Nos primeiros anos de vida, um sorriso saudável é mais do que estética — é sinônimo de bem-estar e qualidade de vida. No entanto, para muitas crianças negras, cuidar da saúde bucal ainda é um privilégio distante.
O racismo institucional se manifesta até mesmo na saúde bucal, dificultando o acesso a consultas odontológicas, prevenção adequada e tratamentos de qualidade. O que leva a uma maior incidência de cáries e outras doenças bucais evitáveis.
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Além das barreiras econômicas e geográficas, o estigma racial e a falta de representatividade na odontologia fazem com que muitas famílias negras se sintam desconfortáveis ou descredibilizadas ao buscar atendimento. A escassez de profissionais negros e a ausência de abordagens culturalmente sensíveis contribuem para essa realidade.
O artigo “Associação entre iniquidades raciais e condição de saúde bucal: revisão sistemática”, publicado em março de 2024 pela revista Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, aponta que a população negra apresenta as piores condições de saúde bucal.
O estudo revela que a população quilombola enfrenta desafios significativos, incluindo alta prevalência de cáries, perda dentária e periodontite (infecção grave da gengiva que danifica os tecidos de suporte dos dentes), além de insatisfação generalizada com a própria saúde bucal. Também há uma relação direta entre a cor da pele negra e problemas odontológicos, como perda dentária, cáries e até câncer oral.
Segundo os pesquisadores, “identificou-se pior condição de saúde bucal quando da exposição a discriminação racial”, evidenciando como fatores sociais e econômicos influenciam diretamente o bem-estar odontológico dessa população.
A publicação ainda ressalta que foi observada uma possível relação entre a perda dental e o baixo nível econômico, demonstrando como desigualdades estruturais impactam a saúde de maneira ampla.
“As desigualdades em saúde sofridas pelos afrodescendentes confirmam a crueldade exercida pelo racismo institucional que estabelece uma cadeia de iniquidades sociais, econômicas, e de saúde para que dessa forma ele se mantenha como estrutura de dominação e exploração da população preta”, defende o estudo.

Desigualdade limita acesso de crianças negras a cuidados odontológicos
A estudante universitária Ariane Moura, que elaborou com as profissionais Joice Corrêa e Carol Lemos o “Guia Antirracista para Odontologia“, publicado pela Associação Brasileira de Mulheres Dentistas (ABMD), ressalta que o racismo impacta diretamente o acesso à prevenção e ao cuidado com a saúde bucal das crianças negras.
“Desde cedo, elas enfrentam um contexto de maior vulnerabilidade social, com menos acesso à educação, à saúde e a serviços públicos de qualidade. Isso se reflete em índices mais altos de cáries, perda precoce de dentes de leite e atendimento odontológico restrito a situações de urgência”, explica.
Moura destaca que esse impacto é ainda mais profundo na primeira infância, fase essencial para a formação de hábitos saudáveis. Sem suporte adequado, o desenvolvimento infantil fica comprometido.
A desigualdade socioeconômica aparece como uma das principais barreiras enfrentadas pelas famílias negras no acesso à saúde bucal. O Sistema Único de Saúde (SUS) muitas vezes é a única alternativa, mas a sobrecarga do sistema compromete a qualidade e a frequência dos atendimentos.
Além disso, dificuldades como transporte até as unidades de saúde e horários incompatíveis com a jornada de trabalho dos responsáveis dificultam ainda mais o acesso.
Saúde bucal e autoestima na primeira infância negra
A relação entre a saúde bucal e a autoestima das crianças negras é frequentemente negligenciada e tem impactos profundos no desenvolvimento infantil.
O dentista Paulo Tavares, que atende em consultório na periferia de Maceió (AL), destaca que o cuidado com os dentes na primeira infância vai além da higiene ou prevenção de doenças — ele influencia diretamente a forma como a criança se percebe e é percebida pelos outros.
“Há um estigma de que crianças não se importam com a própria aparência, mas uma criança com um dente da frente cariado ou quebrado pode ser estigmatizada e sofrer bullying na escola”, explica.
Para ele, muitos pais minimizam a importância dos cuidados dentários com justificativas como “é dente de leite, vai cair”, mas essa visão pode comprometer a relação da criança com a própria imagem.
“Já atendi crianças que tinham um dente muito cariado e restauramos por conta de uma festa de aniversário. O brilho no olhar delas ao verem o resultado mostra o impacto disso na autoestima”, relata o profissional de saúde bucal.
Impacto do racismo institucional e da falta de representatividade
Outro fator destacado por Moura é o racismo institucional, que se reflete na forma como essas famílias são recebidas e atendidas no sistema de saúde. Esse cenário gera desmotivação e afastamento dos serviços. “O racismo institucional se manifesta na forma como essas famílias são recebidas, ouvidas e atendidas, gerando desmotivação e afastamento dos serviços de saúde”, pontua.
A falta de representatividade também influencia a relação das famílias negras com o atendimento odontológico. A escassez de profissionais negros na área pode gerar um sentimento de falta de acolhimento e compreensão.
“A representatividade é crucial porque promove identificação, segurança e empatia”, diz a criadora do guia, destacando a importância desse fator para que essas famílias se sintam compreendidas dentro do sistema de saúde.
Além disso, o estigma racial impacta a prevenção da saúde bucal de crianças negras, reforçando a visão equivocada de que elas não recebem os devidos cuidados familiares. Ela destaca que esse preconceito pode levar profissionais a priorizarem atendimentos paliativos em vez de investirem em orientação preventiva e acompanhamento adequado.
“A naturalização da dor e do sofrimento da população negra faz com que os sintomas e queixas dessas crianças sejam frequentemente subestimados”, ressalta Moura.

Atendimento humanizado e ambiente inclusivo
Para melhorar a abordagem dos profissionais de saúde bucal com crianças negras, Tavares enfatiza a importância da humanização do atendimento. Um acolhimento mais individualizado pode ajudar a criança a se aceitar melhor e valorizar sua saúde bucal.
O dentista também cita que a falta de políticas públicas voltadas para a saúde bucal também agrava a situação das crianças negras em situação de vulnerabilidade. A escassez de medidas como a fluoretação da água e a falta de acesso a itens básicos, como escova e pasta de dentes, impactam diretamente sua saúde e qualidade de vida.
Já Moura defende que escuta empática e sem julgamento de dentistas, reconhecendo e combatendo seus próprios preconceitos. Além disso, ela cita ser essencial adaptar as orientações odontológicas à realidade social e econômica das famílias, promovendo a educação bucal de forma acessível, lúdica e culturalmente sensível.
Embora todas as crianças devessem receber o mesmo padrão de cuidado, a estudante destaca que, na prática, as crianças negras enfrentam tratamentos desiguais. Para ela, para reduzir essas desigualdades, é necessário ampliar políticas públicas que garantam atendimento de qualidade em áreas periféricas.
Moura também acredita que é essencial criar ambientes mais inclusivos. Segundo ela, consultórios odontológicos podem utilizar materiais que representem crianças negras, tornando o espaço mais acolhedor e respeitoso.
“Isso ajuda a promover a consciência e a criar um ambiente onde elas se sintam seguras, vendo-se refletidas em objetos decorativos”, acrescenta, reforçando a importância do sentimento de pertencimento dentro do espaço de cuidado.
Saiba como combater o racismo institucional na odontologia
O racismo institucional na odontologia se manifesta de diversas formas, desde a ausência de representatividade nos materiais acadêmicos até a desigualdade no acesso a serviços de qualidade.
Para promover um atendimento mais inclusivo e equitativo, o “Guia Antirracista para Odontologia” enfatiza a importância de que os profissionais da área adotem práticas antirracistas. Confira a seguir:
1. Reconheça o racismo estrutural na odontologia
- O racismo estrutural impacta diretamente o acesso e a qualidade dos serviços de saúde bucal para a população negra;
- A marginalização histórica e a falta de políticas públicas eficazes contribuem para a desigualdade na assistência odontológica.
2. Revise a abordagem clínica e diagnóstica
- Muitas doenças bucais se manifestam de maneira diferente em pessoas negras;
- Profissionais devem estar atentos a essas especificidades e evitar diagnósticos tardios ou subestimados devido à falta de conhecimento sobre essas variações.
3. Garanta atendimento humanizado e respeitoso
- Escute ativamente o paciente negro e suas queixas sem minimizar suas dores ou preocupações;
- Evite reproduzir estereótipos raciais, tanto na comunicação verbal quanto na linguagem corporal;
- Valorize a autonomia do paciente, esclarecendo seus direitos e opções de tratamento.
4. Atualização sobre representatividade na formação odontológica
- A formação odontológica ainda apresenta uma grande lacuna na inclusão de conteúdos que abordam a saúde bucal da população negra;
- Profissionais podem buscar cursos, seminários e leituras especializadas para aprimorar seus conhecimentos sobre o impacto do racismo na odontologia.
5. Questione e transforme o ambiente profissional
- Denuncie práticas discriminatórias dentro da equipe de trabalho;
- Incentive a diversidade racial nos espaços acadêmicos e clínicos;
- Exija que materiais didáticos e campanhas de saúde representem a diversidade racial da população.
6. Oriente e informe pacientes negros sobre seus direitos
- Direito a um tratamento igualitário e sem discriminação;
- Acesso a informações claras e acessíveis sobre sua saúde bucal;
- Possibilidade de denunciar casos de racismo em ambientes de saúde.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.
