O museu é uma criação. A ideia de coletar coisas e organizá-las em uma lógica pode nos fazer crer que todas as suas peças naturalmente foram levadas para a instituição por seu valor artístico, histórico ou científico. No entanto, não é bem assim. Os artefatos passaram por um processo de seleção e aquisição pela instituição que os organiza depois em coleções temáticas, como, por exemplo, uma “coleção africana”. Mas você já se perguntou como ela se formou?
Na primeira cena do filme Pantera Negra, um acontecimento responde bem essa pergunta. Killmonger, personagem interpretado por Michael B. Jordan, admira artefatos africanos em um museu e, em seguida, pergunta a uma especialista britânica sobre a origem daquelas peças e diz que vai levar uma delas. A mulher imediatamente responde: “Você não pode roubar isso”, e apenas ouve: “Mas vocês não roubaram isso? Só estou pegando de volta”.
Uma parte considerável das “Coleções africanas” de museus, como o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o Museu Britânico de Londres, o Museu do Louvre, em Paris, iniciaram a construção dessas coleções no mesmo momento que a escravidão chegava ao fim na América e os países europeus expandiam a colonialização na África, na segunda metade do século XIX. Teorias raciais foram desenvolvidas nesse contexto a fim de confirmar com verniz científico a superioridade branca e dar base para a exploração colonial. Os estudos e ações delas resultantes coletaram diferentes objetos da cultura negra que passaram a integrar os museus. O racismo inscrito nessa prática ressignificou peças, produziu imagens fotográficas e estruturou uma reflexão racista para legitimar o violento processo colonialista posto em prática.
Esse contexto de roubo de peças e a tentativa de retorná-las para seus donos inspirou a cena do filme Pantera Negra, assim como o ativista congolês Mwazulu Diyabanza que tentou recuperar um objeto do Museu do Quai Branly em Paris. Porém, antes desse debate atual, aqui no Brasil, no final do século XIX, um africano chamado Quintino Pacheco já solicitava o retorno de seus objetos que haviam sido apreendidos pela polícia.
Na década de 1880, a Polícia da Corte (Rio de Janeiro) realizava batidas em lugares onde se praticavam cultos religiosos afro-brasileiros ou qualquer outro tipo de reunião em que a música os fizesse lembrar das religiões afro. Muitas casas foram invadidas, pessoas presas e objetos apreendidos, porque a polícia acreditava que, ao prender esses objetos, os rituais não iriam mais acontecer e aquela prática terminaria.
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Como as ações policiais aconteciam com frequência, o número de objetos nos depósitos policiais crescia continuamente e precisavam ser queimados para dar espaço para outros. Sabendo disso, o diretor do Museu Nacional, Ladislau Netto, enviou um pedido ao chefe da polícia. Ladislau solicitava o envio dos objetos apreendidos em espaços religiosos ao museu, com a justificativa de que eles seriam importantes para ajudar no avanço da Etnologia no Brasil. Durante sete anos, enquanto a polícia cruelmente arrancava objetos da população negra, o Museu Nacional recebia novas peças para o seu acervo vindo dessas apreensões.
Em sua carta, Quintino peticionava diretamente ao Imperador D. Pedro II relatando que sua casa tinha sido invadida pela polícia enquanto ele dançava jongo com seus amigos e que, na invasão, alguns de seus objetos foram levados. Ele sabia que tinham sido enviados para o museu e solicitou a devolução através da intermediação do Imperador nesse caso. Na visão do africano, D. Pedro II era uma pessoa justa, logo ouviria o seu apelo. Lamentavelmente, não sabemos se Quintino conseguiu seus objetos de volta.
Ainda que Wakanda seja um país fictício, a história contada naquela cena fala muito das formações de coleções com objetos da cultura negra em diversos países. A violência esteve presente na construção das coleções africanas e são até hoje um ponto de debate em torno da reparação e devolução dessas peças para seus povos de origem. As histórias de Mwazulu e Quintino nos convocam, de modos diferentes, a pensar estratégias possíveis para recuperar peças que nos foram roubadas. Porém, como ressignificar os objetos da cultura negra em museu capturados por essa estrutura colonial-racista?
O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, se lançou nesse desafio e inaugurou uma exposição chamada Kumbukumbu: África, memória e patrimônio no dia 14 de junho de 2014. A exposição tinha 185 peças feitas no Brasil e em diversos países africanos entre os séculos XIX e XX. Alguns objetos, como os apreendidos na casa do Quintino, fizeram parte dessa exposição e seu reposicionamento tentou produzir outros significados. A violência de sua formação dividiu espaços com as histórias de seus donos, usos e sentidos. A organização da exposição buscou refletir sobre a presença negra no país e encaminhar importantes pontos para pensar as “coleções africanas” em museus.
E para você qual seria a melhor forma de ressignificar esses objetos?