Localizada em uma das áreas mais desafiadoras de São Paulo em termos de acesso a políticas públicas e direito cidadão, a Praça João Tadeu Priolli, no Campo Limpo, periferia de São Paulo, uma entre as 3.910 praças existentes no município, passou por ampla revitalização em 2024.
O processo, mais do que simples reforma de um espaço público, marcou o início de um sonho, uma campanha capaz de sensibilizar e influenciar todas as esferas da população, da sociedade civil a tomadores de decisões, em direção a um movimento social em prol do direito ao brincar, garantido pela Lei Federal 14.826/2024 . A lei institui a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias para prevenção à violência contra crianças, e também estabelece que tanto crianças quanto adolescentes têm direito ao brincar livre de intimidação ou discriminação, a se relacionar com a natureza, a viver em seus territórios originários e a receber estímulos parentais lúdicos que proporcionem seu desenvolvimento.
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O ponto de partida para reforma da praça foi a percepção da própria comunidade sobre a necessidade de oferecer um ambiente seguro e acessível para o lazer das crianças da região. Para que o sonho virasse realidade, quem encampou a mobilização foi o empreendedor social Thiago Vinícius, que faz parte da Agência Solano Trindade, uma associação de moradores cujo propósito é fortalecer a arte e a economia em territórios periféricos.
“É uma violência ver a única área de lazer do bairro destruída. Sonhar é direito de todos, mas ter oportunidade para realizar o sonho é algo bem diferente. O Campo Limpo é um polo de criatividade e energia, uma força motriz da cidade. O brincar e o lúdico são fundamentais para despertar novas perspectivas e reduzir desigualdades”, diz Thiago.
Por meio do poder de articulação de Thiago, a iniciativa foi abraçada pelos times da Impossível, estúdio de criatividade multimídia, e da UP Lab, laboratório de comunicação, inovação e impacto positivo. Juntos com o empreendedor e a comunidade do Campo Limpo, os especialistas em comunicação e produção audiovisual realizaram o documentário “Brincar é Direito”, que será disponibilizado no Dia Mundial do Brincar, celebrado em mais de 40 países no dia 28 de maio. A estreia em formato gratuito e acessível segue a lógica da campanha de mobilização junto à sociedade civil para que crianças de todo o Brasil não dependam de um CEP para ter acesso ao brincar livre e seguro.
“Mais do que o desenvolvimento individual, eu acredito que o brincar coletivo em espaços públicos é importante para a criação de uma cidadania integral, a aprendizagem do convívio. O brincar pode ser uma ferramenta de despolarização e cidadania”, comenta Rapha Erichsen, diretor e produtor executivo da Impossível.
Erichsen é realizador, entre outros documentários, de “Ilegal – a vida não espera”, sobre a batalha de mães para legalizar medicamentos à base de canabidiol para o tratamento de doenças severas de seus filhos; e “Milú”, que acompanha a trajetória de Milú Vilela, herdeira do banco Itaú que se dedicou a iniciativas de fomento à educação e às artes via terceiro setor e o voluntariado.
Multiplicando a defesa do direito ao brincar
Além do documentário, integram o movimento Brincar é Direito um site, petição online, página no Instagram, ações nas redes sociais, além de ações de advocacy junto a legisladores e formadores de opinião capazes de converter o convite à sociedade se engajar na causa em busca de resultados concretos para a comunidade.
Para amplificar esse chamado, o movimento conta com a participação de organizações e criadores de conteúdo como Camilla Marinho (Instituto Caburé), Juliana Johannpeter (Instituto Mari Johannpeter) e Change.org, maior plataforma de petições online do mundo, dentre outros. O projeto conta ainda com a parceria institucional do Instituto Mari Johannpeter, do Instituto Alana, do Organicamente Rango, do Erê Lab/Coop-erê, da comunidade Agente Muda, Change.org e da marca Identidade Negra.
A mobilização de criadores de conteúdo, ativistas e organizações diversas é respaldada pela petição online direcionada às autoridades responsáveis, e material informativo no formato multimídia, com orientações para quem quiser mobilizar espaços de brincar em sua comunidade. “É um conteúdo que reúne os principais aprendizados do processo do parquinho do Campo Limpo para ser utilizado por quem é iniciante no tema”, explica Bárbara Poerner, coordenadora da campanha de impacto do projeto.
“Queremos, com esse movimento, inspirar a gestão pública para que o cumprimento da Lei do Direito ao Brincar seja efetivo. Por outro lado, também queremos estimular a sociedade civil a se organizar e não ficar de braços cruzados esperando a lei ser cumprida”, comenta Rennê Nunes, sócio e diretor executivo da UP Lab.
O documentário de 28 minutos, que será exibido em sessão para convidados no dia 27 de maio, às 19hs, no REAG Belas Artes, conta com narrativa dos participantes do projeto, cuja produção se baseou em escuta ativa no território, incluindo crianças, mostra todo o processo da reforma de 6 meses do parquinho da praça, a importância do local para a população do Campo Limpo e discute o próprio direito ao brincar.
A obra de revitalização foi liderada pelo Erê Lab/Coop-erê, que atua em projetos com foco na ocupação dos espaços públicos pela infância, e acompanhou, ao longo de um ano, a evolução da iniciativa, do planejamento à inauguração.
“Estarmos envolvidos na criação de territórios do brincar a partir da iniciativa da própria comunidade em uma centralidade de bairro, como é a Praça do Campo Limpo, é um sonho que desejamos sonhar todos os dias pelo Brasil. Nesse processo, escutamos os adultos a fim de trazer suas histórias de luta para esse espaço do brincar livre e inclusivo, assim como escutamos as crianças de diversas instituições do entorno para que, a partir dessa experiência, possam ainda criar e contar muitas histórias incríveis no futuro que as espera”, comenta Roni Hirsch, diretor criativo do Erê Lab.
Decorrido pouco mais de um ano da reforma do parquinho no Campo Limpo, Nunes comenta que os brinquedos seguem muito bem cuidados e a praça, bastante utilizada pela comunidade. “Quando a comunidade se envolve, gera pertencimento e todos cuidam do território. Precisamos construir novas formas de conectar o setor público com a comunidade e potenciais parceiros apoiadores. Uma confluência que beneficia a todos e todas!”.
Em novembro de 2024, a iniciativa do Erê Lab/Coop-erê na Praça do Campo Limpo recebeu o Selo de Direitos Humanos e Diversidade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Cidade de São Paulo.
Praças públicas em São Paulo
O município de São Paulo tem 3.910 praças, distribuídas nas 32 subprefeituras. A Sé e o Butantã reúnem o maior percentual de praças/largos, que correspondem a 2.35% e 2,22% da área dessas subprefeituras, respectivamente. Na sequência, está a Subprefeitura Pinheiros com 2,11% do seu território ocupado por praças/largos. Os piores percentuais de praças/largos encontram-se nas Subprefeituras Perus e Jaçanã-Tremembé, com, respectivamente, 0,10% e 0,23%. Os dados são do Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres, que enquadra as praças da cidade e integra o conjunto de quatro planos verdes do sistema de planejamento e gestão ambiental e urbano, estabelecido no Plano Diretor Estratégico da Cidade de São Paulo (PDE 2014).
De acordo com o PLANPAVEL 2022, o Campo Limpo possui 113 praças/largos, que ocupam 0,36 km 2 e 0,99% da região. Uma parcela dos espaços identificados neste levantamento não funciona efetivamente como deveria e está ocupada por habitação de interesse social ou por equipamentos públicos sociais, podendo estar ou não regularizados.
O bairro do Campo Limpo faz parte da Subprefeitura do Campo Limpo, que soma ainda Vila Andrade e Capão Redondo, totalizando 650 mil moradores. A região lidera em número de residências em favelas no município de São Paulo, com 185 mil lares, segundo levantamento do estudo Mapa da Desigualdade. O índice é 120 vezes mais alto que na Sé e em Pinheiros, no centro expandido.
“Acredito que a sociedade não só subestima o direito ao brincar como aliena esse direito dos espaços públicos, transferindo essa garantia para os espaços privados. São Paulo é a maior metrópole do hemisfério Sul e tem uma oferta irrisória de espaços públicos para o brincar. O principal fator para esse cenário talvez seja a falta de uma cultura que estimule o convívio coletivo ao ar livre. Acredito que essa cultura se dá por diversos motivos, como segurança, falta de infraestrutura, que leva a falta de hábito e pouca cobrança da população por espaços de brincar de mais qualidade”, analisa Rapha.
“Espero que o filme desperte nas pessoas, principalmente pais, mães e cuidadores, mas também tomadores de decisão, legisladores, poder executivo, empresas e sociedade civil organizada; o desejo de liderar iniciativas parecidas com a do Thiago, e que transformem o seu entorno, tornando-o mais amável e propício ao desenvolvimento das crianças”, finaliza.
O documentário será disponibilizado gratuitamente no YouTube e na página do movimento Brincar é Direito.