“Me lembro de tudo o que aconteceu sempre que chego no meu trabalho porque aconteceu aqui na frente”, diz a veterinária Sol Rocha, de 27 anos. Ela é formada pela USP (Universidade de São Paulo) e trabalha em um ONG na região central da cidade de São Paulo. A profissional sofreu por mais de um mês com crises de pânico e dentro de dois meses pode ser condenada a pagar cestas básicas ou fazer serviços comunitários por ter filmado uma cena de violência policial. “Fui totalmente desrespeitada e isso é muito comum”, lembra.
Há um ano, enquanto trabalhava, a veterinária ouviu um barulho na rua e foi até a calçada para ver o que estava acontecendo. Era começo da tarde e tinha uma pequena multidão acompanhando a abordagem policial de um homem negro. “Eram dois policiais, deram um mata-leão no homem, jogaram ele no chão. Algumas pessoas começaram a gravar com o celular, eu também. Um dos policiais apontou para eu e disse que queria ver os meus documentos e falar comigo depois”, recorda.
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Na sequência chegaram mais policiais em duas viaturas para atuar na prisão do suspeito. A veterinária disse que fizeram uma meia-lua em torno do rapaz. “Um dos policiais veio, me arrastou para o outro lado da rua e começaram a me agredir. Fui jogada na parede, levei uma chave de braço e tentaram me revistar”, conta.
Sol pediu então para ser revistada por uma policial feminina, mas não foi atendida. “Puxaram o meu cabelo, me ameaçaram. Fui a única pessoa a passar por essa situação e depois me levaram para o DP”, relata.
Versão dos PMs
Os dois policiais militares que estavam nessa ocorrência fazem parte da Força Tática: Jefferson Andrade Silva, de 30 anos, e Maycon Felipe Cachoni Souza, 26 anos. Eles disseram que o suspeito tinha sido perseguido na rua porque foi visto trocando uma camiseta e escondendo um objeto. Ele teria uma outra camiseta por baixo de cor diferente. Ainda segundo os dois policiais, o suspeito teria roubado o celular de uma pessoa.
No boletim de ocorrência, registrado no 78º Distrito Policial, os dois policiais disseram que a veterinária desacatou os PMs e foi responsável por um início de tumulto na tentativa de evitar a prisão do suspeito.
Um outro policial militar, Gleydson Paiva de Souza, de 25 anos, que chegou junto com o reforço, também é testemunha no boletim, mas não disse ter visto Sol tumultuar ou desacatar alguém porque chegou depois.
Jefferson afirmou que foi feito uso de força moderada para conter o rapaz suspeito do roubo de celular. Maycon disse que o uso da força foi “dentro dos padrões normais” e que a médica veterinária “deu trabalho e não cooperou com as orientações”.
Quando estava dentro da viatura, algemada, indo para a delegacia, a veterinária disse que teve medo de morrer. Os amigos de trabalho dela se mobilizaram e seguiram viatura até a delegacia. “Essas pessoas salvaram a minha vida. A gente sabe que muitas mulheres negras trans numa situação dessa acabam mortas em valas. Eu ouvi os policiais conversando. ‘Será que isso não pode dar problema?’. ‘Não, não dá em nada porque é um traveco de rua’. Fiquei muito preocupada com o que iria acontecer comigo”, compartilha Sol.
Veterinária pode ser condenada
Os advogados de Sol apresentaram várias provas, testemunhas e vídeos, inclusive feitos por outras pessoas no dia da abordagem, que segundo a defesa provam a inocência da veterinária. Mesmo assim o inquérito do delegado Maurício Thomazi Guedes, que não traz nenhuma contestação para a versão dos policiais, apresentou a acusação contra a profissional da área de saúde animal. O julgamento foi marcado para maio de 2021. Se condenada, Sol vai perder a sua condição de ré primária.
Antes de levá-la no camburão, Sol conta ainda que os policiais fizeram ameaças para que as imagens gravadas no celular dela fossem apagadas. O advogado Marcelo Feller, que defende a veterinária, afirma que o caso é um típico exemplo de injustiça.
“A Sol não está sendo processada porque filmou. Ela está sendo processada porque os policiais mentiram. Isso é um sintoma da realidade da Segurança Pública. Os policiais militares viraram verdadeiros semideuses nas ruas. Eles prendem pessoas, não provam nada, não buscam testemunhas, nada. Os policiais, em juízo, contam a mesma versão e as pessoas são condenadas por isso. Se o policial aponta uma pessoa como culpada de um crime, a condenação é praticamente certa. É incrível que pessoas fiquem presas, às vezes por anos, com base em provas tão toscas e falhas”, relata o advogado.
Racismo e transfobia
Para Feller, a veterinária foi vítima de racismo e transfobia. “Ela estava filmando uma abordagem violenta que poderia, eventualmente, dar um problema na corregedoria para esses policiais. Ela e outras pessoas que estavam filmando. Mas por conta do racismo estrutural que permeia o sistema e por uma transfobia, ela a única mulher trans preta que estava ali foi presa e levada para polícia”, considera.
A defesa destaca ainda que o racismo foi reforçado na sequência da tramitação do caso. “O Ministério Público de São Paulo, mesmo após a apresentação dos vídeos no processo, entendeu que a palavra dos policiais era suficiente para processá-la, independentemente, dos que mostram os vídeos”, pondera Feller.
Sol foi enquadrada nos artigos 330 e 348 do Código Penal. O primeiro por desobedecer uma ordem policial e o segundo por atrapalhar a ação da polícia. “Não desacatei nenhuma ordem, não atrapalhei o trabalho de ninguém, muito menos pedi para não prender alguém. Eu não era a única filmando e eles estavam batendo do rapaz e depois bateram em mim também”, reforça a veterinária.
A agência Alma Preta entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para saber a versão dos policiais. Até a publicação desta reportagem, o órgão não se posicionou. Caso a pasta responda, o texto será atualizado.