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Da ansiedade ao acolhimento: marcadas pelo isolamento, crianças retornam às aulas presenciais

Pandemia mudou o cotidiano dos estudantes, o que impactou não apenas o processo de aprendizagem como também a saúde mental mesmo no retorno ao ambiente escolar

Texto: Victor Lacerda I Edição: Nataly Simões I Imagem: Yago Rodrigues/Alma Preta Jornalismo

Imagem mostra menina negra e mãe voltando da escola

15 de outubro de 2021

Inúmeras são as marcas deixadas pela pandemia em quase dois anos no  país, onde muitas famílias foram surpreendidas pelos efeitos sociais e econômicos de uma crise sanitária em escala mundial. O entendimento sobre o período pandêmico foi ainda mais difícil para crianças e adolescentes, que viram suas rotinas serem alteradas da noite para o dia em uma fase que requer interação para o desenvolvimento cognitivo e social, e agora retornam às aulas escolares presenciais. 

De acordo com o Conselho Nacional de Educação, o CNE, os retrocessos no processo de aprendizagem e aumento do estresse socioemocional dos estudantes e das famílias definiu uma orientação dada pelo órgão de que as aulas presenciais fossem retomadas em todo o país como prioridade. A mesma preocupação se deu com os educadores que, em pesquisa realizada pela associação Nova Escola durante os últimos semestres, revelou que, durante as aulas remotas, apenas 26% avaliaram que a saúde mental estava “boa” ou “excelente”. 

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Esse estresse foi identificado principalmente entre moradores de periferias, onde as desigualdades aumentaram com a chegada da covid-19. Pais e alunos tiveram de lidar, em estruturas que não possibilitam a garantia de direitos básicos, com um déficit de aprendizagem e acolhimento por parte de gestões municipais, atrasando o desenvolvimento das crianças em fases que necessitam uma maior atenção e diálogo presencial com as instituições de ensino, como a da educação básica. 

Essa é a realidade da família da agente de saúde Rosângela Barbosa, 44 anos, moradora da Bomba do Hemetério, na zona  norte do Recife. Mãe de dois filhos, Pedro Henry, de 14, e Miguel Martins, de 9, matriculados na rede pública de ensino da capital pernambucana, ela conta que o comportamento dos estudantes mudaram, com mais ansiedade pela falta de interação com os colegas na escola, na rua e nos ambientes que frequentavam para o lazer. 

“No início eu tentava entender toda a dinâmica que a pandemia trouxe para a gente e, ao mesmo tempo, ficava preocupada em como isso poderia respingar nos meus filhos. Fiquei aflita em proibi-los de  sair, de não poderem interagir e em pensar como poderia substituir o desenvolvimento deles, que estava parado, em casa. Mesmo com acompanhamento psicológico foi perceptível a mudança de humor e comportamento deles”, conta. 

Longe da escola, Pedro e Miguel tiveram que acompanhar as aulas e as lições de casa pelo aparelho celular. A mãe Rosângela diz que essa estrutura reduzida para o estudo  os deixou mais estressados, além da falta de paciência para ficar horas em frente à tela, o que gera falta de atenção e cansaço.

A volta para o ambiente escolar

A Prefeitura do Recife retomou as aulas presenciais no final de agosto com um esquema de rodízio entre os alunos, Segundo Rosângela, o retorno para a escola foi sinônimo de felicidade. “Parece que ganharam na loteria”, diz a mãe.

“Miguel voltou às aulas, mas com uma quantidade de dias de aulas bem inferior. A ida para escola passou de cinco para uma vez na semana, mas para ele é o suficiente para ser motivo de festa. Onde ele estuda, a aula começa às 7h40 da manhã, mas quando ele sabe que vai ter, já acorda às 5h. Ele me fala que conheceu novos alunos, que não estavam no passado, com alegria. É a possibilidade de rever quem eles tinham receio de não poder encontrar mais, pelas incertezas que a doença [covid-19] trouxe e isso me deixou aliviada”, conta.

oie 15173521R8x6L4QA agente de saúde Rosângela Barbosa e os filhos Pedro Henry (14) e Miguel Martins (9). | Créditos: Acervo Pessoal

O retorno tão aguardado pelos alunos foi percebido pela professora Joaninha Dias, que atua há 18 anos na rede pública de ensino do Recife e em Jaboatão dos Guararapes, cidade da região metropolitana. Joaninha dá aulas para turmas do 5º ano, com crianças de 9 a 11 anos, e também para a turma de alfabetização “fora da faixa” – que reúne crianças em processo de alfabetização independente da idade.

“Mesmo com as aulas remotas, os alunos ficaram adoecidos de passar esse tempo todo em frente às telas. Nesta fase que atuo, na educação básica, a questão do toque, do contato é muito importante e, particularmente, trabalhando com o afeto presente no dia a dia, foi difícil não poder acompanhá-los como gostaria, principalmente aquelas que, por diversos fatores, não se sentem acolhidas por morarem em estruturas que não garantem conforto ou que não viabilizam carinho nessa fase de desenvolvimento”, aponta.

Leia também: Retorno das aulas nas escolas públicas traz desafios para ressocialização das crianças

Segundo a psicopedagoga Adriana Tenório, o cansaço e a impaciência de estar frente à tela durante o processo de aprendizagem podem desencadear outros sintomas, como o déficit de atenção e até mesmo a ansiedade. A especialista ressalta que o período de educação remota foi difícil para todos os agentes envolvidos no processo de aprendizagem e destaca algumas características importantes do ensino presencial.

“O aparelho eletrônico já é de conhecimento dessa faixa etária, muitas vezes mais do que de pessoas adultas, mas elas assimilam à outra finalidade. O virtual, diferente do ambiente escolar, não proporciona acolhimento devido ao contato físico e o suporte necessário para tirar dúvidas e dar confiança aos alunos ajudando no entendimento de suas questões. Fora que as crianças não possuem maturidade suficiente para poder se organizar, de fato, sem um auxílio de alguém que ensine. Não está pronta na escola, muito menos pela tela”, explica. 

Mudanças de comportamento 

Alguns comportamentos dos estudantes chamaram a atenção da educadora na retomada das aulas presenciais, entre eles pedidos recorrentes para sair da sala para beber água  e ir ao banheiro, decorrentes da inquietação dos alunos de ficarem parados e sentados no mesmo ambiente. Segundo a professora, os alunos também voltaram para a escola com uma necessidade muito grande de conversar com os professores e com os outros alunos. “Eles falam tudo que vem na mente”, complementa.

oie Mil072yTQTEmA educadora Joaninha Dias atua há 18 anos na rede pública de ensino do Recife e Região Metropolitana. | Créditos: Acervo Pessoal

Diante da responsabilidade de repassar os protocolos de segurança aos alunos, Joaninha destaca também a preocupação dos professores em não transformar os cuidados de prevenção com o coronavírus em sinônimo de medo. Joaninha relata que há uma preocupação das turmas de não quebrarem as regras, mas pedem por alternativas para terem o mínimo de interação com os colegas. Por vivenciarem um sistema de rodízio, existem aquelas crianças que se preocupam com o porquê do colega não ter ido na mesma data que ele, estreitando laços com a turma que convive. 

A importância do acolhimento

Outra preocupação da comunidade escolar é com o acolhimento dos momentos de vulnerabilidade, como o choro das crianças. Professores como Joaninha se comprometeram a conversar com os responsáveis sobre a importância de tentar entender o que se passa na cabeça dos estudantes por conta do estresse gerado na pandemia.

“Muitas vezes os pais não se atentam ao fato de que as crianças absorvem muitas coisas nessa fase da educação básica. Ao contrário do que pensam, elas entendem, por exemplo, que a quantidade de pessoas perdidas foi grande, que não vão poder contar com aquele avô, que na maioria dos casos é o que garante a renda maior dentro de casa e garante uma situação melhor, entre outros fatores. É por isso que tento ser um ponto de confiança e passar isso aos pais. Acompanhar crianças que choram muito e a primeira coisa que faço é acalmá-las para depois entender o que acontece”, explica. 

Acompanhamento pedagógico e psicológico para a melhor compreensão dos sentimentos são  fundamentais para a saúde mental dos estudantes.  Dentro de suas práticas, o que Joaninha aplica é transformar o momento de aula em um ambiente alegre e de aprendizado condizente ao que as crianças respondem bem.

De acordo cm a psicopedagoga Adriana,  um dos maiores impactos é a falta do exercício de duas atividades que devem ser aplicadas junto ao ensino, como a estimulação das crianças ao desenvolvimento cognitivo e o processo de avaliação, que consiste em observar, no comportamento da criança, se há a necessidade de um acompanhamento específigo de acordo com o que cada aluno apresentará. 

“Alguns desses impactos gerados para volta às aulas se manifestam em uma parcela dos alunos que retornaram com maior nível de irritabilidade, medo e até sintomas mais sérios, como transtorno do sono e ansiedade. Isso atrelado ao atraso do desenvolvimento, o que gerou um considerável déficit na aprendizagem durante esse período, algo que todo a equipe que envolve o ambiente escolar deve estar atenta para não prejudicá-los tanto”, finaliza a especialista. 

A especialista ainda ressalta que se faz necessário a abertura de espaço para a escuta e que o atual momento é de empatia com as crianças para um fortalecimento coletivo dentro e fora do ambiente escolar.

“Acredito que em várias instituições, os profissionais de educação, que também tiverem que estar primeiramente bem para poder atender aos alunos, foram indicados à saber, antes, com os pais e familiares, o que aconteceu nesse período mais crítico da pandemia para poder, assim, trabalhar com cada criança. Por isso, acredito que observar como a criança está brincando, se está quieta ou não, estabelecer diálogo e, principalmente, estar preparado para acolher e ouvir são alguns dos fatores a serem trabalhados para recuperação desse período de crise”, finaliza a psicopedagoga.

Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que existe para desenvolver a criança para desenvolver a sociedade. A fundação elege quatro prioridades: mobilizar as lideranças públicas, sociais e privadas; sensibilizar a sociedade; fortalecer as funções dos pais e dos adultos responsáveis pelas crianças e melhorar a qualidade da educação infantil no Brasil.

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