Desde 2015, a Lei Brasileira de Inclusão (Nº 13.146) garante o acesso à educação igualitária e de qualidade para pessoas com deficiência. Além de assegurar a inclusão e o desenvolvimento das crianças nas escolas, a legislação também estabelece uma política de promoção ao respeito e ao combate ao preconceito tanto no ambiente escolar como no convívio social.
A pandemia da covid-19 escancarou novas barreiras e desafios para alunos com deficiência e para os pais e mães que tiveram que se adaptar com a falta de acessibilidade no ensino remoto, sobretudo nas atividades enviadas pelas escolas, como é o caso de Geísa Araújo, mãe de Samuel, de oito anos, diagnosticado com autismo aos três anos de idade.
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Em entrevista à Alma Preta Jornalismo, Geísa diz que as atividades escolares poderiam ser mais avançadas para ajudar no desenvolvimento de Samuel, aluno do terceiro ano da rede municipal de Salvador, na Bahia. No dia-a-dia, ela tem adotado estratégias lúdicas para ajudar na aprendizagem do pequeno, mas diz que a sua maior preocupação é com o atraso escolar que o filho pode sofrer futuramente.
“A escola vai acabar passando Samuel [de ano], sendo que ele não sabe muita coisa. Me incomoda muito […] Ele já vai para o quarto ano. Como ele vai para a próxima série sem saber nada desse jeito? Sem saber ler, pelo menos”, conta.
As aulas presenciais retornaram na capital baiana em 27 de setembro, porém Geísa preferiu manter o filho estudando em casa devido aos receios com a pandemia e considera a volta às aulas precipitada. “Eu acho que foi uma loucura. Se as crianças já estavam o tempo todo no ‘home’, deixava as crianças no ‘home’. Agora, o que teria que ser feito é preparar as escolas para repetir os anos presenciais das crianças no próximo ano. Ia ser um reforço do aprendizado”, defende.
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Já para Isabel Victória, de nove anos, as aulas presenciais voltaram a fazer parte da rotina, dividida entre as atividades escolares e o acompanhamento médico. A mãe, Maísa Conceição, conta que no início da pandemia só conseguiu conciliar os cuidados com Isabel e as tarefas cotidianas depois de conseguir pagar um reforço escolar para a filha. Em casa, jogos e brincadeiras foram os maiores aliados para manter o ensino.
“Ela ficou muito mais agitada no período da pandemia. A gente entrou com jogos que ajudassem ela porque é complicado – com uma criança hiperativa – ficar dentro de casa sem fazer nada. A melhor opção que a gente teve foram os jogos e brincadeiras dentro de casa”.
Mesmo com a Lei Federal (nº 14.019) que permite que Pessoas com Deficiência (PCDs) não usem máscara de prevenção ao coronavírus, as famílias de crianças com deficiência têm optado pelo uso nas escolas, já que, até o momento, a vacinação contra a covid-19 para PCDs contempla apenas as faixas etárias acima de 12 anos.
O cumprimento dos protocolos nas escolas acende um alerta, já que é preciso ter uma atenção maior com os alunos com deficiência. De acordo com a auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) na rede municipal de Salvador, Verônica Almeida, os maiores desafios na volta às aulas têm sido manter o distanciamento entre os alunos.
A profissional, que atua com crianças com deficiência intelectual, relata que alguns alunos chegam a pedir um abraço, pedido que ela diz recusar com o coração apertado. Para ela, cumprir o distanciamento é uma tarefa complicada já que essas crianças precisam ser acompanhadas e cuidadas de perto.
“A gente explica que não pode estar perto, que não pode pegar os brinquedos, materiais, mas é complicado também […] A gente tem que ter todo o cuidado, passando álcool gel. É um desafio muito grande, ainda mais nesse momento de pandemia”.
As escolas estão preparadas para a inclusão escolar?
Apesar dos avanços conquistados pela Lei de Inclusão, dados apontam que a realidade ainda está distante dos aparatos necessários para garantir a equidade nas escolas. De acordo com o Anuário Brasileiro da Educação Básica (2021), de 2010 a 2020, apenas 31,2% das escolas em zona urbana tinham banheiro adequado para o uso de alunos com deficiência ou mobilidade reduzida. Na zona urbana, o número é um pouco acima da média: 63,3%.
Em relação à matrícula de crianças e jovens de quatro a 17 anos com deficiência e transtornos do espectro autista, os números mostram um crescimento gradativo nos últimos 11 anos, passando de 60,5%, em 2009, para 88,1%, em 2020. Conforme o Anuário, na última década, as matrículas na Educação Básica quase duplicaram, passando de 702,6 mil (2010) para 1,3 milhão (2020), sendo que a maior parte ocorreu no Ensino Fundamental, representando um total de 78,3%.
Apesar do resultado positivo, especialistas reforçam que, para além do aumento de matrículas, é preciso garantir a acessibilidade necessária para a permanência dessas crianças na escola através de diálogos entre a comunidade escolar e as famílias, como defende Thaissa Alvarenga, fundadora da ONG “Nosso Olhar”, criada após o nascimento do seu primeiro filho, o Francisco, que tem Síndrome de Down.
“Quando você fala sobre deficiências e transtornos, você tem que trazer também a família para trabalhar junto com a escola e a rede de apoio. É muito amplo falar sobre educação inclusiva, são muitas ferramentas. Você precisa adaptar o material, pensar numa arquitetura para trabalhar, pensar no ambiente em que ele está inserido, ver o material de apoio e olhar o indivíduo dentro do coletivo. Dando essas ferramentas para ele, capacitando essas pessoas e garantindo a educação”, afirma a empresária do projeto que visa a inclusão e autonomia das pessoas com deficiência na sociedade.
“A importância da educação infantil trazer a educação inclusiva é gigante para o futuro. É trabalhar as diferenças no aprendizado. É fundamental que os seres humanos tenham isso no seu dia a dia, experienciem e se tornem pessoas empáticas, que saibam olhar para as deficiências e conviver”, completa.
Governo federal coloca educação inclusiva em risco
Além dos desafios provocados pela pandemia na adaptação da rotina escolar para crianças com deficiência, a articulação do governo federal em torno dos direitos dos estudantes com deficiência expõe fragilidades que colocam em risco o desenvolvimento e inclusão das crianças no ambiente escolar.
Um dos exemplos é a fala do ministro da Educação, Milton Ribeiro, que afirmou que crianças com necessidades especiais “atrapalham” o aprendizado de outras crianças sem deficiência e que a convivência com elas é “impossível”. Em uma entrevista, Ribeiro criticou o que chamou de “inclusivismo” e defendeu que alunos com deficiência sejam colocados em escolas separadas.
“O que é o inclusivismo? A criança com deficiência era colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia. Ela atrapalhava, entre aspas, essa palavra falo com muito cuidado, ela atrapalhava o aprendizado dos outros porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial”, disse o ministro.
Em setembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decretou a nova Política Nacional de Educação Especial, que prevê, dentre outras medidas, a inclusão de instituições escolares voltadas apenas para estudantes com deficiência, ou seja, fora do ambiente escolar regular e do convívio com alunos que não possuem deficiência. O decreto, no entanto, foi suspenso de forma liminar pelo Superior Tribunal Federal (STF) sob o entendimento de que a norma ‘fragiliza o imperativo da inclusão’.
Neste ano, o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma reunião junto ao Ministério da Educação (MEC) para discutir e esclarecer os desafios que envolvem a nova Política de Educação Especial do governo federal. Segundo o MPF, a proposta fere os direitos dos alunos com deficiência, além de representar “um retrocesso na busca pela educação inclusiva”. O órgão federal também destaca que, “ao propor a segregação de alunos com deficiência, a norma promove a discriminação e o preconceito”. A reunião para a tentativa de alterar a norma foi encerrada sem acordo.
Para as mães ouvidas pela Alma Preta Jornalismo, a nova norma é absurda e representa um regresso aos direitos já conquistados na política de inclusão escolar. “Quando a gente olha para esse decreto, entendemos que ele quer tirar o indivíduo da experiência do coletivo, fazendo com que ele não conviva com as outras pessoas e não aprenda com as diferenças. Vejo como um retrocesso. A troca da experiência só acontece na prática, onde a gente tem a representatividade e a convivência. Se tiramos isso, não teremos a troca, não iremos aprender”, avalia Thaissa.
“A inclusão é importante para a vida, não para o momento, nem para o lugar. A inclusão faz parte da vida justamente porque somos diferentes uns dos outros. É importante que a gente tenha isso como aceite. Enquanto eu viver, eu vou mostrar ao meu filho que não deve ter diferença com o outro, a tratar o outro bem e quero que ele seja bem tratado”, conclui Geísa.
Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que existe para desenvolver a criança para desenvolver a sociedade. A fundação elege quatro prioridades: mobilizar as lideranças públicas, sociais e privadas; sensibilizar a sociedade; fortalecer as funções dos pais e dos adultos responsáveis pelas crianças e melhorar a qualidade da educação infantil no Brasil.