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Insegurança alimentar: comida saudável sumiu do prato dos brasileiros

Com a crise causada pela pandemia, a população pobre busca alimentos mais baratos, que têm menores valores nutricionais; cenário de fome e a má alimentação é a atual realidade dos brasileiros
Texto: Nadine Nascimento | Edição: Nataly Simões | Imagem: Fotos Públicas

uma mulher entrega marmitas para outra

8 de julho de 2021

Com a pandemia da Covid-19, a crise econômica se intensificou e o colapso de muitos setores fez o desemprego disparar – com quase 15 milhões de pessoas sem trabalho no Brasil. A quarentena impôs restrições que também impactaram aqueles que trabalham na informalidade. Nesta conjuntura, quem já vivia no limite do orçamento doméstico, viu as incertezas aumentarem diante da necessidade de colocar comida na mesa. 

A situação de insegurança alimentar já atinge mais da metade dos lares brasileiros, segundo o estudo ‘Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil’. De acordo com o levantamento, mais de 59% dos domicílios entrevistados passaram por dificuldades de acesso à comida no último trimestre de 2020. A porcentagem representa 125,6 milhões de pessoas.

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Essa realidade fez o Brasil retornar ao Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas), marcador que o país havia deixado em 2014, sobretudo por conta das políticas de transferência de renda. Fazem parte do mapa as nações com mais de 5% da população em pobreza extrema. Na prática significa dizer que a cada 20 pessoas, uma está em situação de pobreza e fome.

Em 12 meses, desde o início da pandemia do novo coronavírus (de março de 2020 a março de 2021), o preço dos alimentos subiu 15% no país. O número é quase o triplo da taxa oficial de inflação do período, que ficou em 5,20%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Os constantes aumentos nos preços de alimentos somados às ações ineficientes do governo federal, em especial em relação ao auxílio emergencial, obrigou os brasileiros a cortarem itens de sua lista de compras. O consumo atual de carne vermelha, por exemplo, é o menor em 25 anos, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento. 

“Desde 2016, o grande desmonte de políticas públicas nos colocou no atual cenário de insegurança alimentar. O desemprego e a falta de incentivos à agricultura familiar impossibilitaram a garantia da alimentação dos brasileiros. Isso tudo foi somado às crises política, econômica, social, sanitária e ambiental que passamos no atual governo”, explica a pequena agricultora Rosa Negra. Moradora do Rio Grande do Norte, ela também é militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Comida de verdade

O direito humano à alimentação saudável e adequada é garantido por lei, no artigo 6º da Constituição Federal, e fundamenta-se no acesso físico e econômico de todos aos alimentos e aos recursos, como emprego ou terra. A legislação deixa evidente que não basta somente garantir o alimento, mas determina o acesso à chamada ‘comida de verdade’. 

Segundo o Guia Alimentar Para a População Brasileira, estabelecido pelo Ministério da Saúde, comida de verdade pode ser definida como aquela que “é referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; acessível do ponto de vista físico e financeiro; harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis.”

Esses marcos regulatórios, no entanto, não necessariamente significam a garantia da realização desse direito na prática – o que permanece como um desafio a ser enfrentado. Para a pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde NUPENS/USP, Thays Nascimento, existem alguns obstáculos que impedem a concretização dessas definições. 

“No contexto em que estamos, uma das questões primordiais é o aumento dos preços dos alimentos. Desde o ano passado, tivemos aumentos progressivos da cesta básica. Outro problema importante é a promoção dos alimentos não saudáveis, os ultraprocessados. Esses alimentos estão cada vez mais próximos, são onipresentes. Isso impacta a qualidade da alimentação”, afirma Nascimento. 

A pesquisadora lembra que a população negra e pobre está mais exposta a uma alimentação não saudável, pois se encontra nos chamados ‘desertos’ ou ‘pântanos’ alimentares – espaços geográficos onde o acesso à comida de qualidade é mais escasso. 

Dados da pesquisa ‘Vigitel 2018 – População Negra’, do Ministério de Saúde, revelam que o consumo regular de frutas e hortaliças é 33% menor na população negra em relação à branca. Enquanto 39% dos brancos consomem esses alimentos pelo menos cinco dias da semana, o percentual é de apenas 29% na população negra. O levantamento analisou hábitos da população em 26 capitais e no Distrito Federal.

Os riscos dos ultraprocessados

De acordo com a definição do Guia Alimentar, os alimentos ultraprocessados são nutricionalmente desbalanceados. “Por conta de sua formulação e apresentação, tendem a ser consumidos em excesso e a substituir alimentos in natura ou minimamente processados. As formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente.”

Os chamados ultraprocessados são os famosos biscoitos recheados, salgadinhos ‘de pacote’, refrigerantes e macarrão ‘instantâneo’ – consumidos extensivamente no Brasil, em especial, pelo baixo custo, facilidade de armazenagem, longa duração, por virem ‘prontos para o consumo’ e terem forte apelo publicitário. Esses alimentos devem ser evitados, segundo o Guia.

Os ultraprocessados estão associados com as principais doenças que atualmente acometem os brasileiros – que deixaram de ser agudas e passaram a ser crônicas. Apesar da intensa redução da desnutrição no país, as deficiências nutricionais ainda são prevalentes em grupos vulneráveis da população, como quilombolas, indígenas, crianças, mulheres e negros.

Simultaneamente, o Brasil vem enfrentando aumento expressivo do sobrepeso e da obesidade em todas as faixas etárias, e as doenças crônicas são a principal causa de morte entre adultos. O excesso de peso acomete um em cada dois adultos e uma em cada três crianças brasileiras, de acordo com o Ministério da Saúde.

Leia também: Desigualdade e racismo: fatores de risco para incidência de doenças crônicas na população negra

Mais recentemente, em junho, uma pesquisa inédita do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) revelou outro perigo que os ultraprocessados escondem: os agrotóxicos. O estudo ‘Tem veneno nesse pacote’ mostrou que 59% dos produtos ultraprocessados mais consumidos no país tinham resíduos de pesticidas. O levantamento desmistifica a ideia de que os agrotóxicos estão relacionados somente a alimentos in natura.

“Antes de mais nada, a gente enxerga e vem denunciando que os problemas em relação à produção e consumo de alimentos são estruturais e sistêmicos. Os arranjos do sistemas que a gente tem hoje baseado na produção de commodities, de ultraprocessados, com uso intensivo de agrotóxicos, de sementes transgênicas causam sérios impactos em toda a cadeia alimentar”, explica o nutricionista Rafael Rioja, um dos responsáveis pela pesquisa.

Caminhos para a soberania alimentar

A coordenadora nacional do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA) Kota Mulanji aponta os caminhos para a garantia do direito à alimentação saudável e de qualidade.  

“A soberania alimentar dos povos tradicionais de matriz africana está em nossa capacidade de reler os ensinamentos deixados por nossos antepassados. Isso só será possível se descolonizarmos o pensamento e o saber; se mantermos a luta contra o poder das indústrias de ultraprocessados e de agrotóxicos; se fortalecermos nosso próprio sistema financeiro e orçamentário; se a gente vender e comprar entre nós”, acredita Mulanji.

Para a coordenadora, somente políticas públicas voltadas à reforma agrária, aos incentivos da agricultura familiar, de taxação de agrotóxicos e alimentos ultraprocessados, bem como de educação alimentar podem garantir uma mudança estrutural na produção de alimentos no país e a autonomia alimentar dos brasileiros.

 

Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a ACT Promoção da Saúde, organização não governamental que atua na promoção e defesa de políticas de saúde pública, especialmente nas áreas de controle do tabagismo, alimentação saudável, controle do álcool e atividade física. Esse trabalho é realizado por meio de ações de advocacy, que incluem incidência política, comunicação, mobilização, formação de redes e pesquisa, entre outras.

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