na prática, não lhe trazem benefício, apenas pelo prazer de “cuidar da vida alheia”.

O Zé Povinho não busca melhorar o sistema ou contribuir para o bem coletivo, mas apenas influencia temas que não lhe dizem respeito, gerar intriga, falar dos feitos alheios etc.  

O PL em questão traz um exemplo claro desse comportamento ao atribuir ao gestor público a responsabilidade de fiscalizar conteúdos artísticos e culturais. Essa medida não só revela uma visão enviesada e paternalista, como também é completamente incompatível com a prática administrativa. 

Avaliar se as músicas cantadas por artistas em espetáculos promoveram “apologia” ou “incentivo” ao crime ou ao consumo de drogas exige uma análise subjetiva, que ultrapassa a competência técnica da Administração Pública.  

Além disso, a implementação dessa fiscalização geraria custos adicionais significativos e potencializaria a judicialização. Isso enfraqueceria a eficiência administrativa e desviaria os gestores públicos de suas funções essenciais, impactando negativamente o funcionamento das instituições.  

O mais preocupante, entretanto, é que o PL não parece buscar benefícios concretos para a coletividade, mas sim atender ao desejo de controle próprio do Zé Povinho, que se satisfaz em impor regras restritivas sem qualquer ganho real.  

Ainda, o PL objetiva incluir o § 3º ao art. 12 da Lei de Licitações, com a previsão de penalidades aos contratados – artistas – consistentes no pagamento de multa de 100% do valor do contrato e declaração de inidoneidade para contratar com a Administração Pública

Ambas as penalidades são desproporcionais e resultam em enriquecimento sem causa por parte da Administração Pública. 

O PL, ao tentar atribuir funções incompatíveis ao gestor público e propor sanções desproporcionais, evidencia um espírito controlador e desconectado da prática administrativa e dos princípios que regem o Direito Administrativo, como eficiência, proporcionalidade e razoabilidade. Em suma, atende mais à satisfação do “Zé Povinho” do que às necessidades concretas da sociedade.

3. Inconstitucionalidade da matéria

Ainda, em relação à inconstitucionalidade da matéria, é relevante abordar o tema da violação à liberdade de expressão.

A Constituição Federal assegura, de forma ampla e inequívoca, a liberdade de expressão e a criação artística nos artigos 5º, IX, e 220, protegendo manifestações culturais contra censuras prévias ou limitações arbitrárias. 

Contudo, o PL, ao proibir manifestações que possam ser interpretadas como “apologia” ou “incentivo” ao crime, impõe restrições vagas e subjetivas, abrindo margem para interpretações equivocadas que violam essas garantias fundamentais.  

Obras artísticas frequentemente abordam temas sensíveis, como o crime ou o uso de drogas, não para promover tais práticas, mas para criticar, refletir ou conscientizar. 

Entretanto, a subjetividade inerente à definição de “apologia” ou “incentivo” pode levar à censura de conteúdos legítimos e relevantes para o debate público, configurando censura prévia. Essa prática, além de inconstitucional, compromete o pluralismo cultural e a capacidade da arte de exercer seu papel transformador na sociedade.  

Ademais, os direitos à liberdade de expressão e à criação artística possuem status de cláusulas pétreas, conforme o artigo 60, § 4º, IV, da Constituição. Isso significa que não podem ser restringidos nem mesmo por emenda constitucional. 

Qualquer tentativa de limitar manifestações culturais ou artísticas, ainda que fundamentada em argumentos morais ou de segurança pública, esbarra na proteção intransponível desses direitos fundamentais.  

Ao propor limitações desse tipo, o PL desrespeita não apenas o texto constitucional, mas também o núcleo essencial da liberdade individual e da democracia, que se nutrem da diversidade de vozes e manifestações culturais. 

Em vez de proteger a sociedade, a medida enfraquece a proteção dos direitos e as bases constitucionais que sustentam o desenvolvimento cultural e social no Brasil.

Para de Mentir Olhando na Minha Cara: o PL lacração

Depois de tudo o que foi exposto, fica claro que este PL, temperado com uma má técnica legislativa e recheado de inconstitucionalidades, parece ter um único objetivo: lacrar. 

E, convenhamos, “para de mentir olhando na minha cara,” porque ninguém acredita que o texto vá, de fato, enfrentar o crime organizado.  

O combate ao crime organizado exige estratégias sérias, coordenadas e fundamentadas, e não propostas inidôneas que apenas alimentam discursos vazios. 

As medidas previstas no PL pouco ou nada contribuem para esse enfrentamento, reforçando a impressão de que sua finalidade não é a solução de problemas reais, mas sim atender a desejos performáticos de “Zé Povinho.”  

Além disso, o PL está repleto de falhas graves: sua redação confusa desrespeita os fundamentos da técnica legislativa, viola direitos constitucionais e impõe sanções que afrontam os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 

Inserido de forma inadequada na sistemática da Lei de Licitações, o texto compromete a segurança jurídica e dificulta a sua aplicação prática, gerando mais problemas do que soluções.  

Apesar dos pesares, é sempre bom lembrar: “o céu é o limite” para uma sociedade que acredita na construção coletiva de um futuro melhor. Esse é o verdadeiro projeto de transformação social, já desenhado nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal. Ele, sim, é digno de ser defendido – e não propostas que, como este PL, apenas miram a ordem sem qualquer compromisso real com o progresso, numa histeria racista desprovida de qualquer técnica legislativa.

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  • Leonardo Mariz

    Estudante de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e advogado na área de Direito Antidiscriminatório e Direito Regulatório no escritório Xavier Vasconcelos Advogados (XVA).

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