Menu

Sorrisos negligenciados: como o racismo institucional afeta a saúde bucal das crianças negras

O racismo institucional se manifesta até mesmo na saúde bucal, dificultando o acesso a consultas odontológicas, prevenção adequada e tratamentos de qualidade
Imagem mostra o sorriso de uma criança negra.

Imagem mostra o sorriso de uma criança negra.

— Reprodução/Adobe

27 de março de 2025

Nos primeiros anos de vida, um sorriso saudável é mais do que estética — é sinônimo de bem-estar e qualidade de vida. No entanto, para muitas crianças negras, cuidar da saúde bucal ainda é um privilégio distante.

O racismo institucional se manifesta até mesmo na saúde bucal, dificultando o acesso a consultas odontológicas, prevenção adequada e tratamentos de qualidade. O que leva a uma maior incidência de cáries e outras doenças bucais evitáveis.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Além das barreiras econômicas e geográficas, o estigma racial e a falta de representatividade na odontologia fazem com que muitas famílias negras se sintam desconfortáveis ou descredibilizadas ao buscar atendimento. A escassez de profissionais negros e a ausência de abordagens culturalmente sensíveis contribuem para essa realidade.

O artigo “Associação entre iniquidades raciais e condição de saúde bucal: revisão sistemática”, publicado em março de 2024 pela revista Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, aponta que a população negra apresenta as piores condições de saúde bucal. 

O estudo revela que a população quilombola enfrenta desafios significativos, incluindo alta prevalência de cáries, perda dentária e periodontite (infecção grave da gengiva que danifica os tecidos de suporte dos dentes), além de insatisfação generalizada com a própria saúde bucal. Também há uma relação direta entre a cor da pele negra e problemas odontológicos, como perda dentária, cáries e até câncer oral.

Segundo os pesquisadores, “identificou-se pior condição de saúde bucal quando da exposição a discriminação racial”, evidenciando como fatores sociais e econômicos influenciam diretamente o bem-estar odontológico dessa população. 

A publicação ainda ressalta que foi observada uma possível relação entre a perda dental e o baixo nível econômico, demonstrando como desigualdades estruturais impactam a saúde de maneira ampla.

“As desigualdades em saúde sofridas pelos afrodescendentes confirmam a crueldade exercida pelo racismo institucional que estabelece uma cadeia de iniquidades sociais, econômicas, e de saúde para que dessa forma ele se mantenha como estrutura de dominação e exploração da população preta”, defende o estudo. 

No município de Baião, no Baixo Tocantins, uma menina de seis anos foi pela primeira vez a um dentista e recebeu orientações para a saúde bucal. (Foto: Anderson Silva/Agência Pará)

Desigualdade limita acesso de crianças negras a cuidados odontológicos

A estudante universitária Ariane Moura, que elaborou com as profissionais Joice Corrêa e Carol Lemos o “Guia Antirracista para Odontologia“, publicado pela Associação Brasileira de Mulheres Dentistas (ABMD), ressalta que o racismo impacta diretamente o acesso à prevenção e ao cuidado com a saúde bucal das crianças negras.

“Desde cedo, elas enfrentam um contexto de maior vulnerabilidade social, com menos acesso à educação, à saúde e a serviços públicos de qualidade. Isso se reflete em índices mais altos de cáries, perda precoce de dentes de leite e atendimento odontológico restrito a situações de urgência”, explica.

Moura destaca que esse impacto é ainda mais profundo na primeira infância, fase essencial para a formação de hábitos saudáveis. Sem suporte adequado, o desenvolvimento infantil fica comprometido.

A desigualdade socioeconômica aparece como uma das principais barreiras enfrentadas pelas famílias negras no acesso à saúde bucal. O Sistema Único de Saúde (SUS) muitas vezes é a única alternativa, mas a sobrecarga do sistema compromete a qualidade e a frequência dos atendimentos. 

Além disso, dificuldades como transporte até as unidades de saúde e horários incompatíveis com a jornada de trabalho dos responsáveis dificultam ainda mais o acesso.

Saúde bucal e autoestima na primeira infância negra

A relação entre a saúde bucal e a autoestima das crianças negras é frequentemente negligenciada e tem impactos profundos no desenvolvimento infantil.

O dentista Paulo Tavares, que atende em consultório na periferia de Maceió (AL), destaca que o cuidado com os dentes na primeira infância vai além da higiene ou prevenção de doenças — ele influencia diretamente a forma como a criança se percebe e é percebida pelos outros.

“Há um estigma de que crianças não se importam com a própria aparência, mas uma criança com um dente da frente cariado ou quebrado pode ser estigmatizada e sofrer bullying na escola”, explica.

Para ele, muitos pais minimizam a importância dos cuidados dentários com justificativas como “é dente de leite, vai cair”, mas essa visão pode comprometer a relação da criança com a própria imagem.

“Já atendi crianças que tinham um dente muito cariado e restauramos por conta de uma festa de aniversário. O brilho no olhar delas ao verem o resultado mostra o impacto disso na autoestima”, relata o profissional de saúde bucal. 

Impacto do racismo institucional e da falta de representatividade

Outro fator destacado por Moura é o racismo institucional, que se reflete na forma como essas famílias são recebidas e atendidas no sistema de saúde. Esse cenário gera desmotivação e afastamento dos serviços. “O racismo institucional se manifesta na forma como essas famílias são recebidas, ouvidas e atendidas, gerando desmotivação e afastamento dos serviços de saúde”, pontua.

A falta de representatividade também influencia a relação das famílias negras com o atendimento odontológico. A escassez de profissionais negros na área pode gerar um sentimento de falta de acolhimento e compreensão. 

“A representatividade é crucial porque promove identificação, segurança e empatia”, diz a criadora do guia, destacando a importância desse fator para que essas famílias se sintam compreendidas dentro do sistema de saúde.

Além disso, o estigma racial impacta a prevenção da saúde bucal de crianças negras, reforçando a visão equivocada de que elas não recebem os devidos cuidados familiares. Ela destaca que esse preconceito pode levar profissionais a priorizarem atendimentos paliativos em vez de investirem em orientação preventiva e acompanhamento adequado.

“A naturalização da dor e do sofrimento da população negra faz com que os sintomas e queixas dessas crianças sejam frequentemente subestimados”, ressalta Moura. 

Um menino negro escovando os dentes com o auxílio de uma mulher branca.
Um menino escovando os dentes com o auxílio de uma mulher. (Foto: Jhonatan Cantarelle/Agência Saúde DF)

Atendimento humanizado e ambiente inclusivo 

Para melhorar a abordagem dos profissionais de saúde bucal com crianças negras, Tavares enfatiza a importância da humanização do atendimento. Um acolhimento mais individualizado pode ajudar a criança a se aceitar melhor e valorizar sua saúde bucal.

O dentista também cita que a falta de políticas públicas voltadas para a saúde bucal também agrava a situação das crianças negras em situação de vulnerabilidade. A escassez de medidas como a fluoretação da água e a falta de acesso a itens básicos, como escova e pasta de dentes, impactam diretamente sua saúde e qualidade de vida.

Já Moura defende que escuta empática e sem julgamento de dentistas, reconhecendo e combatendo seus próprios preconceitos. Além disso, ela cita ser essencial adaptar as orientações odontológicas à realidade social e econômica das famílias, promovendo a educação bucal de forma acessível, lúdica e culturalmente sensível.

Embora todas as crianças devessem receber o mesmo padrão de cuidado, a estudante destaca que, na prática, as crianças negras enfrentam tratamentos desiguais. Para ela, para reduzir essas desigualdades, é necessário ampliar políticas públicas que garantam atendimento de qualidade em áreas periféricas.

Moura também acredita que é essencial criar ambientes mais inclusivos. Segundo ela, consultórios odontológicos podem utilizar materiais que representem crianças negras, tornando o espaço mais acolhedor e respeitoso. 

“Isso ajuda a promover a consciência e a criar um ambiente onde elas se sintam seguras, vendo-se refletidas em objetos decorativos”, acrescenta, reforçando a importância do sentimento de pertencimento dentro do espaço de cuidado.

Saiba como combater o racismo institucional na odontologia 

O racismo institucional na odontologia se manifesta de diversas formas, desde a ausência de representatividade nos materiais acadêmicos até a desigualdade no acesso a serviços de qualidade. 

Para promover um atendimento mais inclusivo e equitativo, o “Guia Antirracista para Odontologia” enfatiza a importância de que os profissionais da área adotem práticas antirracistas. Confira a seguir:

1. Reconheça o racismo estrutural na odontologia

  • O racismo estrutural impacta diretamente o acesso e a qualidade dos serviços de saúde bucal para a população negra;
  • A marginalização histórica e a falta de políticas públicas eficazes contribuem para a desigualdade na assistência odontológica.

2. Revise a abordagem clínica e diagnóstica

  • Muitas doenças bucais se manifestam de maneira diferente em pessoas negras;
  • Profissionais devem estar atentos a essas especificidades e evitar diagnósticos tardios ou subestimados devido à falta de conhecimento sobre essas variações.

3. Garanta atendimento humanizado e respeitoso

  • Escute ativamente o paciente negro e suas queixas sem minimizar suas dores ou preocupações;
  • Evite reproduzir estereótipos raciais, tanto na comunicação verbal quanto na linguagem corporal;
  • Valorize a autonomia do paciente, esclarecendo seus direitos e opções de tratamento.

4. Atualização sobre representatividade na formação odontológica

  • A formação odontológica ainda apresenta uma grande lacuna na inclusão de conteúdos que abordam a saúde bucal da população negra;
  • Profissionais podem buscar cursos, seminários e leituras especializadas para aprimorar seus conhecimentos sobre o impacto do racismo na odontologia.

5. Questione e transforme o ambiente profissional

  • Denuncie práticas discriminatórias dentro da equipe de trabalho;
  • Incentive a diversidade racial nos espaços acadêmicos e clínicos;
  • Exija que materiais didáticos e campanhas de saúde representem a diversidade racial da população.

6. Oriente e informe pacientes negros sobre seus direitos

  • Direito a um tratamento igualitário e sem discriminação;
  • Acesso a informações claras e acessíveis sobre sua saúde bucal;
  • Possibilidade de denunciar casos de racismo em ambientes de saúde.

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

Leia mais

PUBLICIDADE

Destaques